Revista Laboratório Temática 5 – Diálogos da Diáspora - Racismo e Antissemitismo

Leviatã fraturado: a crise política, judiciária, a crise mimética e o racismo no futebol espanhol

Introdução

Este estudo tem por objetivo analisar a relação entre as linhas de fratura do Estado, o fracasso do sistema judiciário na canalização da violência, a retomada de práticas sacrificiais e sua relação com os ataques racistas ocorridos no futebol espanhol, com ênfase no caso Vinicius Júnior.

René Girard, ao discutir o mecanismo sacrificial nas sociedades modernas, destaca que, embora o mecanismo persista, a invenção do sistema judiciário esvaziou seu significado. No entanto, ele observa que a eficácia do judiciário está condicionada a um poder político estável, criando uma dinâmica pendular na qual o fortalecimento do mecanismo sacrificial é possível em momentos de instabilidade política, tornando-se uma “alavanca de emergência” diante da ameaça de autodestruição.

A pesquisa é dividida em duas partes: partindo de uma breve análise do pensamento político hobbesiano e conectando-o à teoria mimética de René Girard, destacando a escalada da violência na crise mimética, ponto em que o mecanismo sacrificial surge como instrumento de salvação coletiva por meio da imolação do bode expiatório. Explora-se também os critérios de elegibilidade ao posto de vítima sacrificial, cuja análise permite associá-lo a figura de um “outro” não vingável. A segunda parte do estudo se concentra em um estudo de caso acerca da avalanche de ataques racistas que atingiram o jogador brasileiro Vinicius Júnior ao longo da temporada 2022 – 2023. Para tanto, apresentou-se um panorama da constituição sociocultural e política da Espanha, marcada por divisões étnicas e desigualdades econômicas, que suscitaram o estabelecimento de uma rivalidade entre diversas concepções de país, de um lado, o nacionalismo espanhol e do outro, os nacionalismos periféricos. Esses conflitos internos pautam eventos políticos e sociais da Espanha desde o século XIX, minando a estabilidade política e a eficácia do sistema judiciário, fortalecendo, dessa forma, o mecanismo sacrificial. Além disso, a condução destes episódios e a inserção de novos elementos como os grupos neonazistas e a influência do estilo skinhead, permitiram a construção paulatina da figura de um inimigo externo, caracterizado como aquele que é anti-hispânico e não-europeu.

Dessa forma, ao examinar os casos de racismo e xenofobia no futebol espanhol desde os anos 1980, foi possível verificar a relação implícita entre as vítimas e a figura abstrata do inimigo externo, acerca disso, pondera-se sobre a desnaturação do mecanismo sacrificial em virtude da repetição incessante da imolação do mesmo tipo de vítima, o que pode ter impactado sua capacidade de canalizar a violência. Por fim, a partir das discussões realizadas, o caso de Vinicius Júnior é analisado a partir da teoria girardiana, o que possibilitou enxergá-lo como um bode expiatório perfeito, bem como, ponderar acerca dos cenários possíveis a partir de sua imolação.

Thomas Hobbes: o leviatã como um ordenador

O pensamento político e antropológico de Hobbes estabelece o ser humano como uma criatura egoísta, sempre em busca de saciar o seu desejo ou concretizar os seus próprios interesses. Ao expor sua concepção de estado de natureza, afirma que nesse estágio todos os homens têm direito a todas as coisas simultaneamente. Nesse contexto, a rivalidade e o conflito são consequências naturais, pois, o mesmo objeto não está disponível para todos ao mesmo tempo. A partir disso, Hobbes propõe um cenário de guerra de todos contra todos, há um clima generalizado de medo e insegurança entre os indivíduos. Para evitá-lo, uma solução eficiente é a construção das cidades, de modo que o desejo primário do ser humano, ou seja, a conservação da própria vida, possa ser garantido. O autor conclui que esta solução se ampara em dois pilares: a) o medo mútuo; b) o interesse próprio.

Diante disso, Hobbes descreve dezenove lei naturais, que visam assegurar a paz e a segurança dos homens. O problema delas, no entanto, são os próprios seres humanos. A grande dificuldade é o fato de não existir um bem universal ou que possa ser compartilhado com todos, disso resulta o surgimento natural dos conflitos. Nesse sentido, na perspectiva hobbesiana, o bem de um homem, sempre implica a perda para outro (Frateschi, 2008, p.44). Assim estabelece-se um impasse, pois, as leis naturais objetivam à paz, mas suas diretrizes são contrárias à natureza humana, portanto, isso implicaria no seu descumprimento. Nesse contexto, para que as leis sejam cumpridas e, consequentemente, a paz, ocorra, é preciso criar a pessoa artificial do Estado (Hobbes, 2003, p.107). Assim, o pensamento hobbesiano concebe o Estado como um corpo artificial instituído para garantir a conservação da vida dos homens, que se abrigam sob sua estrutura a partir da instituição de um pacto na forma de um contrato, cujos termos envolvem a cessão de uma parcela de suas liberdades (ibid., p.113). O Estado garante o cumprimento do pacto por meio do medo e do castigo. Na perspectiva hobbesiana, o temor e a punição são instrumentos fundamentais para a manutenção da ordem, ou seja, para a segurança dos cidadãos. Dessa forma, a presença do Estado pode promover a paz, por meio da “ameaça do castigo e a promessa da recompensa”. De modo que, o grande benefício da celebração do contrato social é trazer limites à ação do homem, que se mantém em busca de seus próprios interesses (Frateschi, op.cit, p.44), porém, sob a vigilância constante do Leviatã, sem prejudicar o outro.

Em síntese, o Estado emerge como uma força harmonizadora dos interesses individuais, assegurando a convivência pacífica, adquirindo então uma função ordenadora da vida social. Essa finalidade pode ser mais bem explicada pela representação do Leviatã na capa clássica da obra, que, simbolicamente, apresenta a interdependência entre os indivíduos e a necessidade de cooperação a construção de uma sociedade ordenada nos limites impostos pelo contrato social. Nesse sentido, a paz só pode ser alcançada quando os interesses individuais se alinham em prol do bem coletivo, harmonizando a ordem social e se contrapondo ao estado de natureza caótico e inseguro.

René Girard: teoria e crise mimética e o mecanismo sacrificial

Após expor o pensamento de Hobbes, introduz-se René Girard, cujos conceitos o complementam. Girard amplifica a noção de disputa de todos contra todos a partir da teoria mimética, que reforça a conclusão hobbesiana sobre a necessidade de um poder político forte para conter a violência e preservar a ordem social. Em sua perspectiva, a experiência de alteridade é fundamental para a modelagem dos comportamentos e desejos humanos. O contato com o outro gera a imitação (mimese), que impulsiona o surgimento de culturas, línguas e, sobretudo, da violência. Assim, o “eu” depende do “outro” como referência para desejar e, ao mesmo tempo, rivalizar. Nesse contexto, a dinâmica que se instaura toma uma forma triangular, cujos vértices são: o “eu” ou aquele que imita; b) “o modelo”; c) o objeto.

Dessa forma, o imitador ao interagir com o modelo, passa a imitá-lo e a desejar o objeto possuído ou desejado pelo modelo. A partir dessa interação, o modelo torna-se rival e, progressivamente, torna-se o ponto focal do ódio, da inveja e de todas as formas de exclusão, cuja fonte está no desejo marcado pela alteridade (Godoy, 2012, p.127). A partir dessa dinâmica, o mais usual é a instauração do conflito, onde o imitador se torna obstáculo ao modelo e vice-versa, gestando cada vez mais a violência no seio dessa relação. Nesse cenário, a violência rapidamente assume o protagonismo em uma sucessão de agressões e represálias. Por mimese, outros seres humanos passam a desejar o mesmo objeto que os competidores iniciais e se inserem na contenda, replicando os mesmos comportamentos. Na mesma página, Godoy afirma que quando a violência surge em algum ponto, ela tende a se alastrar e ganhar a totalidade do corpo social, ameaçando uma verdadeira reação em cadeia. Gradualmente o estado de guerra de todos contra todos se desenvolve na comunidade, disseminando cada vez mais, a violência, que se perpetua a partir da escalada das represálias.

No pensamento de René Girard, a vingança tem um papel de destaque, seja como catalisador da violência, a partir de seu ciclo infinito, seja como um critério definidor do sacrifício. À medida que a rivalidade mimética e o ciclo de represálias se acirram e outros indivíduos vão sendo acrescentados ao sistema, vítimas de um contágio que se espalha obedecendo uma lógica de progressão geométrica, chega-se ao auge do processo, conhecido por ter o maior potencial destrutivo em relação ao ordenamento social. Girard denomina este estágio como crise mimética. Nesse contexto, os múltiplos atores envolvidos se espelham e convergem, cada vez mais, até o ponto em que as identidades desaparecem, imitador e modelo passam a ser apenas rivais. O objeto, razão pela qual a competição havia sido instaurada, também desaparece do conjunto. Restando apenas uma rivalidade que se sustenta em seu próprio antagonismo e na reciprocidade violenta entre os homens, caracterizada por ser o auge da expressão da violência e por arrebatar a estabilidade social (Godoy, 2012, p.130).

Na perspectiva de Girard (2008, p.14-16), a violência não pode ser reprimida, mas pode ser desviada para um alvo predefinido. O objetivo é desviar essa força destrutiva, direcionando-a para um único elemento, agindo como um “dreno purificador” e preservando o restante da comunidade. Esse processo consiste na eleição aleatória e inconsciente de um membro da sociedade para absorver e canalizar toda a violência que ameaça o grupo. O sacrifício da vítima (bode expiatório), que pode ser um indivíduo ou grupo, proporciona o apaziguamento da sociedade. A partir disso, ocorre uma mudança na coletividade: a guerra generalizada se torna uma guerra contra um único alvo: o bode expiatório, pois este, torna-se o alvo comum dos membros da comunidade (Godoy, 2012, p.134). Apesar de inconsciente, o processo de substituição sacrificial, guarda requisitos fundamentais para que a violência possa ser canalizada com êxito. Assim, os critérios para a eleição da vítima são: a) desconhecimento, a relação entre o sacrifício e o objeto que ela representa não pode ser explícita, mas também não pode ser distante. De modo que, a vítima não possa ser um humano, mas ainda lembre um; b) a vítima deve ser relativamente indiferente, a ponto de ser percebida como sacrificável; c) a vítima não pode ser vingável[1] (Girard, op.cit, p.14-25).

Neste sentido, observa-se a existência de um não-dito nos critérios apresentados por Girard afirma-se: a) há uma hierarquização dos indivíduos na sociedade, mesmo com a igualdade proporcionada pelo contrato social; b) a vítima é desprovida de sua humanidade, sem perder a semelhança com um humano e instrumentalizada; c) a identificação do irrelevante e não-vingável depende da relação “eu x outro”; d) deve haver um consenso sobre quem será a vítima, com a percepção compartilhada definindo quem será o sacrificado; e) a escolha do bode expiatório está vinculada à construção do “outro” no imaginário coletivo, que rotula vingáveis e não vingáveis. Assim, o sacrifício substitui não apenas um indivíduo, mas o grupo como um todo (Girard, 2004, p.19). Destaca-se a existência de grupos e indivíduos serem mais suscetíveis a serem escolhidos do que outros, isso pode ser observado por meio de uma análise socioeconômica para confirmar que os vulneráveis são mais facilmente encontrados entre os “irrelevantes” e “não vingáveis” contrastando com a observação girardiana de que violência não tem preferências. Isto se fundamenta na necessidade da semelhança entre “relevantes” e “irrelevantes”, sem que se perca a distinção de sua nitidez (ibid., p.24).

As sociedades modernas substituíram o sacrifício pelo sistema judiciário, que limita a vingança a uma represália única. O Estado, ao institucionalizar a vingança, encerra o ciclo de retribuições e canaliza a violência em um único ato (Girard, 2008, p.28). No entanto, ao monopolizar a vingança, o sistema judiciário atrofia o mecanismo sacrificial, que passa a existir de uma forma esvaziada. Assim, quanto mais forte o sistema judiciário, mais enfraquecido é o mecanismo sacrificial e vice-versa. Por outro lado, o judiciário é uma “faca de dois gumes”, pois pode servir à justiça e à opressão, além de só existir em conjunto com um poder político realmente forte e estável (ibid., p.31-35). Dessa forma, a existência de um poder político fraco ou instável, necessariamente leva à desnaturação do poder judiciário, tornando-o inadequado para a canalização da violência e fortalecendo o mecanismo sacrificial, dada a dinâmica inversamente proporcional proposta anteriormente. Disso resulta a necessidade de coesão e harmonia política para a canalização da violência pelo judiciário, possibilitando a conclusão de que o insucesso do Estado nestes campos, enseja a injustiça e a violência na sociedade.

Dentro desse contexto, insere-se a noção de debate trágico, que é algo sem solução, espelhado entre as partes, onde se apresentam os mesmos desejos, os mesmos argumentos. Sendo caracterizado pelo equilíbrio da balança da violência (Girard, 2008, p.63). De modo que, esse cenário de represálias mútuas atinja a coletividade, especialmente as instituições (ibid., p.67), que caminham para um cenário de desarranjo perpetrado pelo conflito constante. O resultado é a decadência da comunidade e a indiferenciação entre a violência purificadora (sacrifício) e a violência impura, o que leva ao apagamento de todas as outras diferenças. Nesse sentido, tem-se a ruptura do ordenamento social e o enfraquecimento do Estado, tornando o poder político refém da violência. Além disso, possibilita uma crise do ordenamento cultural e das identidades, pois a absoluta igualdade exclui as diferenças, e são estas que pautam a identidade. Portanto, a mimese violenta promove a convergência que desencadeia o apagamento dos adversários. Dessa forma, a figura do “outro” se destaca por ser simultaneamente a vítima perfeita, conforme os critérios girardianos e um grande marcador, por ser a partir dele que se pode determinar o “eu” e o “nós”. Desse modo, sua aniquilação destrói as referências, a cultura e a partir da convergência que se instaura, condena a civilização a um conflito entre iguais, onde a vingança é a constante.

Dado que o sacrifício de um igual implicaria na queda no ciclo vicioso da vingança, é indispensável sacrificar um “outro”. No entanto, isto requer sua lenta desumanização, implicando em sua marginalização, e levando-o ao sacrifício como “quase humano”. Em um contexto com um poder judiciário estabelecido e responsável pela canalização da violência, o “outro” pode ser sacrificado pelo Estado por meio de execuções, da exclusão do acesso a direitos como emprego, saúde, educação e segurança. Nesse contexto, tais aspectos ganham particular relevância quando confrontadas com o crescimento vertiginoso de movimentos políticos pautados por uma agenda exclusivista, especialmente de extrema-direita, de caráter transnacional. Dessa inclinação autocentrada, deriva-se a acentuação de fenômenos como o antissemitismo, o racismo, a xenofobia, entre outros. O estabelecimento do “outro” como uma ameaça e, ao mesmo tempo, como alguém inferior, serve ao propósito de transformá-los em bodes expiatórios. Dessa forma, esse extermínio do “outro” leva à homogeneização das sociedades, fazendo com que a própria coletividade, contaminada pela violência, avance em direção à crise mimética.

Por fim, salienta-se a delicadeza da dinâmica do mecanismo sacrificial, em que uma simples mudança na hierarquização dos seres humanos configura uma ameaça à eficácia do sistema. Além disso, outro risco passível de desregulá-lo envolve a repetição da imolação do mesmo tipo de vítima e a continuidade dos sacrifícios (Girard, 2008, p.55), pois o mecanismo perde sua eficácia, voltando a ameaçar toda a comunidade, inviabilizando sua capacidade de canalizar a violência no futuro.

Espanha: um leviatã fraturado

À luz dos conceitos apresentados, pretende-se refletir sobre a condição da Espanha como um Estado fraturado a partir de uma análise sociocultural, política e histórica. Dessa forma, torna-se imprescindível destacar alguns pontos fundamentais sobre o país: a) o seu caráter pluriétnico; b) o elevado grau de fragmentação espanhola desde o fim do século XVIII (Seixas, 1995, p.493). O autor afirma que fatores socioeconômicos e políticos como industrialização precária e mal distribuída; profundas divisões internas; ausência de unificação simbólica; Estado estruturalmente deficitário, que fomentaram desigualdades políticas e econômicas entre as regiões; sistema educacional frágil e financiado pelos municípios; coexistência de múltiplos símbolos e hinos; bem como, a burocratização, a corrupção e o surgimento de elites políticas econômicas locais, associados a um conflito constante entre absolutistas versus liberais e suas subdivisões e, principalmente, a ausência de um inimigo externo, tais condições viabilizaram o surgimento dos nacionalismos periféricos e seu confronto constante com o nacionalismo espanhol[2].

Nesse contexto, o violento século XIX foi palco para dez conflitos diferentes. Destaca-se o objeto comum a todos esses eventos: “a consolidação de um projeto de Espanha”. Dessa forma, a ditadura de Primo de Rivera (1923 – 1930), é herdeira natural dos acontecimentos do XIX, seu regime adota uma política de repressão aos nacionalismos periféricos e de suas identidades em favor do fortalecimento da identidade espanhola. Apesar disso, a tentativa fracassa e estes movimentos se fortalecem. Paralelamente, os regionalismos começam a surgir, enquanto o nacionalismo espanhol segue em processo de ruptura. À medida que o governo visa exercer um novo imperialismo sobre os países da América Latina, por meio do monopólio cultural e do apelo à hispanidade (Seixas, 1995, p.511-512), acrescenta-se uma mudança no imaginário coletivo espanhol, retomando a figura de inimigo externo. Além disso, o regime pouco avançou na resolução das tensões territoriais.

Após a Guerra Civil (1936 – 1939), Francisco Franco assume o poder e reestabelece uma política de repressão das identidades “não-hispânicas” em prol de um projeto de espanholização, que defendia um país unificado, centralizado e de identidade única construída à luz dos ideais combinados do fascismo e do nacionalismo espanhol de raiz católica tradicional (Seixas, 1995, p.516). Em suma, entre outros aspectos, esse período inicial fica marcado pela identificação do inimigo externo ao anti-hispânico. Ao longo dos anos 1950 e 1960, o cenário se torna mais complexo e intenso. Por um lado, os nacionalismos periféricos entram em um conflito geracional entre si, a partir do aumento das influências de múltiplas ideologias[3]. Do outro lado, a extrema-direita ganha novas vertentes, a partir do surgimento Círculo Español de Amigos de Europa (CEDADE), marcando o surgimento do neonazismo espanhol, pautado por uma defesa da identidade pan-europeia, a adesão às teses do “social-racismo” e a promoção de uma Europa das etnias (Viñas, 2013, p.43). A partir deste momento, surge a concepção do inimigo externo como aquele que não é europeu. Após o surgimento do CEDADE, outros grupos movimentos neonazistas surgem no cenário espanhol e se espalham pelo país. O Partido Español Nacional Socialista (PENS), assume o protagonismo, a partir do direcionamento de suas atividades para as ruas[4]. Isto evidência a limitação dos esforços e do projeto unificador franquista, especialmente, devido ao aumento da oposição interna. A influência dessa dinâmica sobrevive após o fim do regime (Seixas, 1995, p.516).

Nesse contexto, os anos 1970 se tornaram o palco de profundas transformações na sociedade espanhola. A transição democrática e a promulgação da Constituição de 1978, redigida com o apoio de movimentos nacionalistas periféricos[5], fomentou antigas tensões em razão do caráter de Estado único; outras consequências da Carta Magna foram o surgimento de uma extrema-direita vinculada aos nacionalismos periféricos; aglutinação dos nostálgicos do regime franquista; o surgimento de nacionalismos periféricos em outras regiões e o surgimento de novos movimentos regionalistas (Seixas, 1995, p.518). Simultaneamente, há uma escalada da violência encabeçada pelos movimentos neonazistas em toda a Espanha. (Viñas, 2013, p.44) Este cenário reflete um país que a um só tempo se abria gradualmente para o mundo, enquanto vivenciava a ebulição causada pelas questões territoriais, pelas imprecisões e contradições da Constituição (Seixas, op.cit, p.519-520), pela multiplicação dos atores antagônicos entre si e pelo crescimento de defensores de uma agenda exclusivista.

Dessa forma, a década de 1980 é marcada por uma tentativa de golpe de Estado, que além de fracassar, se torna um ponto de inflexão entre o neofranquismo e as novas gerações ultradireitistas (Viñas, 2013, p.46). Além disso, este período é marcado pelo surgimento do primeiro movimento ultradireitista separatista, o “Nosaltres Sols!”, que trazia um discurso marcado por um antiespanholismo e um antimarxismo combinado com a reivindicação territorial. Esta é a primeira manifestação de um discurso populista e anti-imigração “emergente”, que combinava características do racismo clássico com outras xenófobas e próprias do lepenismo francês” (Viñas apud Casals, 2013, p.52). Além disso, a chegada do estilo skinhead à Espanha traz uma agitação ainda maior para o panorama nacional, muitos deles vinculados a determinados grupos Ultras[6], que adotaram postulados nacional-socialistas e ao mesmo tempo se declaravam antiespanholistas e abertamente racistas (Viñas, 2013, p.53). Estabelecendo uma via de mão-dupla entre futebol e política na Espanha, de modo que o acirrado conflito ideológico do país também fosse levado para as arquibancadas.

Dentro desse contexto intenso e extremamente heterogêneo, a Espanha chega à década de 1990, marcada por uma profunda agitação causada pelas intensas mudanças na extrema direita espanhola, e as complicadas relações entre os nacionalismos periféricos e suas múltiplas vertentes. Nesse sentido, destaca-se o primeiro caso de potencialização desses movimentos a partir do mundo virtual, o que permitiu que adolescentes ultranacionalistas tivessem o site “Nova Catalunya” como ponto de convergência, viabilizando a aproximação de organizações como a Unitat Nacional Catalana (UNC) (Viñas, 2013, p.54). Nessa perspectiva, este cenário representa mais do que a evolução das dinâmicas socioculturais, políticas e identitárias na Espanha, evidencia também a consolidação de um projeto de hostilidade à diversidade a partir do estabelecimento do inimigo externo como aquele contrário ao projeto hispânico e europeu[7] em diversos setores da sociedade. Por meio de um discurso análogo aos que circulavam nas arquibancadas dos anos 1990, que relacionavam a imigração, a perda de empregos e até à ameaça de perda da identidade espanhola (Spaaij; Viñas, 2005, p.156), a Plataforma per Catalunya (PxC) ascende eleitoralmente em 2003, pleiteando a defesa de uma identidade nacional e/ou europeia ameaçada e focaliza seu discurso na denúncia de uma imigração descontrolada (Viñas, op.cit., p.55). Em contrapartida, a Espanha assiste a um crescimento vertiginoso das imigrações em seu território, sendo que, em menos de 20 anos, o país chegou a ter 9,9% de sua população composta por imigrantes (IGN, 2023)[8]. Os conflitos entre o nacionalismo espanhol e os periféricos, especialmente, no caso da Catalunha, cujo governo iniciou um referendo para proclamar a sua independência (2017), expõe múltiplas fissuras no aparelhamento estatal. Ademais, este período impõe outras dificuldades à Espanha, devido ao cenário de recessão econômica global, a estagnação de seu crescimento econômico, a crise imigratória e a emergência dos refugiados, que transforma o país no refúgio de 274.607 pessoas entre 2015 e 2022 (ACNUR, 2023) e o posiciona como o quarto colocado no ranking mundial de pedidos de asilo (ACNUR, 2022).

Em contrapartida, o mesmo período marca o surgimento de novas configurações da extrema direita espanhola, como o caso do partido VoX, que estabelece um projeto político pautado pela xenofobia (VoX, 2023). A partir do documento “España Decide” divulgado em seu site oficial em 2022, o “outro” é inserido como grande ameaça na agenda política formal, com base no argumento de que as políticas imigratórias atuais converteram a Espanha em um epicentro da imigração ilegal com consequências em todos os âmbitos: fronteiras, soberania e integridade territorial, relações de trabalho, ordem e segurança pública, coesão social e identidade nacional (VoX, 2022). Nesse sentido, a Espanha atual se mostra um território de muitos conflitos, vinculados ao seu projeto nacionalizador e as dinâmicas políticas que se estabeleceram no país ao longo do tempo. Nota-se a violência subjacente a estes enfrentamentos ideológicos, viabilizando um cenário fértil ao surgimento de movimentos que trazem em suas agendas o extermínio simbólico ou concreto do “outro”. Portanto, a partir dos elementos apresentados, afirma-se: a) as fraturas no Estado espanhol estão vinculadas a conflitos territoriais, ideológicos e identitários sob diversas formas e em distintas camadas da sociedade, possibilitam a instabilidade política e prejudicam a canalização da violência; b) a prevalência da identificação do “outro” como o inimigo externo no imaginário coletivo, iniciando como o anti-hispânico e se perpetuando como o “não-europeu”.

Espanha: as fraturas do leviatã e o fortalecimento do mecanismo sacrificial

No futebol espanhol, observa-se a presença dos mesmos conflitos existentes na sociedade. Assim, ao traçar um breve histórico do racismo, da xenofobia e de suas diversas fontes, busca-se mostrar o vínculo implícito existente entre as vítimas de tais agressões e a figura do inimigo externo, bem como, a possibilidade de corrupção do mecanismo sacrificial a partir da repetição das vítimas.

A partir dos anos 1960 – 1970, os clubes espanhóis passam a receber um maior fluxo de jogadores imigrantes, especialmente, da América Latina. Gradualmente, a chegada de mais jogadores negros, a partir das décadas de 1980 – 1990, trouxe mais diversidade ao campeonato espanhol. Dessa forma, a combinação do crescimento da influência de ideologias de extrema direita entre os jovens torcedores e o crescimento da presença de profissionais negros no futebol espanhol, faz com que ocorra uma transformação e uma escalada gradual nas formas de violência racial. Assim, alguns grupos de torcedores começam a realizar manifestações racistas contra jogadores e técnicos, e os clubes se tornam alvos de agressões em represália à contratação destes profissionais, enfrentando ameaças e insultos (Spaaij; Viñas, 2005, p.154-155). Nesse contexto, os autores apresentam uma longa lista com diversos casos, dentre eles, salienta-se a pichação dos muros do Santiago Bernabéu com os dizeres “nem negros, nem sudacas”[9], em protesto contra a chegada de alguns possíveis treinadores, entre eles, um português, um argentino e um colombiano. Ademais, os autores destacam os ataques racistas direcionados ao nigeriano Rashid Yekini no Sporting Gijón, o camaronês Tommy N’Knono pelo RCD Espanyol, seu compatriota Jacques Soongo’o no Deportivo La Coruña, Wilfred no Rayo Vallecano e, por fim, ao colombiano Freddy Rincón no Real Madrid. A respeito destes episódios destaca-se a associação entre racismo e xenofobia. Apesar dos casos citados terem o protagonismo de grupos ultras, Spaaij e Viñas trazem exemplos de casos de racismo e xenofobia no futebol espanhol praticados por dirigentes, técnicos, torcedores comuns e da imprensa (ibid. p.141-153).

Além disso, existem elementos que sugerem uma postura complacente, reducionista e negacionista entre alguns atores da sociedade espanhola, especialmente, das autoridades e da imprensa. Entre as autoridades, cita-se o fato de o projeto de lei específico para o combate ao racismo encontrar-se parado desde 2022 (Poder, 360, 2023), bem como, a crença estabelecida de que o racismo é um problema em outros países, mas não na Espanha[10]. Essa postura também pode ser verificada especialmente nos posicionamentos de alguns veículos de imprensa, que, também optam por culpabilizar grupos específicos[11]. Por fim, entre as organizações antirracistas, algumas consideram que os torcedores comuns não são os responsáveis, pois o problema são os ultras e sua falta de educação. Em contrapartida, Spaaij e Viñas apresentam uma extensa lista de episódios racistas e xenofóbicos que demonstram que esta violência é um problema real e capaz de ultrapassar as paredes dos estádios.

Nesse sentido, os elementos apontados sugerem que existe uma confluência de fatores que facilitam a manifestação de ideologias racistas e xenófobas no futebol espanhol, tornando- o um ambiente com uma violência subjacente e um território hostil à presença do “outro”. Por outro lado, devido à globalização do futebol, o número de estrangeiros e minorias étnicas presentes nos clubes espanhóis tende a aumentar ainda mais. Sendo razoável concluir que ofensas como “pegue seu bote e saia daqui”; “eles nos invadem e nos matam” (Spaaij; Viñas, 2005, p.149-153) aliadas a uma infinidade de combinações possíveis de expressões e cânticos racistas, não são exceções e nem casos isolados, apesar da forma de tratamento que foram historicamente adotadas. Isto se torna mais evidente à medida que os casos são observados, sem perder de vista os fenômenos pelos quais a sociedade espanhola passa.

A partir dos episódios apresentados nessa seção e, mais recentemente, a enxurrada de agressões direcionadas a Vinicius Júnior e os que não foram computados por ocorrerem nas divisões inferiores do futebol espanhol (Spaaij; Viñas, 2005, p.156), pode-se dizer que todos guardam em comum o fato de serem construídos como inimigo perenes da comunidade nacional. Afinal de contas, são negros ou de outras etnias, vem de diversos contextos culturais distintos e são sistematicamente acusados de tirar os empregos dos nativos (ibid., p.144). Em outras palavras, as vítimas corporificam a figura abstrata do inimigo externo.

O caso Vini Jr.

Ao longo da temporada 2022 – 2023, Vinicius Júnior tornou-se vítima de uma massiva campanha racista e xenofóbica em diversos estádios e outros espaços da Espanha. Os ataques em si não configuram algo inédito, mas chamam a atenção pela sua quantidade, distribuição pelo território espanhol, variedade das fontes dos ataques e a ocorrência online ou offline. A partir da análise do caso à luz do conceito de mecanismo sacrificial de René Girard afirma-se a possibilidade de classificar Vinicius Júnior como um bode expiatório com base na interpretação dos episódios de violência racial utilizando os critérios estabelecidos por Girard para o êxito do mecanismo sacrificial. A este respeito, cabe lembrar que estes são: a) a vítima deve ter um vínculo implícito com o objeto que ela substitui; b) ela deve ser percebida como relativamente indiferente; c) ela não deve ser vingável.

Em relação ao critério “a”, afirma-se que Vinicius guarda um vínculo implícito com a figura abstrata do inimigo externo. Ele é brasileiro, negro e trabalha na Espanha. Em outras palavras, ele é um estrangeiro não europeu e não hispânico, além de competir com espanhóis em seu campo. Dessa forma, pode-se confirmar o vínculo implícito entre vítima e objeto. Ademais, os cânticos e memes racistas endereçados ao jogador, cumprem um papel fundamental para torná-lo elegível ao sacrifício: o de desumanização.

Além disso, à luz do critério “b”, pode-se afirmar que Vinicius Júnior é relativamente irrelevante para a comunidade. Apesar de seu destaque a nível esportivo, como marca e sua personalidade discreta. Vinicius, em certa medida, é relevante para seu nicho específico. No entanto, isto não se confirma em relação à sociedade. Nesse sentido, argumenta-se que sua irrelevância para a sociedade está em: 1) o cenário de guerra de “todos contra um” refletido a partir da convergência de diversos ataques; 2) no tratamento dado pelo Estado ao jogador, especialmente, no arquivamento dos primeiros casos (Observatório da Discriminação Racial no Futebol, 2023). Ressalta-se que constitucionalmente, Vinicius tem todos os direitos de um espanhol, pois é portador de cidadania espanhola. Portanto, ao arquivar os primeiros casos sob justificativas falaciosas, o sistema judiciário espanhol contrariou a própria constituição[12]. Nesse sentido, pode-se identificar a aquisição de direitos e, sobretudo, sua materialização como critério de pertença e relevância à comunidade. Apesar disso, o Estado espanhol não permitiu que Vinicius concretizasse essa possibilidade, e demonstrou isso através das ações do sistema judiciário. Ademais, cada ataque recebido por Vinicius é a negação desse direito a pertencimento e relevância, é relegá-lo ao papel do “outro” indesejado. Portanto, conclui-se, a partir destes elementos, que ele é irrelevante para a sociedade.

A confirmação do critério “c” surge a partir da junção dos critérios “a” e “b”, que faz com que Vinicius Júnior seja percebido pela comunidade como alguém que não pertence, um “outro”. Tornando-o alguém cuja defesa não pode vir da estrutura interna do Estado e da comunidade, portanto, ele não é vingável. Isto pode ser verificado a partir de uma análise acerca do tratamento dado as denúncias do caso, especialmente as primeiras, cujo arquivamento ensejaram mais violência, que possibilitou a escalada das agressões. Ademais, as punições apontam para um protecionismo do sistema diante dos agressores tanto para indivíduos quanto para clubes, como no caso do Valencia[13]. Isto também se reflete nas repercussões dos ataques a Vinicius na imprensa, que apontam para um negacionismo do problema, culpabilizando a vítima pelas agressões recebidas por conta de seu estilo de jogo provocador, atualizando um discurso já estabelecido; gerando a impressão de que a punição ao clube é mais absurda do que o ato de violência protagonizado pelos torcedores da mesma agremiação. Portanto, pode-se concluir, a partir dos critérios a, b e c, que Vinicius preenche todos os requisitos para ser o bode expiatório.

Segundo a teoria girardiana, o assassinato da vítima sacrificial gera uma nova ordem social pacificada. Nesse contexto, consideram-se: 1) a continuidade dos ataques a Vinícius Júnior e a inércia do sistema judiciário como indícios de uma possível desnaturação do mecanismo sacrificial, resultando na continuidade da violência; 2) as agressões a Vinícius não impediram que outros também fossem atacados, o que sugere a corrupção do mecanismo; 3) a imolação de Vinícius não cessou as agressões contra ele; 4) os efeitos do sacrifício podem ainda não ter tido tempo hábil para serem percebidos. Tais efeitos estão condicionados à efetividade do posicionamento da liga e das autoridades espanholas; 5) Vinícius simboliza a figura do inimigo externo, uma construção sociocultural que persiste no imaginário coletivo da sociedade espanhola.

Diante disso, entende-se que essa dinâmica sacrificial deve se manter. Em detrimento do papel de vítima expiatória, por definição, rotativo. De tal modo que, os ataques desferidos a Vinicius pouco tenham a ver com sua própria figura. Apesar disso, o próprio destaque do jogador, o coloca como a vítima mais provável[14], dado que se torna mais indesejado do que os outros. Nesse sentido, outro indivíduo, em iguais condições, pode igualmente passar por essa situação. Em síntese, a junção dos pontos “1”, “2” e “3”, apontam para um cenário de incerteza com maior probabilidade de continuidade da violência racial associada ao mecanismo sacrificial.

Em resumo, concluiu-se que o atleta preenche todos os requisitos para ser uma vítima sacrificável. Após essa discussão, verificaram-se as consequências de seu sacrifício. A este respeito foram levantadas duas possibilidades: a) o mecanismo sacrificial desnaturou e o resultado é mais violência; b) a nova ordem continua sendo instaurada. Nesse sentido, julgou- se que o mais provável é a desnaturação do mecanismo, resultando em uma nova ordem, mas ainda violenta e hostil a presença do “outro”.

Considerações finais

O objetivo deste estudo foi analisar a relação entre os casos de racismo no futebol espanhol, as fraturas do Estado, a ineficácia do sistema judiciário na canalização da violência, a retomada do mecanismo sacrificial e sua desnaturação a partir da análise dos sucessivos ataques racistas e xenofóbicos enfrentados pelo jogador Vinicius Júnior do Real Madrid. Para tanto, o primeiro passo foi conceituar o Estado como um ordenador da vida social, responsável por garantir a paz e impedir que a violência se alastre. Além disso, a partir da teoria mimética identificou-se o mecanismo sacrificial como uma válvula de escape das sociedades, cuja imolação de uma única vítima tem a função de evitar o contágio violento entre os membros da comunidade, gerando uma nova ordem social pacificada. Identificou-se, ainda, quais são os requisitos e as características desta vítima expiatória. Ademais, a partir da teoria girardiana, identificou-se que nas sociedades modernas, é o sistema judiciário quem executa a função do mecanismo sacrificial, sendo necessário para isso, um sistema político forte e estável. Dentro desse contexto, argumentou-se que no caso de um sistema político fraco e instável, o judiciário enfraquece e o mecanismo sacrificial se fortalece.

A partir desse debate conceitual, estabeleceu-se o estudo do caso Vinicius Júnior. Explorando-se a Espanha como pano de fundo dos acontecimentos, por meio de um estudo sociocultural e político, abordando, desde o século XIX, os eventos políticos e históricos que possibilitaram a concretização da figura do inimigo externo, identificado como todo aquele não é europeu ou hispânico no imaginário coletivo. Nesse sentido, pode-se afirmar que a nação espanhola é um Estado fraturado e que vivencia uma instabilidade política, apesar de ser uma democracia consolidada com base nos múltiplos conflitos que ocorreram historicamente.

A partir da análise do ambiente futebolístico espanhol, especialmente, em relação às diversas fontes dos ataques e múltiplas vítimas. Destaca-se a persistência deste tipo de violência ao longo do tempo e a convergência entre as agressões e as demandas políticas presentes na sociedade espanhola. Além disso, ressalta-se o fato de as vítimas serem passíveis de vinculação à figura abstrata do inimigo externo. Desse modo, pode-se concluir que o mecanismo sacrificial, na Espanha, pode estar desnaturado ou em processo de desnaturação, em virtude da repetição do sacrifício do mesmo tipo de vítima incessantemente.

Por fim, Vinicius Júnior foi analisado a partir dos critérios estabelecidos por René Girard para um sacrifício exitoso, evidenciando a compatibilidade total entre a figura do jogador e o papel de bode expiatório. Possibilitando que os massivos ataques racistas direcionados à sua pessoa, possam ser interpretados a partir desta perspectiva. Vinicius guarda vínculo implícito com a figura do inimigo externo. Além disso, para a sociedade espanhola, ele é relativamente irrelevante, argumento que se sustenta diante do tratamento oferecido a ele pelo Estado espanhol. A conjunção destes fatores, o torna alguém não vingável pela sociedade. Elegendo-o ao papel de bode expiatório. Após essa constatação, analisaram-se as consequências deste sacrifício, dado que uma nova ordem deveria surgir, verificou-se duas possibilidades: a) o mecanismo está desnaturado e o resultado será violência; b) ainda não é possível ter certeza, pois continua sendo instaurada a nova ordem. Para tanto, destacou-se o papel fundamental do Estado espanhol para a confirmação de a ou b, no entanto, salientou-se que o mais provável seja a persistência da violência racial no futebol espanhol, dada a possibilidade de desnaturação do mecanismo, que tem sacrificado o mesmo tipo de vítima “inimigo externo” via ataques racistas e xenofóbicos por décadas.

Em relação às limitações deste estudo afirma-se: 1) a impossibilidade de ir a campo; 2) a maioria dos artigos sobre futebol na Espanha e história da Espanha estão em espanhol ou em catalão, demandando esforço de tradução, tornando o desenvolvimento da pesquisa mais demorado e restringindo o volume de informações possíveis de serem processadas, além de se encontrarem em bases pagas; 3) a necessidade de constante atualização deste estudo acompanhando o desenrolar dos eventos relacionados ao caso Vinicius Júnior. Estes fatores evidenciam a necessidade de mais estudos serem realizados, apesar dos êxitos desta pesquisa em seu propósito.

Referências

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Notas

[1] Os critérios resumem a lógica do mecanismo sacrificial. Dado que a crise mimética é caracterizada por uma sucessão de vinganças infinitas, é preciso que o bode expiatório seja alguém, que ao ser alvo de toda a violência, não gere mais vinganças. Isto só é possível, caso a vítima sofra um processo de desumanização ao ponto de se tornar irrelevante socialmente.

[2] A persistência dos nacionalismos periféricos no século XXI, demonstra a continuidade do conflito. De acordo com Seixas, isto se deve mais ao fracasso do nacionalismo espanhol em estabelecer uma unidade nacional do que a uma resistência organizada. Ressalta-se a dinâmica fluida entre ambos os movimentos, estabelecida a partir de processos contrapostos, dialéticos e interatuais, em que o fracasso de um significa o êxito do outro e vice-versa (Seixas, 1995, p.494).

[3] Ideologias marxistas-leninistas; doutrina do colonialismo interno e a influência política dos países do terceiro mundo (Seixas, 1995, p.516)

[4] O PENS rompe com a militância intelectual e elitista do CEDADE e passa a divulgar um discurso ortodoxo combinado com um anticomunismo radical (Viñas, 2013, p.44)

[5] A constituição de 1978 estabelece a Espanha como nação política única dotada de um regime de estatutos de autonomia generalizáveis a todos os territórios e faz menção especial às nacionalidades históricas, oferecendo mais autonomia para algumas regiões vinculadas à essas nacionalidades, por exemplo, a Catalunha.

[6] Grupos de Torcedores Radicais. Destaca-se que ser ultra não significa ter uma ideologia específica, o espectro político dentro destes grupos é extremamente heterogêneo.

[7] Os autores apresentam uma lista de incidentes envolvendo torcedores radicais, os relatos vão desde espancamento, assassinato até manifestações neonazistas e xenofóbicas (Spaaij; Viñas, 2005, p. 147; p.156).

[8] Instituto Geográfico Nacional de España.

[9] Termo pejorativo para latino-americanos

[10] Os autores apontam a existência de uma crença partilhada pelas autoridades de que o racismo é um problema na Inglaterra, na Itália e na Alemanha, mas não na Espanha (Spaaij; Viñas, 2005, p.157)

[11] Spaaij e Viñas relatam o posicionamento geral da imprensa espanhola, um exemplo desta postura pode ser visto na página 149, onde os autores relatam que “Apesar da cobertura televisa evidenciar que a grande maioria dos torcedores do Getafe direciona ofensas racistas ao atacante camaronês Samuel Eto’o do F.C. Barcelona, apenas os ultras foram culpados pela imprensa” (Spaaij; Vinãs, 2005, p.142-149). Ver também o posicionamento do jornal ABC nas matérias “A Espanha é um país racista? Uma generalização que não corresponde à realidade” e Igualdade faz balanço depois do “caso Vinicius” e atendeu 1.570 vítimas de racismo na Espanha em 2022 (ABC, 2023) (tradução nossa).

[12] Os artigos 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 20, que versam, em síntese, da proteção à dignidade da pessoa humana, dos direitos adquiridos pelo cidadão espanhol, a garantia de suas liberdades públicas, a garantia da integridade física e moral, a igualdade ante a lei sem distinção de sexo, cor, religião ou qualquer circunstância pessoal, ou social, bem como, a limitação do uso da informática para proteger os direitos desses cidadãos (Espanha, 2003, p.4- 6).

[13] Cf.  as notícias “Detidos por bonecos de Vinícius Júnior enforcado são liberados com ordem de restrição” (Um Dois Esportes, 2023); “Vinícius Júnior foi intimidado por programa de televisão para não publicar vídeo contra racismo”; “Após polêmica sobre racismo, Vinícius Jr. Volta a ser atacado por zagueiro espanhol: “Ele não é um exemplo”.” (Observatório da Discriminação Racial no Futebol, 2023); “Jornal de Valência critica decisão de fechar setor do estádio Mestalla: ‘Vergonha sem precedentes’ (O Dia, 2023); “Tebas responde Vinícius Júnior e nega racismo: “Não posso permitir que manche a imagem da LaLiga” (Globo Esporte, 2023)

[14] Possivelmente segue-se uma lógica similar à análise combinatória. Tendo sempre o fator multiplicador “e”. No caso de Vinicius, ele é negro E estrangeiro E latino E jogador de destaque E concorrente dos espanhóis E ameaça aos clubes adversários etc.

Sobre o autor

Felipe Torres Benevides

Bacharel em Administração pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), professor do curso de Administração do Centro Universitário Estácio de Sá - SP, pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (LABÔ/FUNDASP-PUC/SP), onde desenvolve estudos sobre o racismo como expressão do mecanismo sacrificial, com destaque para o ambiente do futebol espanhol no Grupo de Pesquisa Diálogos da Diáspora: Racismo e Antissemitismo.