Revista Laboratório Temática 5 – Diálogos da Diáspora - Racismo e Antissemitismo

O que significa ser judeu hoje?

À primeira vista, a questão que se propõe neste artigo não tem resposta. De fato, não há sequer uma única característica comum a todos os indivíduos que se consideram judeus, ao longo do mundo. Como também os judeus não partilham, todos eles, uma identidade qualquer, seja ela religiosa, ou étnica, ou cultural, ou nacional.

Na realidade, essa situação não é recente, mas data de cerca de dois séculos. Como observou Max Nordau, com muita argúcia, “[e]squeceram a Revolução Francesa? Trata-se desse grande acontecimento histórico que realizou o milagre de fazer do povo judeu uma ‘comunidade religiosa’. A Revolução outorgou direitos cívicos e humanos aos judeus e esses, da noite para o dia, deixaram de pertencer a uma nação antiga de quatro mil anos.” 1 Ou seja, até a entrada da Europa na modernidade era possível falar de uma “nação judaica”; os judeus tinham preservado a possibilidade de manter uma identidade central: um povo identificado em torno de uma religião e de um território (do qual tinham sido desterrados, mas para onde sempre aspiraram retornar), partilhando mais uma memória do que uma história em comum, e vivendo no exílio – não eram franceses na França, nem alemães na Alemanha, nem poloneses na Polônia. Alimentavam a esperança de uma reconstrução nacional em Sion.

Com a Revolução Industrial e o surgimento do Estado Moderno, com a nova ordem imposta à Europa pelos exércitos napoleônicos, os judeus passaram a ter a possibilidade de se assimilarem aos hábitos europeus e de gozarem dos mesmos direitos de cidadania que os cristãos, e disso resultou a curiosa figura que Nordau denomina de “comunidade religiosa”, que se expressa, por exemplo, como “franceses na rua, judeus em casa”. Em consequência, ao longo do século XIX e começo do século XX surgem divisões no seio do povo judeu que tornam impossível voltar a falar em uma identidade central, unificadora: assimilacionistas e tradicionalistas; ortodoxos, conservadores e liberais; hassidim e mitnagdim; sionistas e bundistas; mais recentemente, israelenses e diaspóricos. A partir de então, qualquer tentativa de definir “quem é judeu” deixa de fora multidões de pessoas que, por outro critério, seriam pacificamente consideradas como judias. A maioria dos judeus não é religiosa (a menos que se considere religiosidade o comparecimento anual a uma sinagoga nas Grandes Festas); a maioria dos judeus perdeu contato com a história e com a cultura de seu povo (a menos que se considere cultura a participação em um seder de Pessach, ou a transmissão de tradições intentada pelas escolas judias, que nem ao menos são frequentadas por todas as crianças judias); a maioria dos judeus não reside e não tem planos de residir em Israel; a maioria dos judeus não acha muito problemático um casamento misto. Se não há como definir quem é judeu, como pensar o significado de ser judeu? Temos que encarar uma realidade de múltiplas identidades, muitas vezes em conflito; uma fragmentação tal que, para a maioria dos judeus, o significado principal da vida não está ligado à sua condição judaica, mas, antes, à sua profissão, à sua visão de mundo, ao partido político a que se filiou.

Mas, no entanto, continuam a existir pessoas que se consideram judeus. Então, antes de tentar responder à questão “Que significa ser judeu hoje?”, teremos que abordar uma preliminar, “Quem é judeu hoje?”. Como entender um povo quando nenhum de seus eixos identitários é capaz de incorporar, já nem falemos a totalidade, mas ao menos a maioria do povo? Para isso, teremos que dedicar algum tempo a entender o que é “hoje”: em que mundo vivemos, hoje? Tentarei mostrar que a singularidade judaica se dá na relação muito particular que esse grupo de pessoas mantém com o mundo em que vivemos.

Em 1963, há sessenta anos, Hannah Arendt lançou, em forma de livro, a reportagem sobre o julgamento de Adolf Eichmann que ela acompanhara, em 1961, na condição de correspondente da revista The New Yorker. Publicado originalmente pela The Viking Press (Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil, 1963), o livro teve uma primeira edição no Brasil em 1983, pela Diagrama & Texto, tradução de Sonia Orieta Heinrich, e voltou a ser publicado em 1999 pela Companhia das Letras, agora em tradução de José Rubens Siqueira.

Logo após sua publicação, a obra suscitou intensas controvérsias, em Israel e no mundo. Em particular, provocou a animosidade de Gershom Scholem, que acusou a autora de não ter amor pelo povo de Israel. Estas controvérsias foram analisadas pela própria Arendt, em um capítulo adicional, o Pós-Escrito, que passou a integrar o livro em todas as edições posteriores, inclusive nas duas edições brasileiras, de 1983 e de 1999. Os principais pontos, no ver da pensadora, foram: a conduta do povo judeu durante os anos da Solução Final, ou seja, se os judeus podiam ou deviam ter se defendido; o papel da liderança judaica; o conceito novo, expresso no subtítulo do livro, ou seja, a ideia de “banalidade do mal”; a questão da tipificação dos crimes pelos quais Eichmann estava sendo julgado; e, finalmente, a questão da natureza e da função do juízo humano.

O tópico que mais feriu suscetibilidades na época foi o segundo, a crítica dirigida aos conselhos judaicos, os Judenräte, sobre os quais Arendt lançou a suspeita de colaboracionismo. A passagem mais contundente, a esse respeito, diz que “a verdade integral era que, se o povo judeu estivesse desorganizado e sem líderes, teria havido caos e muita miséria, mas o número total de vítimas dificilmente teria ficado entre quatro e meio e seis milhões de pessoas” (pp. 141-2). Ou seja, a autora sugere que os conselhos teriam induzido as massas judaicas sob sua administração a aceitar passivamente as ações nazistas de “reassentamento” e extermínio, e mais, teriam diligentemente executado as ordens nazistas de selecionar as quantidades de pessoas necessárias para ocupar os trens em cada embarque e comandado forças policiais judaicas para caçar os eventuais fugitivos. Hoje se sabe que não foram todas as lideranças que cooperaram, nem ao menos a maioria dos conselhos. Mas a própria Arendt sempre assinalara que a acusação se baseava na documentação apresentada na grande obra de Raul Hilberg, The destruction of the European Jews (1961), além de ser corroborada por outra obra fundamental, The War Against the Jews (1975), de Lucy Dawidowich.

É possível que Arendt tenha sobre-enfatizado o papel negativo dos Judenräte. Mas sua contribuição teórica fundamental para a compreensão de nossos tempos, em minha opinião o ponto mais valioso desse livro de contundente atualidade – contribuição esta que por si compensa qualquer eventual exagero em pontos específicos – é o conceito avançado no subtítulo da obra, “um relato sobre a banalidade do mal”. Esta ideia tem sido frequentemente mal interpretada, pois há quem entenda que a autora estivesse buscando reduzir a gravidade dos crimes praticados pelos nazistas, classificando esses crimes de “banais”, e até mesmo há quem a leia como uma revisão do conceito que Arendt desenvolvera em As Origens do Totalitarismo (1951), ou seja, a ideia de mal radical. Como se o conceito de banalidade do mal substituísse o de mal radical. No entanto, como pretendo demonstrar, existe uma relação e uma articulação entre os dois conceitos, que, longe de se substituírem, se complementam; e justamente nessa articulação teremos a resposta à questão “em que mundo vivemos?”

Ao pensar o advento do totalitarismo, esse fenômeno político-social novo, marca trágica e indelével do século XX, e ao buscar identificar as condições políticas responsáveis pelo desaparecimento da liberdade, Hannah Arendt constatou que os objetivos básicos do totalitarismo são a aniquilação de toda a autonomia humana e a atomização da sociedade civil, que resulta no desaparecimento de seus instrumentos. Opera-se, assim, a redução da vida humana à condição de vida nua, matável, com a ajuda de um uso da linguagem que visa obter a submissão inclusive do pensamento2. A instituição mais essencial e constitutiva da sociedade totalitária é o campo de concentração. Um simples regime tirânico, por mais brutal e sanguinário que possa ser, por mais pessoas que mate, assassina indivíduos, em geral, opositores do regime. O estado totalitário, no entanto, extermina grupos populacionais inteiros, vítimas anônimas, sem face. Etnias ou classes sociais, homossexuais ou doentes genéticos, pessoas são mortas apenas por pertencerem a um determinado grupo, declarado supérfluo, matável, excluído da proteção básica da lei, privado dos direitos mais elementares.

Origens do Totalitarismo é de 1951 e foi editado no Brasil em 1989, pela Companhia das Letras, em tradução de Roberto Raposo. No capítulo 4, “Ideologia e terror: uma nova forma de governo”, da parte III da obra, Totalitarismo, a autora detalha o papel do campo de concentração na implantação do domínio totalitário, etapa por etapa: “O primeiro passo essencial no caminho do domínio total é matar a pessoa jurídica do homem. Por um lado, isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas foram excluídas da proteção da lei e quando o mundo não-totalitário foi forçado, por causa da desnacionalização maciça, a aceitá-los como os fora-da-lei; logo a seguir, criaram-se campos de concentração fora do sistema penal normal, no qual um crime definido acarreta uma pena previsível.” (p. 498). Ou seja, faz parte da lógica do sistema que indivíduos e grupos sejam postos fora da lei, privados de sua cidadania e de seus direitos civis mais básicos, e internados em campos de concentração sem culpa ou sequer presunção de culpa. Note-se a correlação com o estado de exceção proposto pelo jurista alemão Carl Schmitt: quando o soberano se coloca acima da lei, para “tomar as decisões que o momento requer”, parte da população ficará abaixo da lei, sem qualquer autonomia, impedida de tomar quaisquer decisões, até mesmo de agir em defesa própria.

“O próximo passo decisivo do preparo de cadáveres vivos é matar a pessoa moral do homem. Isso se consegue, principalmente, tornando impossível, pela primeira vez na história, o surgimento da condição de mártir: ‘Quantos aqui ainda acreditam que um protesto tenha mesmo algum valor histórico? Este ceticismo é a verdadeira obra-prima da SS. Sua grande realização. Corromperam toda a solidariedade humana. A noite caiu sobre o futuro. Quando não há testemunhas, não pode haver testemunho.’” (p. 502)

O regime totalitário trabalhará para dissolver a solidariedade, para atomizar a sociedade, para lançar todos contra todos, incentivando a delação e punindo severamente o parente e o amigo que se recusarem a delatar, considerados cúmplices. Este procedimento não é original. Lembremos o uso que a Inquisição espanhola fazia da delação. Mas foi levado a seu extremo pelos regimes nazista e stalinista.

“Depois da morte da pessoa moral e da aniquilação da pessoa jurídica, a destruição da individualidade é quase sempre bem-sucedida. É possível que se descubram leis da psicologia de massa que expliquem por que milhões de seres humanos se deixaram levar, sem resistência, às câmaras de gás, embora essas leis nada venham a explicar senão a destruição da individualidade. Mais importante é o fato de que os que eram condenados individualmente quase nunca tentaram levar consigo um dos seus carrascos, de que raramente havia uma revolta séria, e de que, mesmo no momento da libertação, houve poucos massacres espontâneos de homens da SS. Porque destruir a individualidade é destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com seus próprios recursos.” (p. 506)

A imagem de um estado onipresente, que exerce um terror irresistível, a transformação dos prisioneiros em números (que serão devidamente gravados em seus corpos, lembremos a extraordinária premonição de Kafka em Colônia Penal) fará com que os indivíduos sucumbam, abdiquem de sua própria capacidade de resistir.

Vemos, então, como é essencial a instituição do campo de concentração no estabelecimento do domínio totalitário. Pode-se mesmo dizer que o regime totalitário é o campo de concentração. Dado que o objetivo último do poder totalitário é estender seu domínio para todo o mundo, o campo de concentração, enquanto o objetivo último não é atingido, é apenas o laboratório no qual são desenvolvidos, testados e aperfeiçoados os instrumentos totalitários. Na verdade, a intenção do poder totalitário é transformar o mundo em campo de concentração. Vale a pena acompanhar as reflexões de Giorgio Agamben a respeito, especialmente na trilogia Homo Sacer (O poder soberano e a vida nua, Meios sem fim: Notas sobre a Política e O que resta de Auschwitz: o Arquivo e o Testemunho). Por exemplo, diz Agamben que

“[a]o invés de deduzir a definição do campo a partir dos eventos que aí se desenrolaram, nos perguntaremos antes: o que é um campo, qual a sua estrutura jurídico-política, por que semelhantes eventos aí puderam ter lugar? Isto nos levará a olhar o campo não como um fato histórico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que eventualmente ainda verificável), mas, de algum modo, como a matriz oculta, o nómos do espaço político em que ainda vivemos.” (Agamben, 2002:173)

Ou seja, para esse autor o campo de concentração é o paradigma conceitual do espaço político em que vivemos a partir da segunda metade do século XX.

Podemos, agora, ver o que Hannah Arendt entende por mal radical: “[…] em seu afã de provar que tudo é possível, os regimes totalitários descobriram, sem o saber, que existem crimes que os homens não podem punir nem perdoar. […] Do mesmo modo como as vítimas nas fábricas de morte ou nos poços do esquecimento já não são ‘humanas’ aos olhos de seus carrascos, também essa novíssima espécie de criminosos situa-se além dos limites da própria solidariedade do pecado humano.” (p. 510) É importante que fique claro que, em consequência da destruição da pessoa jurídica que Arendt assinala, as vítimas do extermínio nos campos já não são humanas. Portanto, os executores podem não se sentir criminosos, mas apenas burocratas executores de ordens, operadores de uma máquina de destruição que escapa a qualquer tentativa de controle. Em seguida, Arendt vincula a possibilidade do surgimento desse mal radical ao fato de que todos os homens foram tornados supérfluos. É exatamente na falta de motivo para a prisão e o extermínio que reside a lógica totalitária:

“É inerente a toda a nossa tradição filosófica que não possamos conceber um ‘mal radical’, e isso se aplica tanto à teologia cristã, que concedeu ao próprio Diabo uma origem celestial, como a Kant, o único filósofo que, pela denominação que lhe deu, ao menos deve ter suspeitado de que esse mal existia […]. Assim, não temos onde buscar apoio para entender um fenômeno que, não obstante, nos confronta com sua realidade avassaladora e destrói todos os padrões que conhecemos. Só uma coisa parece discernível: podemos dizer que esse mal radical surgiu em relação a um sistema no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos.” (p. 510)

O mal radical é pois, na concepção de Arendt, um atributo do sistema, faz parte da essência do estado totalitário. Mas a ação do Estado não se exerce por si; a ação do Estado tem que ser exercida por pessoas, pelos funcionários que compõem o aparato do Estado. Esta é a questão não de todo respondida em Origens do Totalitarismo: como é que o Estado totalitário põe em prática o mal radical? Como a máquina do mal radical põe em ação seus operadores?

Dez anos depois, após assistir ao julgamento de Eichmann, Hannah Arendt pode então esmiuçar e expor exaustivamente o mecanismo pelo qual a decisão do Estado totalitário de praticar o mal radical encontra os agentes que realizarão essa decisão: é necessário organizar um corpo de funcionários, civis e militares, convencidos da transcendência da missão da qual o Estado está imbuído.

“O que afetava as cabeças desses homens que tinham se transformado em assassinos”, ela enfatiza, “era simplesmente a ideia de estar envolvidos em algo histórico, grandioso, único (‘uma grande tarefa que só ocorre uma vez em dois mil anos’), o que, portanto, deve ser difícil de aguentar.” Ela rejeita a ideia de que os assassinos nazistas fossem psicopatas, sádicos sedentos de sangue: “Isso era importante, porque os assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que faziam.” (Eichmann em Jerusalém, p. 121).

É por aqui que os dois conceitos de mal se articulam. Pessoas “normais” podem ser levadas a concordar em que a prática de atos criminosos é justificável, ou é um mal menor, face à missão transcendental de “buscar um bem maior” (a grandeza do povo alemão?), ou de “evitar um mal maior” (o niilismo, a corrupção e a decadência do povo alemão pelos judeus?). E, ao mesmo tempo, pode-se obter o esvaziamento do conteúdo moral das ações concretas. Como para milhares ou milhões de outros funcionários alemães, o quotidiano de Eichmann girava em torno de sua carreira, suas possibilidades de promoção, o enfrentamento de conflitos com outros funcionários, com outros departamentos das máquinas estatal e partidária. Um burocrata típico de qualquer grande organização burocrática. “Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria mais distante de sua mente do que a determinação de Ricardo III de ‘se provar um vilão’. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação” (Eichmann em Jerusalém, p. 310). Um quotidiano banal, em que cada despacho rotineiro significava transportar alguns milhares de judeus para um campo de extermínio, mas nem por isso menos banal, tendo em vista que já não se tratava de seres humanos.

“Desde que a totalidade da sociedade respeitável sucumbiu a Hitler de uma forma ou de outra, as máximas morais que determinam o comportamento social e os mandamentos religiosos – ‘Não matarás!’ – que guiam a consciência, virtualmente desapareceram” (Eichmann em Jerusalém, p. 318). Esta reflexão de Hannah Arendt sobre outro tópico da controvérsia, a questão da natureza e da função do juízo humano, é o grande alerta que devemos ter presente, por sua atualidade.

O estado totalitário se faz portador de uma ideia transcendente para suprimir a liberdade. Atomiza a sociedade civil transformando o mundo em um campo de concentração, rebaixando a vida humana, antes revestida pela proteção da lei, em vida nua, vida matável. Compondo terror, ideologia, organização e sedução, cria uma burocracia cuja função é executar as tarefas que o Estado considera essenciais para sua missão histórica. Seja essa missão a criação do Reich milenar do povo alemão, seja a “reeducação” stalinista de todos os kulaks para a constituição do Estado dos proletários (na verdade, logo substituídos pela burocracia do partido). O grande alerta contra todos os Estados que reduzem seus habitantes a vidas matáveis, que promovem “limpezas étnicas” e “reassentamentos”. Alerta contra as ideologias que, em nome de uma “transcendência”, querem que abramos mão das noções mais simples de ética. Pois, como disse Hannah Arendt no final do capítulo que estamos citando, “as soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem.” (p. 511)

Então, o que é ser judeu hoje? Arrisco-me a propor que judeu é o indivíduo daquele povo que olhou de frente para a Medusa, a horripilante figura da mitologia grega cujo olhar petrifica. Que experienciou o abismo da “civilização ocidental”. E por isso é capaz de perceber que o nazismo não foi um episódio isolado, uma aventura de um bando de loucos sanguinários, mas sim uma possibilidade intrínseca do mundo em que vivemos. Já em 1934 o grande pensador judeu Emmanuel Levinas escrevera um livro essencial para a compreensão do fenômeno nazista, Quelques réflexions sur la philosophie de l’Hitlerisme. Lendo essa obra atentamente, Agamben entende que, para Levinas, “o nazismo, como ‘mal elementar’, tem a sua condição de possibilidade na própria filosofia ocidental e, em particular, na ontologia heideggeriana: possibilité que s’inscrit dans l’ontologie de l’Être soucieux d’être – de l’être ‘dem es in seinem Sein um dieses Sein selbst geht’” (Agamben, 2002:159, em francês e alemão no original).

E é no pensamento de Emmanuel Levinas que vou buscar, por fim, o significado de ser judeu hoje. Sem dúvida, o primeiro impulso sempre é associar a condição judaica ou à religião judaica, ou ao Estado de Israel, ou a ambos. Mas em um ensaio de 1951, “Estado de Israel e religião de Israel”, Levinas propõe uma visão radicalmente nova dessas duas entidades, visão que efetivamente confere significado à condição judaica. A extensão da citação se justifica por sua relevância:

A importância do Estado de Israel não consiste na realização de uma antiga promessa, nem no início que ele marcaria de uma era de segurança material – de qualquer forma problemática! – mas na ocasião enfim oferecida de cumprir a lei social do judaísmo. O povo judeu estava ávido de sua terra e de seu Estado, não por causa da independência sem conteúdo que representaria, mas por causa da obra de sua vida que ele poderia enfim começar. Até o presente, ele observava os mandamentos; mais tarde, ele se forjou uma arte e uma literatura, mas todas essas obras onde [o povo] se exprimia são como que os ensaios de uma juventude muito longa. Enfim chega a hora da obra prima. Era mesmo horrível ser o único povo que se definia por uma doutrina de justiça e o único que não podia aplicá-la. Dilaceramento e sentimento da Diáspora. A subordinação do Estado a suas promessas sociais articula o significado religioso da ressurreição de Israel como, nos tempos antigos, a prática da justiça justificava a presença sobre uma terra.

É por isso que o evento político já foi ultrapassado. E é por isso, enfim, que se pode distinguir os judeus religiosos daqueles que não o são. A oposição é entre aqueles que buscam o Estado pela justiça e aqueles que buscam a justiça para assegurar a subsistência do Estado.3

Em conclusão: para que ser judeu hoje tenha significado, depois da Shoah, não podemos aceitar que a religião judaica seja um conjunto de rituais estéreis e nem que o Estado de Israel seja apenas a “normalização” do povo judeu, com “polícia e cinemas, cafés e imprensa”. É preciso que recuperemos e vivenciemos a ideia de que a religião judaica não incita a justiça, ela institui essa justiça. E que o Estado de Israel tenha como missão fundamental a realização dessa justiça, única possibilidade de tentarmos impedir novas manifestações dessa possibilidade abismal da civilização ocidental, o nazismo. Ser judeu tem que ser o extremo oposto de seu extremo oposto, o nazista.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio – Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002 (Homo sacer – Il potere sovrano e la nuda vita I, Torino: Giulio Eunaudi, 1995, tradução de Henrique Burigo), 207 p.

AVINERI, Shlomo – Histoire de la Pensée Sioniste. Paris: Éditions Jean-Claude Lattès, 1982 (The making of modern Sionism – The Intellectual Origins of the Jewish State, New York: Basic Books, 1981, tradução para o francês de Erwin Spatz), 336 p.

LÉVINAS, Emmanuel – “État d’Israel et religion d’Israel”em Difficile Liberté. Essais sur le judaïsme. Paris: Albin Michel, 1997 (troisième édition revue et corrigée), 414 p.

Notas

1 Max Nordau, “Eine Geschichte der Israeliten” in Zionistische Schriften, 2a edição, Berlim, 1923, p. 400, apud Avineri, 1982:149.

2 Para a compreensão desse ponto, a obra fundamental continua sendo LTI, a Língua do Terceiro Reich, de Victor Klemperer.

3 Levinas, 1997:305-6.

Sobre o autor

Saul Kirschbaum

Doutor em Letras pelo Programa de pós-graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas da FFLCH/USP e pós-doutor pela UNICAMP. Pesquisador do Grupo de Judaísmo Contemporâneo e do Grupo Diálogos da Diáspora – Racismo e Antssemitismo, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.