A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

Entre a paz e a guerra: a ambivalência da natureza humana

Em seu livro “Cachorros de Palha”, John Gray apresenta críticas à ideia de progresso defendida pelos iluministas. Segundo o autor, os iluministas entendiam o progresso da humanidade sendo alcançado através do uso da razão, no qual a humanidade avançaria em direção a uma sociedade mais justa e igualitária. Contudo, ao analisar o cenário mundial, marcado por guerras de consequências globais e devastações ambientais, percebe-se que o tão almejado progresso nas relações entre os seres humanos e com a natureza está longe de ser alcançado. Embora a tecnologia tenha avançado consideravelmente, é questionável afirmar que a razão humana tenha proporcionado um maior discernimento ético para a resolução de conflitos, uma vez que a natureza humana permanece inalterada.

O principal equívoco do “senso comum” baseia-se na crença de que quanto mais conhecimentos científicos tivermos, mais distantes da condição animalesca estaremos. Para Gray, os seres humanos são muito mais parecidos com outros animais do que imaginam, mas o que os difere de outras espécies são os conflitos entre seus instintos mais primitivos.

“Se os humanos diferem de outros animais, são em parte, nos conflitos entre seus instintos. Eles buscam segurança, mas são facilmente entediados; são animais amantes da paz, mas têm um gosto pela violência; são inclinados a pensar, mas ao mesmo tempo odeiam e temem a incerteza trazida pelo pensar. Não existe nenhum modo de vida no qual todas essas necessidades possam ser satisfeitas. Felizmente, como atesta a história da filosofia, os humanos têm um talento para o autoengano e crescem na ignorância de suas naturezas” (GRAY, 2003, p. 132)

Freud, em seu texto “Por que a guerra? Indagações entre Einstein e Freud“, propõe a teoria das pulsões como uma chave para compreender as ambivalências existentes entre os indivíduos. Ele sustenta que os seres humanos possuem dentro de si forças internas capazes de levar as pessoas tanto à busca pelo prazer, criação e união, quanto à destrutividade e aniquilamento. Esta tendência para a violência está profundamente enraizada em nossos instintos mais primitivos. As pulsões de vida e de morte funcionam como um ponto de partida para compreender as noções de criação e destruição humana.

O autor ainda explica que nenhum desses dois instintos (de vida e de morte) é menos essencial do que o outro, pois os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Freud reconhece que sendo os impulsos agressivos uma parte intrínseca da psique humana, seria inútil tentar eliminar completamente essas inclinações. No entanto, ele sugere que é possível canalizar esses impulsos a fim de evitar que se manifestem na forma mais extrema de violência, como a guerra.

“De nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra” (FREUD, 1932, p. 7)

É um princípio geral que os conflitos de interesse entre os seres humanos sejam resolvidos mediante a violência. Essa questão pode ser observada ao longo da história, onde a violência ocorre mesmo entre aqueles que afirmam desejar a paz. Conforme Mateus 10:34, Jesus diz: “Não pensem que eu vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada.” Tal citação destaca a aceitação de que o conflito é uma parte intrínseca da condição humana. Ao refletir sobre essa realidade, nos confrontamos com a nossa essência conflitante: buscamos a paz, mas não vivemos sem a guerra.

As guerras vão continuar acontecendo sempre que alguém estiver decidido a fazê-la. É difícil imaginar uma sociedade completamente livre de violência. Isso exigiria um mundo extremamente repressivo e, ainda assim, demandaria do Estado altas doses de violência para conter aqueles considerados “desviantes” da norma. A título de exemplo, o surgimento do modelo panóptico e dos manicômios psiquiátricos serviu ao Estado como instrumento de controle e exclusão social dos que são vistos como “desajustados”, em prol de uma ordem social.

Por vezes, a guerra, além de revelar os instintos mais primitivos, pode ser um meio para instaurar a paz. Uma guerra pode colocar fim a todas as outras, trazendo uma estabilidade passageira, mas exige um preço alto, ceifando vidas e deixando cicatrizes eternas, vide a Segunda Guerra Mundial. Mesmo permitindo que a pobreza diminua e a doença seja aliviada, a evolução da tecnologia é usada para refinar a tirania e aperfeiçoar a arte da guerra.

O documentário “20 dias em Mariupol” retrata de forma chocante o fenômeno da guerra ao acompanhar uma equipe de jornalistas durante a cobertura da invasão russa no território ucraniano. O filme oferece uma reflexão sobre os impactos da guerra e a luta pela sobrevivência em meio ao caos. Uma cena marcante mostra o nascimento de um bebê em um cenário de bombardeio, onde os recursos hospitalares são escassos e improvisados. A mensagem que fica é que mesmo em um contexto de horror e morte, a vida continua acontecendo.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o pediatra britânico Donald Winnicott trabalhou com crianças que haviam sido separadas de suas famílias e evacuadas das grandes cidades, o que o colocou diante da destruição, da morte e da perda. Ao lidar com essas crianças desalojadas, Winnicott desenvolveu uma sensibilidade especial para entender como a perda do ambiente familiar impactava o desenvolvimento emocional. Ele reconheceu que, embora a guerra fosse o cenário onde essas questões se manifestassem de forma mais evidente, as raízes dos problemas eram mais complexas, indo além da situação do conflito armado.        

Winnicott foi capaz de reconhecer, nos sofrimentos causados pela guerra, as consequências da complexa dinâmica entre o indivíduo e a sociedade, entre o Eu e o Outro, entre o sujeito e seu ambiente. Pensando nas consequências que a perda, o abandono e a separação podem gerar no desenvolvimento infantil e no alcance da vida adulta, debruçou-se sobre as diversas manifestações das tendências antissociais.

Ele compreende as atitudes antissociais como uma busca por parte dessas crianças e adolescentes para recuperar uma experiência positiva e que lhes foi retirada. Essas privações geraram grandes dificuldades, que os impediram de confiar tanto nos outros quanto em si mesmos. O pediatra definiu o fenômeno da destrutividade como uma característica da tendência antissocial.

A agressividade está presente em todos os momentos de excitação da criança. É inerente ao amor “que originariamente é uma forma de impulso, gesto, contato, relação que dá ao bebê a satisfação da autoexpressão e o alívio da tensão pulsional” (WINNICOTT, p.102)

Winnicott (1987), assim como Freud e sua teoria das pulsões, deixa implícito em seus escritos o entendimento de que os indivíduos possuem uma agressividade e amorosidade inatas. A agressão é vista mais como evidência de vida (“O ambiente e os processos de maturação”, p. 117). Embora essas pulsões enfrentem obstáculos ao longo do desenvolvimento, um ambiente suficientemente bom permite que essas forças se organizem quase que naturalmente, levando a um resultado satisfatório. Sempre haverá a oportunidade de retornar e refazer. Ele parte do pressuposto de que, com uma mãe suficientemente boa, o ser humano é guiado naturalmente para uma ambivalência benigna.       

As funções materna e paterna desempenham papéis fundamentais no fortalecimento das pulsões de vida e de morte. Enquanto a figura materna é representada pelo instinto de vida para o bebê, agregadora e unitiva, a figura paterna age como um agente de desequilíbrio, rompendo a simbiose e introduzindo a criança ao mundo real. Uma pulsão só ganha sentido através de outra.

Em situações extremas como a guerra, os indivíduos encontram-se preocupados em sobreviver e unidos por um objetivo comum. Essa união em torno de um mesmo propósito (se aliar aos semelhantes e derrotar os inimigos) pode propiciar um forte senso de pertencimento. Todos lutam a mesma guerra e a morte fica mais próxima para cada um.

É importante repudiar a guerra, indignar-se com a violência, tanto quanto conhecer e entender que ela ocorre e sempre ocorreu, que é um fenômeno inerente a nossa espécie. Algumas figuras importantes da história, como Freud e Winnicott, tentaram responder sobre a guerra há quase cem anos. Homo homini lupus, (O homem é lobo do homem) conforme popularizado pelo filósofo político inglês Thomas Hobbes (1588-1679), o que aponta para o fato de que, possivelmente, não evoluímos como espécie, só estamos reproduzindo o que sempre fizemos ao longo da história.

Muito se fala sobre a utópica paz mundial, especialmente no cenário atual, onde preconceitos, discriminações, injustiças e guerras não mais existirão. Nota-se que o avanço tecnocientífico não tem trazido essa benesse. De fato, a guerra é inevitável. Tal como as pulsões freudianas, guerra e paz caminham juntas. Só existe uma mediante a outra. Por essa razão, é preciso reconhecer que somos inevitavelmente contraditórios, ambivalentes e divididos. Todo ser humano tem em sua essência essa ambiguidade – hora quer paz e alegria, hora quer destruição e guerra.

No âmbito individual, nota-se que tanto o excesso quanto a falta de cuidados maternos são capazes de causar um adoecimento psíquico. Por exemplo, um ambiente superprotetor pode sufocar o potencial criativo do sujeito e fazer com que ele desconheça as leis, enquanto que a negligência de cuidados pode resultar na falta de compreensão das regras sociais, forçando esse indivíduo a infringi-las. Tais situações são reflexo de uma guerra interna, difícil de ser verbalizada, complicada de ser compreendida e, por vezes, complexa demais para ser apreendida. Em ambos os casos, vive-se uma guerra interna entre as imposições do ambiente e a busca de um si-mesmo real e espontâneo.

Logo, estamos sempre em guerra, seja em um aspecto global, vide Mariupol, seja no campo individual, no caso os sentimentos ambivalentes que permeiam todo e qualquer ser humano. Dessa forma, as contradições individuais podem ser tratadas como intermináveis guerras. A ânsia por desejar e, além disso, sustentar o próprio desejo podem ser verdadeiras batalhas internas. Essas lutas internas são, provavelmente, o único caminho para o amadurecimento, o “vir-a-ser” que Winnicott dizia.

Como bem se sabe, não é no amor, nem na comodidade que o indivíduo amadurece, mas nas adversidades. Embora viver sob os cuidados maternos até uma idade avançada possa ser aparentemente confortável, chegará um momento em que o sujeito será convocado a assumir uma posição mais ativa diante da vida. Na guerra, há feridos e mortos, mas o objetivo é o mesmo: amadurecer.

Romper com a simbiose entre mãe e filho é crucial para o desenvolvimento de qualquer pessoa, pois embora seja um ambiente, muitas vezes, seguro e acolhedor, é ao mesmo tempo pacato e tedioso. Admitir a existência de uma agressividade interna, oculta, capaz de ferir o outro ou a si mesmo é por demais inimaginável em uma sociedade que prefere negar o lado sombrio da natureza humana. Mas ao fazê-lo, apenas nos iludimos e perpetuamos uma imagem idealizada de nós mesmos. Dessa maneira, a guerra continuará a se perpetuar pelos quatro cantos do mundo, mais crianças com comportamentos antissociais se farão presentes e as ambivalências da espécie humana serão cada vez mais discrepantes entre negar quem de fato se é e fantasiar aquilo que se diz ser.

É claro que reconhecer nossa tendência destrutiva não significa deixá-la à mercê dos próprios instintos. Não é à toa que Jordan Peterson disse certa vez: “Não seja inofensivo. Conheça o seu lado sombrio e mantenha-o sob controle voluntário.”

Referencial teórico:

FREUD, S. (1974) Por que a guerra? (J. Salomão, Trad.), edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas (Vol. XXII). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1932).

GRAY, J. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. Rio de Janeiro: Record, 2009.

WINNICOTT, D. W. (1987) Privação e delinquência. Trad. de Álvaro Cabral. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Imagem gerada por IA

Sobre o autor

Ana Lídia Rosa

Psicóloga clínica, pós-graduanda em Psicoterapia Psicanalítica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e pesquisadora do grupo "A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade", pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.