Revista Laboratório Temática 5 – Diálogos da Diáspora - Racismo e Antissemitismo

Estrangeiridade

Introdução

O livro O homem Moisés e a religião monoteísta (1939), de Sigmund Freud (1856 – 1939), é um trabalho psicanalítico e clínico considerado um texto-testamento. Foi publicado em Londres durante seu exílio, ocorrido pelo motivo de ser judeu. Freud deixou Viena para não ser morto por ser, especificamente, judeu. Já suas irmãs, judias, que ficaram por lá, foram assassinadas pelos nazistas. Esse trabalho de Freud é muito rico, com diversos desdobramentos. É uma leitura agradável, empolgante e, até, aventureira.

Por meio de sua pesquisa, o psicanalista sustenta que Moisés, o grande legislador do judaísmo, teria sido um egípcio e dessa maneira produz um corte em qualquer ideia de coesão maciça da identidade judia, pois há o estrangeiro em suas entranhas. Ou o eu é um outro; ou quando eu falo, quem fala?

Selecionei um pequeno pedaço do Moisés de Freud que me parece condensar pontos importantes referentes ao judaísmo, porém o fio que o conduz é a estrangeiridade do povo judeu.

A edição que escolhi me foi indicada pela psicanalista e professora Betty Bernardo Fuks1. Ainda assim, quando precisei, recorri a outra edição, seguindo as trilhas do primeiro psicanalista que disse

“que um procedimento como o nosso, o de aceitar o que nos parece útil no material que nos é apresentado, rejeitar o que não nos convém e reunir os diferentes fragmentos de acordo com a probabilidade psicanalítica, se mantemos claro que uma técnica desse tipo não pode dar qualquer certeza de que cheguemos à verdade, então pode-se justamente perguntar por que estamos empreendendo este trabalho. A resposta constitui um apelo ao resultado do trabalho. Se abandonarmos grandemente a rigidez dos requisitos que se exigem de uma investigação histórico-psicológica, talvez seja possível lançar luz sobre problemas que sempre pareceram merecer atenção e que acontecimentos recentes impuseram de novo à nossa observação (FREUD, 1939/1996, p.119).

“O pobre povo judeu” (FREUD, 1939/2020, p.143), assim começa Freud esse parágrafo e, embora não seja essa sua abordagem, nos modos de numa interpretação psicanalítica, poderíamos pensar que já se produz um corte no corriqueiro discurso que afirma: o rico povo judeu. Essa entidade que, segundo as teorias conspiratórias, tem tanto poder que pode controlar o mundo. Aliás, Freud se refere a isso em seu Moisés. Sugere que o domínio mundial faraônico seria o motivo para o surgimento da ideia monoteísta: um deus universal, senhor de tudo. Essa ideia é transmitida a outro povo, se transforma em seu patrimônio mais precioso e o mantém vivo ao lhe presentear com o orgulho de ser o povo escolhido. Freud escreve que é a religião do pai primordial, a qual contém a esperança de recompensa, distinção e, finalmente, domínio do mundo. No entanto, essa última fantasia de desejo foi abandonada pelo povo judeu há muito tempo. Mas, não surpreende, ainda vive entre quem odeia esse povo na crença na conspiração dos Protocolos dos sábios de sião (FREUD, 1939/2020, p.137): “Texto conspirativo e antissemita que denuncia um suposto complô judeu para dominar o mundo. Surgido na Rússia do século 19, muitos creem ser a primeira publicação do antissemitismo moderno” (GHERMAN, 2022, p.169).

Então, “O pobre povo judeu que com habitual obstinação continuou a desmentir o assassinato do pai pagou caro por isso no decorrer dos tempos. Sem cessar o repreenderiam: ‘Vocês mataram nosso Deus'” (FREUD, 1939/2020, p.143). Imagine o que é viver por séculos em terras onde você é acusado de ter matado o Deus. Como é sabido, os judeus foram perseguidos em terras cristãs. Então fica difícil não ter pelo menos um pé atrás com a cristandade, “e até mesmo em relação ao Ocidente que não soube ou não pôde, apesar dos valores que alardeavam, permitir-lhes viver em liberdade” (CHEMOUNI, 1992, p.184). Será isso um tipo herança arcaica que, conforme explica Betty Fuks, é a “indestrutível rede de traços jamais conscientes, mas traduzida, a cada geração, retranscrita de tempos em tempos, segundo novos nexos” (2014, p.64)? Outra abordagem poderia ser que a relação do judeu com o não-judeu nem sempre ocorre numa “hostilidade vivida de parte a parte, ela preexiste à longa história dos judeus no Ocidente cristão” (CHEMOUNI, 1992, p.184).

Freud segue dizendo que

essa censura procede, se traduzida corretamente. Relacionada com a história das religiões, seu texto seria: “Vocês não querem admitir que assassinaram Deus” (o modelo de Deus, o pai primordial, e suas posteriores reencarnações). Um complemento deveria anunciar: “Nós sem dúvida fizemos a mesma coisa, mas nós o confessamos, e desde então, estamos absolvidos (FREUD, 1939/2020, p.143).2

Portanto, segundo tal hipótese, basta uma confissão que se chega à absolvição. Aqui podemos refletir sobre uma máxima que circula acerca do suposto superdimensionamento da Shoá que resulta, então, em consciência de culpa e reparações ao povo judeu, maior vítima do genocídio nazista. O nazismo ocorreu em terras da branquitude e revelou aquilo que ela tem horror: sua própria barbárie. Não ocorreu em terras distantes, longe dos olhares. O espelho virou em sua direção que, para se purificar, confessou. Assim, pode almejar a um retorno para a posição de pureza e justiça, a qual nunca ocupou. Mas que, iludida, crê ocupar. Isto posto, é cabível questionar a quem serve a instrumentalização do Holocausto (aqui uso esse significante como característica da instrumentalização) e se é utilizado para, exatamente, não se falar de outras vítimas, de outras tragédias.

Em tom jocoso, o psicanalista afirma que “Nem todas as censuras com que o antissemitismo persegue os descendentes do povo judeu podem apelar a uma justificativa semelhante” (FREUD, 1939/2020, p.143). E afirma que um “fenômeno com a intensidade e a duração do ódio dos povos aos judeus naturalmente tem de ter mais do que apenas uma razão”

(FREUD, 1939/2020, p.143). Então diz que se pode “descobrir toda uma série de razões, algumas manifestamente derivadas da realidade e que não necessitam qualquer interpretação” (FREUD, 1939/2020, p.143). Me pergunto, quais seriam? Será que entra aquela que afirma que os judeus são ricos? Pão-duros? Numa parte do documentário Antissemitismo, 2000 anos de história (2022), obtemos uma pista que diz que em vários reinos da Europa os judeus foram proibidos de exercer a maioria dos trabalhos. Os permitidos eram o de agiota ou cobrador de impostos que, além de impopulares, estavam proibidos aos cristãos por serem considerados impuros! “Os judeus eram uma minoria intermediária entre poderosos e reprovados, entre dominantes e dominados” (ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA, 2022, grifos meus) que exerciam funções limitadas que os príncipes não queriam dar à plebe e, por isso, eram tremendamente úteis. O documentário afirma que os poderes estavam criando uma classe subordinada, entendida como escravizada. “Os judeus eram legalmente escravizados e forçados a exercer ofícios desprezados pela sociedade, mas que aumentavam o poder dos reis” (ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA, 2022). A Inglaterra foi um dos primeiros lugares a impor tal posição aos judeus, o que durou cerca de 200 anos. “Uma ínfima minoria adquiriu uma certa posição social, e por causa da publicidade que foi feita disso, os judeus foram acusados de terem uma relação doentia com o dinheiro” (ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA, 2022). Ora, os oprimidos aproveitam as oportunidades, se desdobram, aprendem a fazer com o que têm e nas condições em que estão inseridos. Resistência, reexistência?

Vale destacar o “entre” (“entre poderosos e reprovados, entre dominantes  dominados”), pois este significante é bem corriqueiro na história do povo judeu que, geralmente, se encontra em constante dentro-fora, como eterno estranho-estrangeiro. Visível e não-visível (mas sempre percebido). Dividido – não como “um exilado político expulso de sua própria pátria” (FUKS, 2000, p.48) -, o sujeito da diáspora já nasceu “em um país no qual ele se situa simultaneamente dentro e fora, num entre-dois cujas ‘fronteiras’ lhe permitem partilhar a identidade do povo da nação na qual ele existe e manter um ‘pedaço de si’ sempre alhures” (FUKS, 2000, p. 48). Essa divisão é um universal para os falantes pois há um estranho no eu.

A dinâmica entre ser percebido e não ser percebido acompanha os trajetos do ódio aos judeus. Quando percebidos demais, produz-se táticas de redução dos destaques. Quando são, digamos, desaparecidos, as sensações de estranhamento e de perigo aumentam, pois, agora, onde estarão os judeus? Ou seja, são percebidos. Ainda que não estejam “de corpo presente”. Portanto, há uma abstração que, num ciclo, por não ser suportada, exigirá corporificação.

Em outra oportunidade seria possível debater sobre os judeus de território (ROUDINESCO, 2010, p.95), aqueles que vivem sob uma hegemonia judia e que, dessa maneira, à diferença dos diaspóricos, não teriam acesso a essa posição de estrangeiro. Porém, seria possível considerar que Israel, dentro do universo dos países é, muito notadamente, o judeu? O povo judeu mantém algo de estrangeiro, de infamiliar em si mesmo, como um furo na hegemonia. Então, não deixa de causar lamentos que para o povo judeu sobreviver tenha que se curvar à norma (que é ter um país) e perder, de certa maneira, sua posição-tesouro como não-todo dentro da norma (voltarei a isso).

Seguindo no Moisés, ainda sobre as razões do antissemitismo, há também as

outras [razões], mais profundas, oriundas de fontes secretas, que se poderia reconhecer como os motivos específicos. Dentre as primeiras [derivadas da realidade], a censura de forasteirismo é decerto a mais infundada, pois em muitos lugares hoje dominados pelo antissemitismo os judeus pertencem às parcelas mais antigas da população, ou estavam inclusive presentes antes dos moradores atuais (FREUD, 1939/2020, p.143).

Vamos desdobrar esse “forasteirismo” utilizando outra edição na qual a tradução é “ser estrangeiro” (FREUD, 1939/1996, p.104). Aqui, algo desliza e podemos pensar mais em estrangeiridade, como um dentro-fora constante dos judeus nas sociedades onde vivem. Freud cita o exemplo da cidade de Colônia, na qual os judeus chegaram com os romanos, antes mesmo que fosse ocupada pelos germanos. Mas veja que curioso: talvez a primeira representação do nariz adunco date de 1170 e vem de uma cidade perto de Colônia, na Alemanha. Tal nariz se tornou uma marcação do judeu na arte do medievo. Esse nariz confere uma aparência animal e pretende representar o caráter dos judeus: negativo, diabólico. Ou apenas funcionar como motivo de piadas (ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA, 2022).

Outras justificativas do ódio aos judeus são mais fortes, como a circunstância de que na maioria das vezes eles vivem como minorias entre os povos, pois o sentimento de comunidade das massas precisa como seu complemento da hostilidade contra uma minoria de fora, e a debilidade numérica desses excluídos convida à sua opressão (FREUD, 1939/2020, p.143-144).

Aqui, o “de fora” parece ganhar um outro aspecto que não se relaciona com a geografia, digamos, palpável, pois se são tantas vezes nativos da região ou estão lá por gerações, como seriam, justamente, de fora?

Outra razão para o ódio específico referente aos judeus seria o fato de que são diferentes em algum aspecto dos “povos anfitriões”, porém, não fundamentalmente diferentes pois, diferentemente do que afirmam seus inimigos, não são de raça estrangeira, mas se compõem, muitas vezes, de “restos de povos mediterrâneos e herdeiros da cultura mediterrânea” (FREUD, 1939/2020, p.144). No entanto, expõe Freud, os judeus são diferentes de uma maneira indefinível e “a intolerância das massas, notavelmente, se manifesta de maneira mais forte contra pequenas diferenças do que contra diferenças fundamentais” (FREUD, 1939/2020, p.144). Não parecem nítidas quais seriam essas diferenças fundamentais. Nesse sentido, o judaísmo e seus representantes, isto é, as pessoas que fazem parte do povo judeu, não se encaixam muito bem nas definições que consagram “o preto e o branco”, o “ou isto ou aquilo”, pois há algo que resta a ser dito. Como afirmou Freud, os judeus são “diferentes de maneira indefinível” (1939/2020, p.144). Este é um universal pois quanto ao sujeito algo sempre falta, algo sempre resta estrangeiro. Esse indefinível aponta para o empenho em identificar as pessoas judias por meio de sinais visíveis: nariz, estrela amarela etc. Será que o “indefinível” comporta uma sensação de estranhamento? Noutros termos, dentro do significante “familiar”, de acordo com os ensinamentos de Freud, encontra-se seu oposto (“estranho”), o que aponta para a impureza do significante (FREUD, 1919/1996, p.258). Por conseguinte, qualquer ideia de pureza não se sustenta: não há falante puro. Em outra parte de seu Moisés, Freud nos lembra que

o sagrado originalmente não é outra coisa senão a vontade continuada do pai primordial. Com isso se lançaria luz sobre a ambivalência das palavras que expressam o conceito de sacralidade. É a ambivalência que domina de maneira geral a relação com o pai. Sacer não significa apenas ‘sagrado’, ‘consagrado’, mas também algo que só podemos traduzir como ‘infame’, ‘abominável’ (FREUD, 1939/2020, p.182).

Ele explica que a vontade do pai não era apenas algo que se tinha que honrar, mas, também, diante do que se ficava horrorizado por exigir uma dolorosa renúncia pulsional. Nessas observações sobre a inviabilidade da pureza entram, também, as afirmações freudianas de que o eu se mistura ao outro e que há continuidade entre o individual e o coletivo. Destaco que o “conceito coletivo de ‘ego’ [é] um conjunto […] constituído de maneira heterogênea, em épocas diferentes” (FREUD, 1910/1970, p.199).

Sobre as pequenas diferenças, Freud afirma que são elas, dentro do escopo maior das semelhanças, que aguçam a estranheza e a hostilidade, o famoso narcisismo das pequenas diferenças: “a hostilidade que em todas as relações humanas combate vitoriosamente os sentimentos de solidariedade e sobrepuja o mandamento de amor ao próximo” (FREUD, 1917/2013, p.374). Ele também diz que há, entre os humanos, uma inclinação à satisfação pela agressão. Nesse sentido, um grupo menor serve como alvo para essa satisfação pulsional sob a forma de hostilidade. Por um lado une-se um grupo em torno do amor, por outro, elege-se um inimigo comum para receber o ódio e a agressividade.

Ainda sobre o narcisismo das pequenas diferenças, Freud lembra que são comunidades com territórios vizinhos que mais se empenham em rixas. Então, é possível notar que por meio de tal satisfação

a coesão entre membros da comunidade é tornada mais fácil. Com respeito a isso, o povo judeu, espalhado por toda a parte, prestou os mais úteis serviços às civilizações dos países que o acolheu; infelizmente, porém, todos os massacres de judeus na Idade Média não bastaram para tornar o período mais pacífico e mais seguro para seus semelhantes cristãos (FREUD, 1930/1996, p.119).

Sobre a outra peculiaridade dos judeus, Freud diz que ainda mais intenso é o efeito desse segundo ponto:

o fato de que eles resistem a todas as opressões, de que as mais cruéis perseguições não conseguiram exterminá-los, de que mostram, pelo contrário, a capacidade de se afirmar na vida profissional e, onde são admitidos, fazer contribuições valiosas a todos os feitos culturais (FREUD, 1939/2020, p.144).

Ele assegura que os

motivos mais profundos do ódio aos judeus lançam raízes em épocas remotíssimas, agindo a partir do inconsciente dos povos […] o ciúme em relação ao povo que se declarou filho primogênito e favorito de Deus-Pai ainda hoje não foi superado pelos outros (FREUD, 1939/2020, p.144).

Considera essa afirmação uma ousadia e se diz preparado para que pareça, de início, indigna de crédito – com ironia, diz que é como se os outros povos tivessem dado crédito a tal pretensão!

Além disso, entre os costumes pelos quais os judeus se segregaram, o da circuncisão causou uma impressão desagradável, sinistra, que provavelmente se explica por lembrar a temida castração e tocar assim numa parcela do passado pré-histórico que se prefere esquecer (FREUD, 1939/2020, p.143-144).

A castração é o sentimento inconsciente de ameaça que a criança experimenta quando se depara com a diferença sexual (PLON e ROUDINESCO, 1998, p.105).

A circuncisão é o substituto simbólico da castração que o pai primordial, baseado na plenitude de sua onipotência, tinha imposto aos filhos, e quem aceitava esse símbolo mostrava com isso que estava disposto a se submeter à vontade do pai, mesmo que lhe impusesse o mais doloroso sacrifício (FREUD, 1939/2020, p.182-183).

Freud considera a circuncisão um “fóssil-guia” (FREUD, 1939/2020, p.77) para seu trabalho. A circuncisão é o “sinal externo da religião de Moisés” (FREUD, 1939/2020, p.106) E, curiosamente, é um sinal visível da religião que proíbe “quaisquer representações plásticas” (FREUD, 1939/2020, p.59). O ritual judeu da circuncisão, que em hebraico se chama brit milá e significa “pacto da palavra” e já aponta para o campo do simbólico a partir de uma modificação, um corte no corpo (não-natural).

Moisés, um egípcio, teria introduzido o costume da circuncisão. Fato que Freud considera decisivo para o problema ao qual se dedica. Porém, o relato bíblico fornece outras referências: afirma que tal prática vem desde os patriarcas como sinal da aliança entre Deus e Abraão. E, na história de Moisés, há uma passagem estranha na qual o Deus se enfureceu por ele não ter sido circuncidado – costume sagrado – e por isso quis matá-lo. Porém, sua esposa, Sephora, uma estrangeira midianita, executou o rito e o salvou da ira divina.

Para Freud, há apenas uma resposta sobre a origem deste costume: o Egito. Parece ser notório que a circuncisão era algo estabelecido naquelas terras como “costume popular universal” (FREUD, 1939/2020, p.61). Então, se Moisés fosse um judeu daquela época e aspirasse libertar seus compatriotas do cativeiro egípcio para levá-los “ao desenvolvimento de uma existência nacional e autoconfiante fora do país” (FREUD, 1939/2020, p.61), por que manteria o costume do opressor?

Daí, Freud afirma que se Moisés deu ao povo uma nova religião, nela veio o mandamento da circuncisão. Então Moisés era egípcio e a religião mosaica, provavelmente, também (FREUD, 1939/2020, p.62). E, dessa maneira, se considerarmos as pistas do psicanalista, percebemos que o judaísmo tem origem africana.

Nota-se que tal costume não é, de qualquer forma, somente judeu. “Ainda hoje o turco xinga o cristão de ‘cão incircunciso'” (FREUD, 1939/2020, p.64).

Moisés, que provavelmente também era circuncidado, não aceitaria que seu novo povo ficasse abaixo dos egípcios e queria fazer dele uma nação santa. Assim, o sinal de consagração foi usado pois, pelo menos, o equiparava aos egípcios. Esse sinal de distinção também isolava e impedia a miscigenação, algo que era bem-vindo, já que cruzariam com vários povos durante sua ida a Canaã – também os egípcios tinham se separado de todos os estrangeiros.

Portanto, ao se admitir que a circuncisão era um costume originalmente egípcio, se embute aí que a religião transmitida por Moisés também era. Freud sustenta “a origem egípcia de Moisés, subvertendo a certeza bíblica da identidade entre o povo escravizado e seu herói, para introduzir na teoria o lugar do estrangeiro na formação de um povo” (FUKS, 2014, p.59). Mas era preciso desmentir tal fato. Para criar a nova religião, as marcas da influência egípcia tinham que ser desmentidas (FREUD, 1939/2020, p.83): o êxodo, o homem Moisés e a circuncisão, que Freud considera “o mais grave indício da dependência do Egito” (FREUD, 1939/2020, p.84).

A origem estrangeira de Moisés dá início à construção com a qual Freud alcançará ratificar, de forma inusitada, o processo de constituição da subjetividade [.] a presença do Outro familiar/estrangeiro na gênese do eu.
Assim, ao estender esse processo à constituição de um povo, Freud contrapõe o estrangeiro, a alteridade, à noção de identidade
(FUKS, 2014, p.85).

Parece, inclusive, não só contrapor, mas unir estrangeiro com identidade. Dessa  maneira, o

estrangeiro na constituição de uma identidade é o ponto sobre o qual O homem Moisés reitera o princípio psicanalítico de que a origem do sujeito, individual e coletivo, advém do Outro, do heterogêneo em relação a si mesmo; do estrangeiro como condição da identidade (FUKS, 2014, p.94-95).

O complexo de castração opera inibindo e limitando a masculinidade e incentivando a feminilidade (FREUD, 1925/1996, p.285). Ou seja, põe em xeque as certezas depositadas sobre o órgão dito masculino, promovendo um terreno movediço que faz os alicerces da cultura balançarem: um pênis não garante um homem.

Em outro trabalho, Freud afirma que o complexo de castração é a mais profunda raiz do antissemitismo. Pois o que se escuta por aí é que o judeu cortou um pedaço de seu pênis, o que gera grande desprezo. E, declaração importante, é a raiz inconsciente mais forte para o sentimento de superioridade sobre as mulheres. Portanto, “partindo desse ponto de vista, aquilo que é comum ao judeu e à mulher é a sua relação com o complexo de castração” (FREUD, 1909/1996, p.40). A definição de judeu na modernidade derivava da “imagem do pênis circunciso, considerado alterado” (FUKS, 2014, p.156). Inclusive serviu como base para a propaganda antissemita nazista ao afirmar que a circuncisão é um processo de feminização do homem. Ou seja: pânico da feminização = horror da judeização. Lembro que “feminilidade e judeidade, duas figuras de alteridade que assombravam a Viena de Freud, serviram de esteio ao discurso antissemita do manifesto político de Hitler, Mein Kampf: ‘A emancipação feminina é uma invenção dos judeus e a mulher foi aquela que introduziu o pecado no mundo'” (FUKS, 2014, p.156). Fuks explica que no Moisés o autor designa

a circuncisão como um dos traços que funda a estranheza do outro, porque lembra a ausência ou privação, e desperta estranhamento, já que a marca da circuncisão faz com que o incircunciso se depare com a falência do ideal de virilidade sem perdas (FUKS, 2014, p.157).

Portanto,

a raiz inconsciente mais forte para o sentimento de superioridade sobre o judeu e a mulher é a diferenca sexual. Sob a sombra dessa realidade discriminatória e generalizada, longe de fazer apenas uma analogia entre o judeu e o feminino, Freud insistiu em demonstrar que a vivência sinistra diante da circuncisão é homóloga à impressão inquietante causada pelo sexo da mulher. Ambas provocam um horror determinado: o horror à castração. E quando em psicanálise nos referimos a esse tipo de aversão, entramos no campo da angústia, signo do colapso de todos os pontos referenciais identificatórios que o contato com a diferença causa (FUKS, 2014, p.157-158).

Não é incomum que o ódio aos judeus esteja conectado ao ódio às mulheres ao se produzir certa equivalência entre ambos. Por exemplo, na Europa, durante o século XIV, a ausência de judeus em alguns territórios ampliou “a diabolização de outras populações” (ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA, 2022). Foi após a expulsão dos judeus que teve início a absurda caça às bruxas.

Os judeus são mulheres ignoradas e as mulheres são judeus ignorados. Elas sofreram as mesmas consequências que os judeus. O mal foi concentrado numa parte da população minorizada. Aquilo que se reprova nas mulheres é o mesmo que se reprova nos judeus: de estarem pactuados com o diabo, de praticar o sabá etc. Além disso, as mulheres passaram a ser vestidas com roupas destinadas aos judeus, já que o famoso chapéu cônico das bruxas é muito parecido com o que era usado por eles no medievo. (ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA, 2022).

Um breve adendo: na psicanálise, o lado mulher, feminino, é não-todo fálico. Também está dentro da norma, mas algo escapa. A não-toda fálica é aquela que aponta para além da norma, que é fálica, para outro lado, no qual se produz a diferença radical (LACAN, 1972-1973/2008, p. 69). Qualquer sujeito pode frequentar essa posição, independentemente de seus atributos corporais (COUTINHO JORGE, 2013, p. 27). Dessa maneira, pode-se notar que o judeu também se encontra não-todo dentro da norma. Porém, após tanta violência e o genocídio pepetrado pelos nazistas, a guinada foi para a entrada na norma, que é ter um país. Assim, o esforço foi direcionado à construção de um novo judeu, herói, viril (LIEBERMANN, 2023, p.52). O novo judeu precisou abandonar sua posição de mulher para poder sobreviver dentro da norma que, tantas e tantas vezes, assassina quem está não-todo dentro dela.

E, finalmente, Freud diz que o motivo mais recente desta série é que todos os povos que se destacam no ódio aos judeus se tornaram cristãos tardiamente. Muitas vezes por meio de coações sangrentas e que por baixo do “fino verniz de cristianismo” (FREUD, 1939/2020, p.145) permaneceram aquilo que foram seus ancestrais, que cultivavam um politeísmo bárbaro. O rancor contra a nova religião não foi superado, mas deslocado. Essa dinâmica de deslocamento de insatisfações é recorrente no antissemitismo ao se depositar sobre os judeus algum problema. Dessa maneira, típica, os “modos de insatisfação” (POSTONE, 2021, p.109) são deslocados para os judeus, os quais são atacados por serem apontados como a personificação do que se quer resolver, o que não ocorre pois, nesse sentido, o foco e o problema são o povo judeu que tem uma importante função social e utilitária: servir como saco de pancada. Ser a figura da alteridade que se quer longe de si, mas que habita esse si. É o lugar de deságue dos afetos do sujeito, afetos que rejeita em si mesmo. Sendo esse “si mesmo” problemático por encobrir a divisão do sujeito, que não a quer encarar. O judeu é um estrangeiro-íntimo. Amorfo significante constantemente adequado aos lamúrios do sujeito, que nem sempre se vê implicado como agente daquilo que o atormenta. O judeu recebe a corporificação que seu odiador lhe imputa e serve para localizar o que é extremamente difícil de localizar. Nesse sentindo, ao materializarem no judeu suas insatisfações, que tantas vezes são abstratas, faz-se algo radicalmente oposto ao judaísmo bíblico ao apelar a uma percepção sensorial; um tipo de involução, talvez, visto que não se suporta aquilo que não se vê. O judeu para o seu odiador é um simplificador da vida por ser o receptáculo de insatisfações.

O fato de os evangelhos narrarem uma história que se passa entre judeus e que na verdade trata apenas de judeus lhes facilitou semelhante deslocamento. Seu ódio aos judeus é no fundo ódio aos cristãos, e não é preciso se admirar que na revolução nacional-socialista alemã essa íntima relação entre as duas religiões monoteístas encontre uma expressão tão nítida no tratamento hostil dispensado a ambas (FREUD, 1939/2020, p.145).

Aqui caberia todo um debate sobre se é possível sustentar essa íntima relação entre tais religiões como se afirma, numa cultura judaico-cristã, tendo em vista que o cristianismo se empenhou em perseguir e matar o povo judeu e a se apropriar de sua cultura. Uma discussão mais elaborada, que deve incluir se o tal judaico-cristão serve como higienização da história do ódio cristão ao povo judeu, ficará para outra oportunidade.

Com a invasão alemã à Áustria, Freud, como judeu, exilou-se em Londres. Sabia que a causa da perseguição que sofria não era mais apenas por sua maneira de pensar e incluía, então, sua “raça” (FREUD, 1939/2020, p.100). E, afinal, no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando os judeus europeus foram destruídos, o mesmo ocorreu com a psicanálise (YERUSHALMI, 1992, p.154). Em Londres, sentiu-se acolhido e vivia como um “hóspede bem-visto” (FREUD, 1939/2020, p.100). Assim, escreveu: “posso me sentir aliviado por ter sido liberto daquela opressão e outra vez poder falar e escrever – eu quase teria dito: pensar” (FREUD, 1939/2020, p.100). Porém, mesmo com toda essa atmosfera que lhe agradava na Inglaterra, ainda se preocupava com o antissemitismo e afirmou que esse ódio específico estava por toda parte: “Basicamente todos são antissemitas. Estão por toda parte. Frequentemente o antissemitismo está latente e oculto, mas está presente. Naturalmente, também há exceções [.] Mas as grandes massas são antissemitas aqui como em toda parte” (YERUSHALMI apud FREUD, 1992, p.89). Depreende-se, então, que o antissemitismo ocorre cotidianamente e que as defesas contra tal ódio operam somente até certo nível. Quando o antissemitismo é “exterminador” (POSTONE, 2021, p.163), obviamente, não há o que o segure. Portanto, a tolerância é alta, o que o faz ser percebido por não judeus unicamente quando aumenta ao ponto de chamar maior atenção.

É possível dizer que as pessoas judias vivem fazendo concessões. Lembro de uma carta de Freud a seu amigo Karl

Abraham, de 1908, na qual opinou que, como judeus, se quisessem cooperar com não judeus, seria preciso uma dose de masoquismo e preparo para suportar certas injustiças (YERUSHALMI, 1992, p.74). Parece que a medida é suportar certas injustiças que não são percebidas pela “maioria compacta” (MEZAN apud FREUD, 1986, p.26), e que o drama só é notado, exatamente, quando explode a violência física. Dessa forma, o velho psicanalista, calejado, lançou luz sobre o antissemitismo inconsciente e estrutural.

Freud comunica que entre as prescrições impostas pela religião de Moisés, destaca-se a que proíbe a produção de qualquer imagem de Deus. Esse é um Deus estrangeiro, fora de qualquer representação. Tal proibição impõe que se abandone a “percepção sensorial” (FREUD, 1939/2020, p.171) em detrimento de “uma percepção que cabe chamar de abstrata” (FREUD, 1939/2020, p.171). A abstração é o grande passo já que o pai primordial sempre esteve por aí. E parece ser possível notá-lo até na hierarquia do politeísmo que indica haver um “deus-mor superior” (FREUD, 1939/2020, p.135). A virada foi passar a supor ao invés de ver e tocar. Talvez seja esse Deus abstrato que concedeu a elasticidade do judaísmo. Isto é, uma pluralidade que se abre para múltiplas vivências do judaísmo ao ponto de gerar judeus ateus, como Sigmund Freud. Nesse sentido, não existe o judaísmo, mas tantos judaísmos quanto judeus e judias no mundo.

“O hebreu, em sua significação etimológica, é um ser de passagem (laavor)” (FUKS, 2000, p.78) e o ivrit, o hebraico, língua revivida, falada por tão pouca gente, se traduz como

o migrante, não sendo a migração por si mesma nem maldição, nem benção, mas unicamente vocação específica deste povo, anterior à construção de qualquer pátria ou unidade nacional. Assim, a experiência da errância do povo hebreu, que precedeu a do exílio na Diáspora, foi a condição para que se cumprisse o pacto da aliança, e aquele apenas perpetuou a errância, a vivência daquilo que não é idêntico a si mesmo. O hebreu é um ser de passagem, aquele que migra e que transgride [.] Na língua hebraica, a ausência da conjugação do verbo ‘ser’ no presente rebate a ideia de transitoriedade embutida na própria raiz da palavra que diz o hebreu. Apenas o passado e o futuro são conjugados, e por isso o homem não ‘é’, mas se enuncia sempre como aquele que foi e aquele que será (FUKS, 2000, p.78).

Afirma-se constantemente que na passagem bíblica Deus anuncia: “Eu sou o que sou.” Mas como isso é possível se no hebraico não se conjuga o verbo “ser” no presente? A tradução mais correta é “Eu serei o que serei.” Ou seja, há uma tomada do judaísmo pelo cristianismo e uma tradução que não é, afinal, judia. “A concepção de Deus no judaísmo é a de uma presença que se define pela ausência radical e absoluta” (FUKS, 2000, p.13). O judaísmo possui outras referências que não as cristãs. Logo, não está incluído na hegemonia, mas a perfura. Mesmo assim é aproveitado e metamorfoseado pelos discursos hegemônicos. Abramos nossos olhos.

Conclui-se que o estrangeiro, em contrapartida ao idêntico, é a tônica, a força do judaísmo, que resiste e insiste. O estrangeiro “denuncia a presença de uma diferença irredutível dentro de uma totalidade” (FUKS, 2000, p.90). Assim, a condição do judeu

coloca em xeque permanentemente a identidade do outro e a sua própria no permanente retorno ao deserto de Abraão, o hebreu, o ser de passagem; de Ruth, a moabita, a estrangeira matriarca da realeza judaica; de Jacó/Israel, que enfrenta o anjo do Deus estrangeiro; e de Moisés, o egípcio, aquele que, sendo outro, se diz judeu (FUKS, 2000, p.96).

Referências bibliográficas

ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA (2022). Direção: Jonathan Hayoun.

Empresa produtora: ARTE France. Canal Curta!.

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Notas

1 O homem Moisés e a religião monoteísta. L&PM, 2020.

2 O resumo a seguir foi produzido baseado na edição indicada. Parte essencial de uma das hipóteses freudianas é a conexão do monoteísmo judeu com o período em que o Egito vivia sob um “episódio monoteísta” (p.66). As conquistas da XVIII dinastia transformaram o Egito em um império mundial. A camada considerada superior do povo, espiritualmente ativa, adorava um deus universal, Aton. Essa religião foi tornada estatal e o deus universal afirmado como o único. Aboliu-se os pensamentos mágicos e a crença na vida após a morte, que, justamente, era tão cara aos egípcios (p.103). Essa dinastia se extinguiu por volta de 1350 a.C. e foi apagada com o retorno ao politeísmo. Freud diz que o que foi relatado acima é historicamente verificado (p.103). De agora em diante começa sua “continuação hipotética” (p.103). Dentre os crentes da pontual religião monoteísta egípcia havia um homem enérgico e passional que, a partir de então, só poderia continuar a viver no Egito como um excluído. Provavelmente, tal homem ocupava uma posição de destaque e pôde entrar em contato com uma tribo semita que vivia por lá. Ele, então, escolheu esses estrangeiros como seu povo para tentar realizar seus ideais. A circuncisão, costume egípcio, foi mantida como sinal de santificação. Ele tratou de passar a religião de Aton, suas leis e doutrinas (p.104). A vida heroica de Moisés começou “com o fato de ele descer de sua elevação, de abaixar-se até os filhos de Israel” (FREUD, 1939/2020, p.45). Ou, ainda, quando ele “descera ao encontro dos judeus, fazendo deles seu povo, eram o seu ‘povo escolhido'” (FREUD, 1939/2020, p.86). Possivelmente, esse homem Moisés era ainda mais exigente que o antigo faraó Ikhnaton que havia instituído um monoteísmo que adorava a energia da radiação solar como fonte da vida na Terra. Ele, inclusive, talvez tenha abandonado o deus solar chegando a novos níveis de abstração. Parece que, segundo a Bíblia, os hebreus eram resistentes em relação ao seu legislador. Certo dia – hipótese freudiana -, o assassinaram e rejeitaram a religião de Aton que lhes fora imposta. Mas a religião de Moisés não sucumbiu sem deixar marcas e continuou agindo, como que num segundo plano, como uma tradição turva e distorcida que, no entanto, produziu efeitos (p.116). Esses mesmos hebreus saídos do Egito se uniram a outras tribos aparentadas com eles e, num lugar chamado Cades, sob influência dos midianitas, assumiram uma nova religião que adorava o deus vulcânico Jeová (p.104-105), que não se distinguia de outros deuses (p.185) e que, consequentemente, não tinha semelhança com o deus mosaico pacifista. Também o ato libertador de Moisés foi transplantado a Jeová (p.93) e “por trás do deus que escolheu os judeus e os libertou do Egito se encontra a pessoa de Moisés” (FREUD, 1939/2020, p.163). Ocorreu que com o passar dos tempos Jeová foi sendo assemelhado ao antigo deus de Moisés (p.108), que foi retornando, até se metamorfosear nele (p.109).

Sobre o autor

Josef Chasilew

Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro e também membro da Internacional dos Fóruns da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano. É graduando em psicologia, UVA e mestre em psicanálise, saúde e sociedade. É bacharel em moda e também pós-graduado em marketing e comunicação de moda. Pesquisador do grupo Diálogos da Diáspora - Racismo e Antissemitismo, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia, da FUNDASP/PUC-SP – LABÔ.