Revista Laboratório Temática 5 – Diálogos da Diáspora - Racismo e Antissemitismo

Análise em profundidade sobre o Manifesto-diretiva, de Plínio Salgado: a tentativa do Integralismo de se afastar do nazifascismo

Introdução

Nothing besides remains. Round the decay / Of that colossal wreck, boundless and bare / The lone and level sands strecht far away” (SHELLEY, 2009, p. 40)

Após o fracasso do Levante Integralista de 1938, Plínio Salgado partiu para um autoexílio em Portugal. Contudo, Salgado não ficaria permanentemente no exílio, retornando ao final de 1945, quando o Estado Novo colapsava. Mas, do retorno, seu movimento já não era o mesmo. Não apenas o Integralismo havia se esfarelado, como também no pós-guerra e depois do Holocausto um movimento de matriz abertamente fascista não seria bem visto. Como consequência, Salgado fundou um partido com a mesma sigla do antigo Partido Republicano Paulista (PRP), pelo qual havia sido eleito deputado estadual duas décadas antes. O novo partido, porém, chamava-se Partido da Representação Popular. Lançou-se candidato à presidência nas eleições de 1955 e, ainda que tenha ficado em quarto lugar, angariou 8% dos votos, a pouco mais de dois milhões de votos do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Seu jingle de campanha sintetizava a sua visão do Integralismo nesta nova fase: “O homem vem aí / Está na hora de mudar / Vem o Plínio Salgado / Pro Brasil endireitar” (GONÇALVES; NETO, 2020, p. 89).

Com a dissolução do Estado Novo e a volta de Salgado do exílio, o Integralismo entra em uma nova fase. Não tem a mesma força de antes, quando foi o maior movimento de inspiração fascista da América Latina. Não é mais um movimento antissistema, pelo contrário, afirma-se em defesa da jovem e curta democracia brasileira, como tendência no pós-guerra ao redor do planeta. Ou seja, é institucionalizado por meio do PRP. De certa forma, não é absurdo dizer que o Integralismo foi absorvido pelo establishment, que não toleraria mais, no cenário democrático e pós-guerra, incursões abertamente fascistas. Isso não quer dizer que o fascismo não mantivesse traços mesmo no establishment, apenas que sua versão explícita não seria mais tão tolerada. Os discursos de Salgado se tornam menos antissistema, menos inflamados e mais políticos. Ele não pregava mais, ao menos não com tanta virulência, contra a destruição de uma elite. O discurso contra o perigo vermelho permanece e seu autoritarismo retorna com força com o sinal dos tempos, quando, no início dos anos 1960, apoia o golpe militar. 

Em um aspecto curioso, o período em Portugal influenciou Salgado a ponto de afirmar que era “luso-brasileiro”. Certamente uma distância em relação ao que dizia nos materiais iniciais do Integralismo, quando pregava um nacionalismo sectário que jamais admitiria uma fusão sobre outra nacionalidade (SALGADO, 1950). Se admirar o nazifascismo não seria tolerado com a mesma complacência após 1945, o mesmo não se pode dizer do Salazarismo. Assim, Salgado passou “a ser um defensor supremo da política de António de Oliveira Salazar, imagem que seguiu até o fim da vida” (GONÇALVES, 2013). Salgado, desta forma, apenas desloca a imagem inspiradora do velho-novo Integralismo do Fascismo para o Estado Novo português.

O Manifesto-diretiva surge nesse cenário. É um dos últimos documentos que Salgado escreve no exílio, e pelo mesmo motivo fecha O Integralismo perante a nação, livro de 1950 que aglutina grande parte dos materiais iniciais do movimento. É publicado quinze dias antes da fundação do novo PRP ― que viria a fracassar nas eleições de 1945, com apenas um deputado eleito entre 147 candidatos (GONÇALVES; NETO, 2020, p. 79). O nome antecipa o tema: trata-se de um manifesto com as diretrizes para este novo Integralismo, que ressurge, para distorcer a máxima de Gramsci, quando o velho não morreu completamente, mas o novo ainda assim precisa nascer. Pois ainda que o Integralismo continuasse a existir em segmentos marginais, foi notório o seu enfraquecimento com a ida do Messias à Europa. E, como foi dito, era preciso que o novo Integralismo se afastasse da imagem do nazifascismo. Salgado abandona parte da simbologia Integralista que poderia ser rapidamente identificada como análoga ao nazifascismo, como a saudação. Com a falha na aproximação com o Nazismo durante a Guerra e a derrota do regime, o Integralismo busca se afastar de sua tradição fascista ao mesmo tempo em que busca se aproximar de um conservadorismo religioso e tradicional. Nada mais natural, portanto, que um manifesto fornecendo essas direções.

Mas, na prática, o Manifesto-diretiva, ainda que mais suave e dissimulado do que os materiais anteriores, como o Manifesto de outubro ou o Manifesto de maio, repete muitos dos traços destes. Se o Manifesto de maio, publicado logo após o Levante, tinha uma intenção explicitamente apaziguadora, a função do diretiva é igualmente óbvia: reconduzir a Ação Integralista Brasileira (AIB) para uma nova formação no pós-guerra. O que é ilustrado pela alta presença de palavras como “nazista”, “nazistas” e “totalitário”. O imaginário sobre o fascismo ficou intrinsecamente relacionado ao Holocausto, a partir do qual se entende a necessidade de movimentos fascistas do pós-guerra, por mais semelhantes que fossem aos do entreguerras, buscassem se afastar da incômoda imagem. Um processo que está longe de ser exclusivo do Integralismo: quase todo movimento com características fascistas após 1945 se nega fascista ou inspirado pelo fascismo, por mais semelhante que possa ser (RIEMEN, 2012).

A próxima seção se dedicará a analisar, por meio de ferramentas de análise de conteúdo como gráficos de palavras, as principais características do Manifesto-diretiva.

Análise em profundidade sobre o manifesto

Em seu Manifesto-diretiva, Salgado (1950, p. 98) dá início relembrando um de seus pontos em comum com os outros trabalhos: o Integralismo não é somente um movimento, mas uma filosofia. Ou, melhor dizendo, uma “nítida concepção do Universo e do Homem”. Uma cosmovisão que dita preceitos morais sobre os quais se rege o viver. O partido é meramente a representação dessa filosofia em formato de agremiação política. Salgado (1950, p. 98) afirma que essa cosmovisão é baseada em quatro preceitos básicos, a saber: I) a personalidade humana; II) a família; III) a economia, e; IV) o Estado. A junção dos quatro, em troca e diálogo permanente, forma a ideologia do Estado Integral. Sobre o segundo e o quarto ponto, a família é vista como sustentáculo da nação, ela em si uma grande família, e o Estado é compreendido como a união dos milhões sobre o uno. Chama atenção, então, a inclusão de personalidade humana e economia, traços que são estranhos a outros materiais como os manifestos anteriores. Em particular o primeiro, personalidade humana, considerando o quanto isso contradiz o seu preceito de formação de massas homogêneas e suas afirmações anteriores da eliminação das individualidades (SALGADO, 1950).

Por meio do software WordClouds, é possível apreender alguns dos principais termos que se repetem ao longo do Manifesto-diretiva. Destacar essas repetições auxilia no processo de análise de conteúdo, já que esclarece elementos e conceitos-chave caros ao movimento. 

Figura 1 – Nuvem de palavras sobre o Manifesto-diretiva

Fonte: Elaborado pelo autor, sobre o Manifesto-diretiva e através do software WordClouds.


Figura 2 – Palavras relevantes no Manifesto-diretiva

Fonte: Elaborado pelo autor, sobre o Manifesto-diretiva e através do software WordClouds.


Sobre esses preceitos básicos, reina Deus ― termo que, uma vez mais, é um dos mais utilizados. Se há mudanças em seu discurso, em larga medida os argumentos essenciais permanecem inalterados. Como a já estabelecida hierarquia de Deus acima do Estado Integral (e este acima das milhões de individualidades), ou melhor, Deus como guia do Estado Integral. Deus acima de tudo, Brasil acima de todos, portanto. O que justifica, para Salgado (1950, p. 98) a condenação de “todas as ideologias materialistas”. Repete-se, assim, o discurso anticomunista e antiliberal, com prevalência para o primeiro, de que o materialismo em suas distintas formas ameaça o bem-estar da nação e até mesmo a crença em Deus. A retórica da ameaça do comunismo, mais do que nunca está presente, e a ideologia de Moscou procura desvirtuar “os fundamentos religiosos da Pátria” (SALGADO, 1950, p. 98), com o seu ateísmo corrosivo e divisor. Afirma, assim, que o Integralismo “adota uma concepção espiritualista da história, da economia, da sociedade e do Estado” (SALGADO, 1950, p 98), em franca oposição ao materialismo econômico/histórico.

Figura 3 – Visão espiritualista e visão materialista

Fonte: Elaborado pelo autor, através do software Canvae baseado no Manifesto-diretiva.


Ante a visão espiritualista da História, o homem se transforma em um ser, ele mesmo, espiritual. Uma vida no espírito, por assim dizer. E, sendo o homem feito à imagem de Deus, também possui fragmentos do espírito. Esses fragmentos, elenca Salgado (1950, p. 99), são a família, a propriedade, a profissão, a política e a religião, cada um ligado a um campo de ação específico. Advoga, portanto, pelo direito à propriedade privada. Da mesma forma, a presença do vocábulo “profissão”, indica a preocupação corporativista típica de Salgado, a ideia de dividir as sociedades humanas em estamentos profissionais e industriais.

Salgado (1950, p. 100) logo depois, paradoxalmente, defende pela “Liberdade religiosa”. Paradoxal não apenas pela forte vinculação antissemita do Integralismo, em particular com Gustavo Barroso, mas mesmo pelo ataque nada tolerante que emprega àqueles sem religião, ateus ou agnósticos neste mesmo manifesto, culpando-os pelo bacilo do materialismo. A ausência de religião, para Salgado (1950, p. 99-100), é culpada, a longo prazo, pela degenerescência nacional, já que ela fornece o campo necessário para os materialismos se disseminarem. Em especial o Estado, que não deve ser, de nenhuma forma, laico, pois a ausência de religião desumaniza o homem: “uma sociedade sem Deus deixa de ser uma sociedade de homens, para se transformar num rebanho de animais que tiranos conduzem facilmente” (SALGADO, 1950, p. 100). Um pressuposto, então, bem distante da liberdade religiosa que alega defender. De fato, o Manifesto-diretiva apresenta um Salgado mais fundamentalista do que antes do exílio, colocando Deus em diversos fragmentos no centro de sua argumentação.

Dessa forma, é pertinente quando ele começa, logo em seguida, a interceder pela família tradicional, colocando os termos em todas as suas palavras: “Indestrutibilidade da família e sua constituição nos moldes tradicionais” (SALGADO, 1950, p. 99). Tão mais sintomático quando consolida o que é a família tradicional: uma família constituída por um homem forte, a autoridade do grande pai. Do qual decorre a mesma projeção para o Estado: o Messias a liderar a nação à grandeza também deve ser, ele próprio, um grande pai dotado de autoridade para corrigir os desvios de seus filhos. O autoritarismo patriarcal é, na prática, “o alicerce da vida nacional brasileira”. Cabe a este grande pai proteger a família das influências malignas e corruptoras dos agentes de Moscou, do materialismo desagregador que corrói a religiosidade por dentro.

A propriedade privada, ainda que tenha sido anteriormente afirmada de forma mais tímida por Salgado, aqui aparece em destaque. Isto porque Salgado (1950, p. 99) argumenta que ela é método de defesa das instituições familiares ― e em consequência macro, da nação, sendo ela constituída por essas famílias ― contra as influências materialistas. Em uma família com estrutura patriarcal e uma figura paterna forte, não há perigo de a ideologia comunista espalhar seus tentáculos ímprobos (SALGADO, 1950, p. 99). Em uma passagem pouco adiante, Salgado (1950, p. 100) retorna a argumentos anteriores contraditórios, que emulam o princípio mussolinesco de “democracia autoritária” (MUSSOLINI, 2006, p. 247), de que autoridade e liberdade devem ser sinônimos. Para ele, a autoridade é criada pela liberdade, ao passo que é a autoridade que permite que a liberdade exista. Pois, sem autoridade, reina a anarquia, instaura-se uma liberdade absoluta que acaba por canibalizar a si mesma. Dessa forma, é preciso a estrutura de um pai forte, de um Messias para impor autoridade disciplinar ― e, por consequência, liberdade ― a seus rebentos. Novamente, é revelador sobre esse ponto que termos como “família”, “autoridade”, “autoridades”, “defesa”, “contra”, “ação” e “chefe” apareçam como alguns dos mais comuns.

Após a Guerra, não bastava se afastar da imagem aberta do nazifascismo. Era preciso acusar os inimigos de terem sido os verdadeiros perpetradores. E os fascismos do pós-guerra, por mais semelhantes que sejam com seus antecessores ― e, no caso do Integralismo, abertamente semelhante por um período ― utilizam a manobra retórica do epiteto “socialista” no Nazismo para justificar que não podem ser fascistas, já que são absolutamente anticomunistas ― e ignorando, no processo, a essência anticomunista de todos os fascismos. Plínio Salgado já trazia exatamente esse argumento no Manifesto-diretiva:

A atividade política para ser plena, há de se basear-se na garantia do culto religioso e da capacidade econômica, único meio de impedir a exploração eleitoral dos fracos pelos fortes, dos crédulos pelos mentirosos, dos honestos pelos desonestos, dos pobres pelos ricos, dos timoratos pelos audazes, pois foi por falta de fundamento moral e luz espiritual que em muitos países o povo se transformou em massa amorfa e esta levou ao poder os fundadores dos estados totalitários, tanto nacional-socialistas como internacional-socialistas (SALGADO, 1950, p. 100).

Tão cedo a Guerra acabou, considerando que o manifesto é publicado ainda em 1945, os fascismos sobreviventes trataram de buscar se afastar o mais rapidamente possível do Nazismo. O “socialista” fornecia o caldo perfeito para isso, permite não somente se distanciar, mas também empurrar os crimes Nazistas para o outro lado. O comunismo se divide, nesse discurso, em dois tipos: o tradicional ― internacionalista ― e o Nazista ― nacionalista. Ambos, totalitários. Ambos, espreitam como um animal faminto sobre a “massa amorfa” (SALGADO, 1950, p. 100), desejosos de destruir a família tradicional, impor a divisão sobre os indivíduos e, no processo, enfraquecer a unidade nacional.

Vale ressaltar que apesar da tentativa de distanciamento do Nazismo no pós-guerra, o Integralismo, para além de proximidades ideológicas e doutrinárias, tinha uma aproximação de fato com o Nazismo. Não obstante a figura antissemita de Gustavo Barroso, que aproximava o Integralismo mais ao Nazismo do que ao Fascismo, outros militantes do movimento transitavam entre afiliações nazistas no Brasil. O próprio Plínio Salgado, em 1942, tentou uma aproximação discreta com o regime alemão, na tentativa dúbia de não se indispor com Vargas, mas tampouco abandonar a possibilidade de ser benquisto pela possível nação vencedora da Guerra. Salgado sempre negou a relação, principalmente depois da derrota Nazista na Guerra, quando o regime se tornou a encarnação do mal no imaginário popular e político: “Sem acordo com Vargas e Hitler, buscou o estabelecimento de um discurso seguro e incontestável para a reconstrução do integralismo: o cristianismo e a utilização da palavra de Deus como justificativa de práticas políticas” (GONÇALVES; NETO, 2020, p. 73-74).

Salgado (1950, p. 101) coloca o Integralismo, neste novo ciclo, contra o que identifica como Estados totalitários, deslocando o mesmo adesivo para o Nazismo e para o comunismo. Visto que, para ele, ambos seriam baseados em formas de materialismo histórico e uma visão distorcida do darwinismo. Isto é, enquanto o comunismo impõe uma luta de classes, na qual a classe mais forte sagra-se historicamente vencedora, o Nazismo pratica o mesmo com a raça. Por mais que admita que o Nazismo seja de direita ― o que não surpreende, considerando que os fascismos tradicionalmente se colocam como uma terceira via, algo que o Integralismo sempre fez (GONÇALVES; NETO, 2020) ― deduz que Nazismo e comunismo são equivalentes de sinal trocado não apenas pelo materialismo histórico, mas tanto mais pelo ateísmo de ambos. Os dois, então, são ameaças contra o cristianismo e visam “a destruição da personalidade”, em curiosa alegoria ao individualismo que contradiz a apologia ao coletivismo dos trabalhos de antes.

Em revisionismo de seu movimento, Salgado (1950, p. 112) replica que a AIB sempre fora antitotalitária e que, injustamente, fora classificada como totalitária exatamente pelos inimigos totalitários. É interessante perceber a ausência do vocábulo “fascismo” no Manifesto-diretiva, e sua substituição por totalitarismo. E notar como já nessa época a noção de totalitarismo se tornara ferramenta para classificar esquerda e direita como sinônimos, por mais ligado que um movimento fosse com a própria extrema-direita até pouco antes. A ideia de fascismo, por sua vinculação direta à extrema-direita, é abandonada em função da ideia de totalitarismo, mais útil por permitir englobar da mesma forma movimentos absolutamente discrepantes entre si. Na prática, bastante semelhante ao que é feito contemporaneamente com a ideia de populismo (REIS, 2017).

Curioso, contudo, que Salgado (1950, p. 102) relate que a semelhança indumentária e simbolista do Integralismo com o nazifascismo era, na prática, uma forma de rejeição do segundo. Isto é, que o Integralismo não teria se inspirado no Fascismo, mas adotado estratégias semelhantes como forma de proteger o Brasil da influência estrangeira deste e, principalmente, do Nazismo posteriormente. A adoção de cores e o nacionalismo brasileiro viriam de um mecanismo de defesa da soberania brasileira:

É preciso lembrar que , quando o Integralismo surgiu no Brasil, a nossa Pátria estava ameaçada pela infiltração de doutrinas estrangeiras, a tal ponto que os nazistas usavam impunemente os seus distintivos, as suas bandeiras e as suas camisas kaki, chegando mesmo a fazer desfiles em certos pontos do país, sob os olhos complacentes das autoridades, o que lhes facilitava conquistar prosélitos entre elementos descendentes da raça alemã, determinando por parte dos antitotalitários nacionalistas o uso de exterioridades semelhantes para captar, nacionalizar brasileiramente tais elementos e impedi-los de formar quistos raciais que poderiam ser utilizados pelo imperialismo nazista. […] O meu argumento para os que dirigiam perguntas sobre a camisa-verde Integralista e antitotalitária, era o de que a circunstância de alguém usar licitamente na sua defesa a mesma arma que o adversário emprega no ataque, longe de identificar esse alguém ao adversário, mas o diferencia dele, pois o que importa não é a roupa nem o instrumento em uso, e sim a atitude e a doutrina de cada qual. Tanto assim é que, na própria Alemanha, o partido comunista usava um uniforme e tinha uma milícia, em tudo igual a nazista, uniforme e milícia que só se extinguiram quando os comunistas alemães (em quanto nós, Integralistas, sustentávamos no Brasil uma doutrina antitotalitária), confraternizaram com os hitleristas, tanto no Reichstag, como depois nas próprias eleições, o que é do domínio da História (SALGADO, 1950, p. 102-103).

Fica claro, na prática, que se o Manifesto de maio é uma tentativa de trégua com o Estado Novo, o Manifesto-diretiva é uma tentativa de afastar o mais rápido possível qualquer associação do Integralismo com a imagem do Nazismo e do Holocausto. É sintomático, desta forma, que o Nazismo tenha praticamente substituído o liberalismo como inimigo secundário, após o comunismo. Quase não há menção ao liberalismo, exceto o que se pode induzir a partir de suas críticas ao materialismo. Pelo contrário, chega a afirmar, com perceptível orgulho, que Getúlio Vargas o chamara de liberal, quando se defendeu dizendo que não tinha ligações nazifascistas (SALGADO, 1950, p. 104). O ataque ao materialismo prossegue, mas substituí um de seus alvos por outro alvo mais útil.

Em outro ponto curioso, Salgado (1950, p. 103) justifica que o Integralismo não pode ser totalitário porque mantinha uma relação amigável com Vargas. Isto é, por ter tido a presença de Vargas em eventos Integralistas de 1937, o movimento não teria ambições de um Estado totalitário, por maior que fosse a paridade da ideia de um Estado total com a de um Estado Integral. Em outra manobra, transforma seu exílio em Portugal em um convite de Vargas para “ocupar um cargo diplomático” e que havia sido ele a rejeitar o cargo de Ministro da Educação, por ter uma preocupação democrática que não via refletido no Estado Novo (SALGADO, 1950, p. 103-104). Salgado (1950, p. 103) conclui, então, que “Apontar, pois, o Integralismo como totalitário ou inspirado em ideologias exóticas será ofensivo ao Sr. Presidente Vargas, assim como à idoneidade das autoridades públicas do Brasil”. Ou seja, dado a proximidade de Vargas com o Integralismo, afirmar que a AIB seria totalitária seria afirmar que Vargas também o era. Também utiliza, entre outras, como justificativa para não ser totalitário não ter tido força para chegar ao Executivo federal (SALGADO, 1950, p. 104).

Os seus malabarismos continuam nas páginas seguintes, quando fala que o Levante Integralista na verdade foi um protesto geral, que apenas por coincidência tinha algumas centenas de Integralistas ― chega a colocar um parêntese “(bem poucos)” ―, desejosos que o Estado Novo transitasse à democracia. Também lava as mãos, ao dizer que só soube do Levante quando este já havia terminado (SALGADO, 1950, p. 105). Em outra alteração dos fatos, disserta por parágrafos sobre como o Integralismo jamais aceitaria financiamento, armamento ou apoio estrangeiro, quando ele próprio recebeu financiamento de Mussolini em seu início (SALGADO, 1950, p. 105) (c.f. GONÇALVES; NETO, 2020).

É claro, no diretiva, não apenas a tentativa do Integralismo em se afastar do nazifascismo, mas também de se aproximar da democracia liberal e dos Estados Unidos. O que faz sentido, considerando o deslocamento de poder para os EUA no pós-guerra e o colapso do que Salgado anteriormente havia enxergado como o método político do futuro. Retorna para o Manifesto de maio, lembrando da trégua que foi forçado a reconhecer com o Estado Novo, gentilmente solicitado por Vargas e concitando os Integralistas a “não criarem dificuldades ao governo e a se manterem pacíficos e ordeiros afim de não perturbar a união nacional, numa hora que se prenunciava a agressão nazista e a desordem comunista aliada ao nazismo” (SALGADO, 1950, p. 106). Ironicamente, porém, não há qualquer menção ao Nazismo no Manifesto de maio, sendo este fator só adicionado após a Guerra. De resto, o Manifesto de maio buscou, pela pressão do Estado Novo, uma conciliação nacional em prol do que enxergava como um mal necessário.

Em seguida, reforça sua aproximação com os EUA a, uma vez mais, praticar um retcom incluindo no Manifesto de maio elementos que não estavam presentes. Pois afirma que Vargas (e ele, por conseguinte), naquela altura, tinha um compromisso com os EUA. E era preciso, para o bem do Brasil, dos EUA e do continente americano, “uma sólida união de todos os brasileiros, a concorrer com o máximo esforço pela causa da democracia”. Um paradoxo, não apenas pela ausência de qualquer preocupação democrática no Manifesto de maio, mas igualmente por ter acabado de dizer que mesmo o Estado Novo era contra a democracia, razão pela qual havia recusado o ministério. Por fim, chama de loucos e mentirosos vis aqueles que clamam que o Integralismo não seria democrático (SALGADO, 1950, p. 106) ― enquanto no Manifesto de outubro dizia explicitamente que o Integralismo promoveria uma ruptura democrática, caso fosse necessária; e mesmo no próprio diretiva defende a estrutura disciplinar e autoritária de um Messias inspirado no pai forte.

Em destacável ponto tardio de aproximação com Mussolini (2006), Salgado (1950, p. 106) repete o argumento do Duce de que a felicidade forma homens bestializados. Contradizendo sua defesa da democracia liberal alguns trechos antes, retoma a ideia de que a verdadeira felicidade é obtida através da pressão de uma estrutura disciplinar e autoritária. Uma vida voltada para os bens materiais e individualistas ― no que talvez seja o mais perceptível resquício de antiliberalismo remanescente no diretiva ― se “funde com a escravidão, mesmo sob a forma do conforto e dos prazeres materiais” (SALGADO, 1950, p. 107). Isto porque um homem materialista, um homem que não segue a disciplina, se afasta de Deus e se aproxima da besta ― o que, por consequência, degenera a nação.

Salgado (1950, p. 108) encerra reafirmando que o Integralismo não é apenas um partido político ou uma doutrina, mas uma cosmovisão. Uma filosofia que transcende a figura de seu criador e que sobreviverá mesmo quando ele estiver morto ― um ponto que, inegável, ele acertou. Mais do que isso, identifica no Integralismo a expressão maior de brasilidade, da mesma forma que Mussolini (2006) afirmava o Fascismo como a personificação do italianità:

Vive e viverá, porque existindo o Brasil, existe o Integralismo, que é um modo de ser, tão essencialmente ligado à economia íntima da nacionalidade, como folhas, as flores e os frutos à árvore materna […] A “Ação Integralista Brasileira’ “era um partido e foi fechado; mas o Integralismo é uma doutrina e ninguém o pode fechar (SALGADO, 1950, p. 108-109).

É interessante perceber, ao se pegar materiais com um recorte espacial e temporal amplo, não apenas como o Fascismo e o Integralismo se alteram dentro deles mesmos, mas também como contradizem seus argumentos em si. Salgado passa de ser abertamente a favor do Fascismo, por tentar de qualquer forma se afastar. Sem considerar outras tantas contradições menores. Por fim, essas foram as características apreendidas no Manifesto-diretiva, dispostas na tabela abaixo:

Tabela 1 – Características apreendidas no Manifesto-diretiva (1945)

ConceitoCaracterística
AnticomunismoO ateísmo comunista irá destruir “os fundamentos religiosos da Pátria” Nazismo como equivalente ao comunismo
AntiliberalismoO materialismo degenera o homem e o afasta de Deus Utiliza a imagem de Deus como forma de atacar os materialismos
AntitotalitarismoO Nazismo surge como novo inimigo, enquanto o liberalismo é quase esquecido Tentativa de se afastar da imagem do fascismo ― alta frequência de menções ao Nazismo Medo de o associarem ao Nazismo: discorre em largas passagens sobre como o Integralismo é antitotalitário
AutoritarismoEstado emula a família tradicional e a autoridade do grande pai Maniqueísmo: “homem de bem” Altera fatos: diminui o Levante Integralista, afirma que rejeitou o ministério, diz que foi para Portugal não como exilado Felicidade material forma homens bestializados, a verdadeira felicidade vem da disciplina Inimigos objetivos
Fundamentalismo cristãoHomens sem Deus são animais Exaltação de Deus como guardião do Estado Integral
LiberalismoPropriedade privada como defesa da família contra o materialismo Defesa da propriedade privada, afirma que Vargas o chamou de liberal, apaga o antiliberalismo Aproximação com os Estados Unidos e tentativa de se reinventar como democrata-liberal
NacionalismoFamília como sustentáculo da nação Estado como preceito básico do Integralismo O Integralismo não é só um movimento, mas uma cosmovisão O homem sem Deus enfraquece e degenera a nação
ReacionarismoNação degenerada Paranoia conspiracionista ― inimigos da nação dispostos a destruí-la Os materialismos ameaçam a nação permanentemente Retórica da ameaça: o comunismo vai destruir a nação
Fonte: Elaborado pelo autor, baseado no Manifesto-diretiva.

Considerações finais

Através de análise de conteúdo e o apoio do WordClouds, este trabalho tentou trazer uma discussão em profundidade sobre um material chave para o Integralismo, por marcar a alteração em seu discurso e a tentativa, quase desesperada, de se afastar do agora incômodo fantasma do nazifascismo. Materiais anteriores como o Manifesto de maio foram elevados à comparação, ainda que brevemente, para apontar essas mudanças. Se até 1938 Salgado não se importava, ou até desejava, se aproximar de Hitler e Mussolini, em 1945 busca a qualquer curso classificar Nazismo e comunismo como sinônimos.

Tendo quase cem anos de História, é inevitável que existam alterações discursivas significativas no Integralismo. Se mesmo o Fascismo de Mussolini perpassou distintos momentos em seu vintênio, que vão de períodos progressistas (1915-1922), liberal (1922-1924), até o golpe após o caso Matteotti e o fracasso da Secessão Aventina, que dirá o Integralismo, que nunca desapareceu por completo do debate público brasileiro. Mesmo inspirado por seus antecessores, o neointegralismo que surge após a morte de Salgado, e se funde ao Bolsonarismo no contemporâneo, possui características distintas de sua matriz (GONÇALVES; NETO, 2020). Como diz Robert Paxton (1998), conceitos e movimentos políticos se alteram conforme migram no espaço-tempo, e o Integralismo é só mais um exemplo desta afirmação.

Referências

GONÇALVES, Leandro Pereira. “Plínio Salazar?” o integralismo luso-brasileiro de Plínio Salgado. In: Anpuh. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364689605_ARQUIVO_PlinioSalazarointegralismoluso-brasileirodePlinioSalgadoANPUH.pdf. Acesso em: 26 out. 2021.

GONÇALVES, Leandro Pereira; NETO, Odilon Caldeira. O Fascismo em camisas verdes: do Integralismo ao neoIntegralismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020.

MUSSOLINI, Benito. My autobiography: with “The political and social doctrine of Fascism”. New York: Dover Publications, 2006.

PAXTON, Robert. The five stages of fascism. The Journal of Modern History. Chicago: Chicago University Press, v. 70, n. 01, 1998, p. 01-23. Disponívelem: https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/235001. Acesso em 06 nov. 2021. Doi: https://doi.org/10.1086/235001.

REIS, Guilherme Simões. Pela democracia, precisamos jogar fora o termo ‘populismo’. La Libertad de Pluma. Disponível em: http://lalibertaddepluma.org/guilherme-simoes-reis-por-la-democracia-necesitamos-echar-el-termino-populismo-a-la-basura/. Acesso em: 19 set. 2020.

RIEMEN, Rob. O eterno retorno do Fascismo. Lisboa: Editorial Bizâncio, 2012.

SALGADO, Plínio. O Integralismo perante a nação. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1950.

SHELLEY, Percy Bysshe. Ode ao vento oeste e outros poemas. Trad. Espólio de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Hedra, 2009.

Notas

Sobre o autor

Sergio Schargel

Jornalista e Escritor. Doutorando em História Comparada (UFRJ). Bacharel em Comunicação Social (PUC-Rio). Mestre em Ciência Política (UniRio), professor da Universidade Federal de São João Del Rey (MG). Pesquisador nas áreas de teoria política, literatura política, fascismo, extrema direita, judaísmo, antissemitismo. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Diálogos da Diáspora - Racismo e Antissemitismo, do Labô.