
Uma análise winnicottiana sobre a complexidade humana na sociedade contemporânea
O contemporâneo cenário sociocultural, marcado por avanços tecnológicos e transformações nas dinâmicas sociais, suscita reflexões acerca do desenvolvimento humano em meio a esse ambiente desafiador. A teoria do desenvolvimento maturacional de Donald Woods Winnicott, abordada por Gilberto Safra (2004) emerge como uma lente valiosa para compreender as nuances desse processo. Segundo Winnicott, o ser humano está intrinsecamente ligado ao seu ambiente, especialmente à mãe, e é nessa relação que o self começa a se constituir.
O psicanalista destaca que o self não pode existir sem o outro, enfatizando que a construção da identidade se dá pela presença significativa de alguém que possa integrar o ambiente do indivíduo. Gilberto Safra (2004), em diálogo com a teoria winnicottiana, acrescenta que o bebê precisa transformar o mundo à sua volta, tornando-o singular, para então apropriar-se dele e compartilhá-lo com outros.
Esse gesto criativo e singular inaugura o processo de desenvolvimento, destacando a importância do acolhimento e da originalidade na interação inicial do ser humano com o meio. Ao considerar a evolução do self nos primeiros anos de vida, percebemos que o ambiente deve propiciar um espaço para o gesto inaugurante-transformador, no qual o bebê pode inserir-se na realidade compartilhada de maneira autêntica. Aqui, a figura materna e a comunidade desempenham papéis cruciais, fornecendo suporte para o desenvolvimento psíquico e a formação da identidade do indivíduo.
No entanto, na contemporaneidade, observa-se uma multiplicidade de desafios que ameaçam o enraizamento do self no mundo. Safra (2004) argumenta que as fragmentações culturais e a aceleração do tempo, impulsionadas pelos meios de comunicação e pela globalização, favorecem o surgimento de fraturas na constituição do si-mesmo. E em virtude de ideologias, fenômenos como a criação de simulacros, a coisificação do ser humano e a redução do sujeito a conceitos abstratos são manifestações preocupantes dessa realidade.
Safra (2004) destaca que o ser humano parte da solidão essencial, ingressando no mundo como um exilado surpreendido, acolhido pelo abraço e olhar de outrem. Esse lugar, um horizonte da existência, preserva as fronteiras de mundos e possibilidades de ser e estar. Na atualidade, há buscas pela igualdade de um acontecer humano, que quando fora dos padrões já pré-estabelecidos, podem levar a verdadeiras inquisições, evidenciando um totalitarismo da subjetividade.
O filósofo Byung-Chul Han (2017), em sua leitura crítica ao contemporâneo, aborda a sociedade da transparência e do controle. Han descreve um panóptico digital do século XXI, aperspectivístico e desprovido de um olhar central, onde a hipercomunicação e a exposição pessoal, como que numa espetacularização do ser humano, desencadeiam uma supervisão total. Esse panorama, associado à busca pela transparência, inclusive como imperativo moral, cria um saber onisciente que aniquila o Ser e transforma a comunalidade em uma sociedade superficial, simétrica, desprovida de diversidade, levando-nos a uma ditadura do igual, uma regulamentação subjetiva-afetivo e ao esvaziamento de sentido e significado.
Logo, Byung-Chul Han (2017), chama atenção para a transformação do ser humano em objeto de vigilância e manipulação, resultando na aniquilação da liberdade de ação e na uniformização da sociedade. Essa dinâmica impacta diretamente a construção do self, que acontece na intersecção entre o singular e o coletivo. O desenraizamento ético e cultural da contemporaneidade, conforme analisado por Safra, compromete a formação de uma identidade integrada e saudável, levando a uma crise de maturidade.
E então, nos deparamos com o conflito entre a necessidade ontológica do ser humano de pertencer a uma comunidade, conforme proposto por Berdiaev, e a crescente individualização e exposição na sociedade contemporânea, ocorrendo como um desnudamento do Ser sem quaisquer limites, pudor e respeito à dignidade humana, ao posicionando frente a um olhar intrusivo que visa teorizá-lo e totalizar a humanidade, em prol de uma reforma moral, um suposto melhoramento do homem.
Han afirma: “A alma humana necessita naturalmente de esferas onde possa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro. Pertence a ela uma impermeabilidade. Uma total “iluminação” iria carbonizar a alma e provocar nela uma espécie de burnout psíquico. Só a máquina é transparente; a espontaneidade – capacidade de fazer acontecer – e a liberdade, que perfazem como tal a vida, não admitem transparência.” (HAN, 2017, p.13).
Em concordância com essa afirmação, pode-se lembrar que John Stuart Mill, no século XIX, sendo afilhado de Jeremy Bentham, crescendo em um panóptico virtual, estritamente segregado das outras crianças, sujeito ao olhar que tudo vê de seu pai, em um ambiente tão resolutamente projetado, no meio de sua depressão, tenha suspeitado de si como uma máquina e não um ser vivo.
Em sua análise crítica, Stewart Justman (1998) afirma que, de certa forma, as suspeitas de Mill eram bem fundamentadas, pois para reconstruir outros como Bentham almejava com seu projeto panóptico, seria necessário ver claramente através deles, como uma peça de maquinaria mostrada num diagrama, desmontada até aos parafusos. E sua visão teria que ser panóptica no sentido de torná-los completamente conhecidos.
Adam Phillips (2006), em seu livro intitulado, “Winnicott” menciona que em 1923 Winnicott começou a disciplina interpretativa da psicanálise, como um médico que tinha um interesse especial no processo de desenvolvimento maturacional, e naqueles que gemem como gatos, vociferam e finalmente terminam por balbuciar.
Logo, entende-se que o ser humano não deve ser reduzido a uma espécie animal domesticável, mas em sua possibilidade de humanizar-se, ele deve ser reconhecido, em toda a sua complexidade, como um Ser fundamentalmente criativo, como ser que acontece por meio do gesto e que acontece em meio à liberdade, não sendo um agregado de partes, mas um todo originário.
No âmago da condição humana, o indivíduo se encontra na fragilidade do entre, entre o dito e o indizível, entre o claro e o escuro. E sempre haverá algo que só ele mesmo pode revelar, que não se submete a uma definição externalizante.
O desenvolvimento de si mesmo, conforme Winnicott, é uma jornada que requer equilíbrio entre o singular e o coletivo, entre o privado e o público. Na ausência de um desses pólos, surge um sofrimento e uma vivência de não existência, como expresso pela célebre frase de Winnicott: “é uma alegria estar escondida, mas um desastre não ser encontrado”.
A Drª. Danit Falbel Pondé, coordenadora do grupo de pesquisa sobre A Crise do Amadurecimento na contemporaneidade, destaca em sua palestra para o programa Café Filosófico “a importância de sustentar a dúvida, o mistério e os questionamentos”. Essa abordagem implica aceitar a vida em sua complexidade, ambivalência e singularidade, características que delineiam e moldam nossa existência. O ser humano é um acontecimento inédito, não há como se antecipar a este, e, ao enfrentar o percurso em direção ao amadurecimento, é crucial aceitar as incertezas e ambiguidades que permeiam o Ser.
O indivíduo contemporâneo, submetido à uma sociedade da transparência também está submetido à uma cultura psicológica, e pode sentir-se desprovido de um espaço para ser encontrado e reconhecido em sua essência. Winnicott, ao destacar a importância do gesto criativo e singular na constituição do self, poderia interpretar esse contexto como uma ameaça ao desenvolvimento autêntico e à expressão genuína do indivíduo.
“O ser humano é fundado em transcendência, que o constitui aberto para agir e perguntar. O ser humano acontece pelo gesto, experiência de liberdade posicionada entre o ser e o não ser. Para o homem como ser criativo, a questão fundamental não é a morte, mas o fato de não vir a alcançar a possibilidade de ser o que é, o que só acontece pela hospitalidade ofertada ao singular de si mesmo pelos outros homens.” – (SAFRA, 2004, p.59)
Em síntese, a análise sob uma visão winnicottiana revela que a alegria de estar escondido, em um ambiente que promove a singularidade e a originalidade, na contemporaneidade contrasta com o desastre de não ser encontrado, em uma sociedade que, muitas vezes, não valoriza a autenticidade e a complexidade do indivíduo, conduzindo o ser humano a uma angústia impensável, resultando em um sofrimento sem entorno.
A preservação do espaço potencial, no qual o self pode emergir e desenvolver-se, é uma questão crucial para a promoção de uma psique saudável em meio à complexidade contemporânea.
O desenvolvimento maturacional do indivíduo depende crucialmente do ambiente que o envolve. A exposição excessiva e a busca desenfreada pela transparência comprometem a singularidade e a liberdade do Ser, levando a uma sociedade do controle que sufoca a individualidade.
Ao final, a ética do cuidado é destacada como fundamental, ressaltando a importância de consideração e respeito à singularidade de cada indivíduo, evitando a confusão entre direito e dever, público e privado. A conclusão enfatiza a necessidade de equilibrar a alegria do mistério individual com a importância de ser reconhecido e encontrado de maneira respeitosa em meio à comunidade.
É de grande importância, portanto, considerar que o ser humano é mais do que pode ser totalmente conhecido, e sua existência é enraizada na interação dinâmica entre o eu, o ambiente e a comunidade. No delicado equilíbrio entre a clareza e o escuro, o dito e o indizível, reside a verdadeira alegria de estar escondido e também poder ser encontrado. A ênfase na comunalidade, ética do cuidado e na preservação do enigma humano emergem como antídotos para os homens de uma sociedade transparente.
Referências
PHILLIPS, ADAM. Winnicott. Ideias e Letras. Coleção: Psicanálise Século 1, 4ª reimpressão, 2006.
HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Vozes, Petrópolis-RJ, 2017.
JUSTMAN, Stewart. (1998). The Psychological Mystique. Evanston, III.: Northwestern University Press.
SAFRA, G. A Po-ética na Clínica Contemporânea. Ideias & Letras, São Paulo, 2004.
Link acessado:
A agonia do amadurecimento – Drª. Danit Falbel Pondé
Acesso em: Junho de 2023
Imagem gerada por IA
