Gabriel Delphino
Introdução
O sincretismo religioso é historicamente considerado como uma parte constitutiva da formação social brasileira. Nesse sentido, um marco contemporâneo desse processo é o neopentecostalismo, sobretudo a partir da Igreja Universal do Reino de Deus, que tem em sua prática um conjunto de ritos e objetos de outras religiões ressignificados à luz da sua própria teologia.
Levando isso em consideração, o texto busca investigar como a apropriação das religiões de matriz africana e do judaísmo toma forma nas práticas contemporâneas da Igreja Universal do Reino de Deus. Para tal, a pesquisa foi orientada a partir de trabalhos de campo em cultos da igreja ao longo de uma semana, de modo que foram realizadas observações de caráter etnográfico sobre o assunto. Em complementaridade, também serão analisadas as obras “Orixás, caboclos e guias: Deuses ou demônios?” (MACEDO, 2019) e “Plano de Poder: Deus, os cristãos e a política” (MACEDO, 2008), ambas de Edir Macedo.
Seguindo esse método, foi possível investigar como essa apropriação se dá em termos teóricos, nas obras escritas pela maior liderança da igreja, e em termos práticos, identificando como se materializa essa relação no cotidiano dos cultos. Esse esforço se faz importante, pois observa-se como esses aspectos tomam forma na doutrina geral e, por conseguinte, como aparecem em âmbito local.
De início é importante mencionar que ao tratar “religiões de matriz africana” em um conjunto, são remetidos especialmente Candomblé e Umbanda. Isso se dá, pois não apenas a relação mais próxima da Igreja Universal acontece com ambas, mas as duas podem ser entendidas em paralelo, ao passo que compartilham práticas e origens (SILVA, 2005). O ponto a ser ressaltado nessa nomenclatura é o caráter afro-brasileiro dessas religiões, à medida que os ritos da IURD dialogam com um aspecto mais geral dessas diferenciações, não realizando distinções específicas sobre cada uma das práticas.
Como hipótese principal, estima-se que a Universal faz uso de práticas e símbolos dessas religiões, relacionando os elementos afro-brasileiros ao “mal” e os judaicos ao “bem” em uma “régua moral” que orienta a prática dos fiéis. Essa elaboração moral no discurso religioso da IURD apareceria por meio de uma apropriação estética de elementos desses dois grupos, de modo que a identidade associada à noção de “bem” e “mal” possa ser compreendida em paralelo com o desses segmentos.
Sendo assim, essa apropriação é abordada na pesquisa orientando-se pelas categorias de “negritude” (NASCIMENTO, 2016) e “judeidade” (MEMMI, 1969), ao passo que apresentam uma relação com a identidade das religiões mobilizadas, para além do rito ou artefato. Partir dessa elaboração permite, por exemplo, analisar como esses resgates são feitos de uma forma que mobilize também essas identidades.
Essa apropriação, nesta pesquisa, será investigada sob a categoria de colonialismo a partir de Frantz Fanon (2008) e Albert Memmi (2007). Nesse sentido, a utilização aparece na forma colonial de dissociação entre o eu e o outro, de modo que produz uma ideia de “bem” e “mal” da mesma forma que deslegitima a identidade do “colonizado”. Ao mesmo tempo, essa prática, e que produz efeitos psicológicos tanto no “colonizado”, quanto no “colonizador”.
Levando isso em consideração, o colonialismo toma forma na análise enquanto uma categoria articuladora de ambas as identidades. Nesse processo, há uma concepção cindida de sujeito que não é compreendido em si, mas que contempla também uma projeção colonial do outro em sua identidade social. É a partir dessa relação que é possível investigar como o discurso da Universal torna esse elemento colonial perceptível a partir da moralização das identidades negra e judaica.
O trabalho de campo, apesar de realizado ao longo do ano de 2023, infelizmente não consta com qualquer tipo de registro visual. As regras da igreja não permitem que qualquer registro seja feito dentro de suas dependências e seguir esse critério foi fundamental para o desenvolvimento do trabalho. Ademais, ressalta-se que foram visitadas três filiais da Igreja Universal na capital do Rio de Janeiro, sendo duas de caráter mais “local” de bairro e uma sendo a matriz, em Del Castilho. A intenção dessa diferenciação foi observar possíveis similaridades e diferenças que tomam o “perfil” da igreja como pressuposto.
A pesquisa se justifica pela importância da IURD e de sua liderança máxima, Edir Macedo, no campo social e político contemporâneo. Considerando o neopentecostalismo como um dos principais fenômenos sociais latino-americanos (TÉC-LOPEZ, 2020), a Igreja Universal aparece como um dos principais atores nesse processo, ao passo que ressignifica e reorienta certas práticas e rumos do pentecostalismo moderno (FRESTON, 1993; MARIANO, 2014).
O artigo contará com outros três segmentos, respectivamente: um primeiro dedicado à compreensão da apropriação das religiões de matriz africana e a relação com a negritude; um segundo para analisar como a judeidade é mobilizada nos cultos e na promessa política da IURD; e, por fim, um terceiro momento para abordar os casos em relação comparativa, estabelecendo mais diretamente a relação entre ambos, seguido de um segmento para considerações finais.
A negritude enjaulada
Para evitar qualquer tipo de equívoco conceitual, é importante distinguir categorias que são diferentes, mas que nesta pesquisa aparecem de forma associada. As religiões de matriz africana, apesar de compartilharem a origem, não necessariamente remetem à negritude enquanto identidade, associação que é feita após considerar o histórico comum. Entretanto, nesta pesquisa, essas duas categorias estão atreladas a partir do processo de colonialismo (FANON, 2008; MEMMI, 2007).
Seguindo esse aspecto, os dois fenômenos estão inseridos em um conjunto cultural e religioso associado às práticas afro-brasileiras, atreladas à uma ideia de negritude pelo compartilhamento da origem. Essas coisas são relacionáveis quando se parte de uma concepção de negritude que considera como parte do seu processo de apagamento também sua dimensão religiosa e cultural.
Como apontado por Abdias do Nascimento (2016), o processo de genocídio da população negra brasileira perpassa elementos para além do aspecto material, atingindo sua cultura, religião e identidade negra como um todo. Isso se deu por meio de proibições de atividade cultural, perseguições religiosas e um processo de desqualificação da pele negra ao longo do século XX (NASCIMENTO, 2016).
Esse elemento também aparece nos escritos de Lélia Gonzalez (1984), quando a autora observa como as contribuições culturais do negro no Brasil são apagadas em detrimento de um “discurso nacional”. Nesse processo, há uma valorização de heranças europeias e uma invisibilização de aspectos afro-brasileiros, quando não apagados e criminalizados (GONZALEZ, 1984).
Essas perspectivas auxiliam na compreensão de que a opressão de um em relação a outro não necessariamente tem exclusividade material, mas que pode ser implementada também em dimensões simbólicas. Como apontado por Fanon (2008), seriam elementos característicos de uma relação colonial, mas que são estendidos e internalizados para a psique do colonizado e do colonizador para além do domínio territorial.
Quando observadas as práticas da IURD, a identificação de certas ações de cunho discriminatório já foi feita por uma série de pesquisadores (DIAS, CAMPOS, 2012; FERNANDES, ALMEIDA, 2020; ZANIRATI, 2020). Em sua maioria, põem em questão como a construção e crescimento da Igreja se deu em uma relação antagônica com as religiões de matriz africana.
Esse antagonismo, entretanto, não se dá apenas com esse segmento, também sendo fortemente marcado o discurso anticatólico na igreja. Contudo, faz-se necessário diferenciar que, diferente do catolicismo, a dimensão racial se faz presente nos dois casos aqui abordados, de modo que seus símbolos e ritos apropriados não se situam em uma posição relacionável com os outros dois.
O trabalho de Fernandes e Almeida (2020) destaca-se, pois identifica como ocorre um processo de satanização dessas religiões dentro da IURD. Na pesquisa, os autores identificam como a intolerância em dado momento toma forma teatral em rituais no púlpito que giram em torno de estereótipos. Da mesma forma, são ações que tomam forma em diversas frentes de atuação da igreja, podendo-se considerar como um discurso sistemático em torno das religiões afro-brasileiras.
Observando em uma perspectiva histórica, discursos como esse também são encontrados, por exemplo, em um momento inicial da igreja, quando Edir Macedo ainda pregava por meio do rádio na década de 1980. Tendo reservado um horário após cultos de religiões de matriz africana para deslegitimar o discurso desses e, consequentemente, trazer atenção e fiéis para a Universal (MARIANO, 2014).
A prática ao longo do tempo se faz recorrente pelas lideranças da denominação, e não se restringem exclusivamente às religiões de matriz africana, acontecendo também em direção ao catolicismo. Entretanto, o caso afro-brasileiro carrega uma especificidade em sua sistematização e continuidade, apresentando-se como uma prática perene em torno de uma teologia do conflito que tem como principal alvo essas religiões.
Apesar de estar presente em diversas práticas da igreja, é em “Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?” (MACEDO, 2019), que Macedo escreve mais diretamente sobre o assunto. Na obra, o autor remete os orixás aos demônios, travando o que autores identificaram como uma das frentes da “guerra santa” da Universal (MARIANO, 2014, ALMEIDA, 2009). São associados nominalmente e por meio de imagens de cultos dessas religiões, apontando que estes seriam “personificações do mal” (MACEDO, 2019, p. 25).
Na pesquisa de Ronaldo de Almeida (2009) é possível identificar como a associação entre orixás e demônios se dá em sua forma prática. O pastor atrela os males sofridos pela fiel às relações que esta tinha, até então, com as religiões afro-brasileiras, de modo que ela deveria se livrar dos “demônios” que estariam interrompendo sua vida de prosseguir (ALMEIDA, 2009).
A colonização dessas religiões se constrói nessas práticas intolerantes, ao passo que suas dinâmicas são absorvidas para o interior dos cultos. Dessa forma, Macedo separa o significante do significado, tendo esse último esvaziado de seu caráter afro-brasileiro. A relação da negritude com as práticas religiosas afro-brasileiras é eliminada e demonizada, de modo que separa a identidade negra dela mesma.
Considerando o caráter racial dos fiéis da IURD, que é majoritariamente negro[1], esse tipo de discurso acarreta uma ruptura com um sentido de negritude que tem como foco a valorização das práticas religiosas afro-brasileiras. A colonização da religião se faz, nesse momento, uma colonização da identidade negra do fiel, descaracterizando e demonizando aquilo que poderia lhe ser parte.
De acordo com Nascimento (2016), a prática coloniza o negro por condenar e retirar a negritude dos fiéis, compostos por maioria negra, mata espiritualmente e subjetivamente o negro a partir da demonização da sua cultura e religião. Especialmente para os fiéis que migram para a Universal diretamente dessas religiões, há uma construção de antagonismo entre os dois espaços por parte dos pastores, de modo que o culto evangélico seria o verdadeiro espaço para progredir, diferente do espaço anterior caracterizado pelo atraso.
Quando observados os cultos realizados pela IURD, é possível identificar que da mesma forma que há uma demonização das religiões, há uma apropriação até certo ponto de suas práticas e ritos religiosos. O que se denomina “Sessão do descarrego”, ocorrido às sextas-feiras na igreja, é o que mais se associa com as religiões de matriz africana nas ações da Universal.
É um dia em que o pastor, vestido de branco, faz rituais de “descarrego” que busca eliminar os demônios dos fiéis, os quais estariam atrasando os seus progressos individuais. Esse ponto complementa o livro de Macedo (2019), ao passo que demoniza o conteúdo das práticas na Umbanda e no Candomblé, o mesmo processo estético é apropriado e replicado dentro dos cultos da Universal, mas agora sem seu conteúdo religioso ou qualquer materialidade na identidade afro-brasileira.
A similaridade com o ebó de descarrego do Candomblé é perceptível, esse também se apresenta como um processo em que se realiza uma limpeza dos atrasos da vida do indivíduo. Contudo, diferente desse, na sessão da Universal a relação é estabelecida diretamente como um conflito contra os “demônios” na vida da pessoa, os quais são nomeados frequentemente como Exu ou Tranca Rua, associando-os com uma energia maligna inerente às suas práticas.
Esse elemento foi perceptível em uma das idas ao campo, de modo que o pastor realizava o ritual em um dos fiéis que alegava ter depressão, o que o impediria de avançar em seu projeto profissional como empreendedor. Na mesma hora o pastor identificou uma “energia pesada” vinda do fiel, nomeando-o como demônio quando passou a “retirá-lo” de seu corpo. No processo, algumas vezes o pastor indicou o termo Exu para designar o demônio que deveria ser removido.
Ao final do processo, o fiel se deita desacordado por alguns segundos e retorna falando que se sente muito melhor. O pastor afirma que agora ele não teria problemas em se desenvolver profissionalmente nem de atingir os sucessos profissionais desejados, já que o demônio havia sido retirado de seu corpo.
Como tratado por Fernandes e Almeida (2020) isso se dá em uma performance no púlpito de modo a expor aos outros fiéis conexões de sentido possíveis entre elementos de suas realidades, sendo exemplos os demônios, Exu, depressão e insucesso profissional. Dessa forma, a partir da performance, esses termos passam a ser relacionáveis como coisas indesejadas pelas pessoas ali presentes, caso elas desejem estar próximas de seus contrários.
A judeidade cindida
Vimos como como a colonização toma forma em relação à negritude, na judeidade o processo acontece de forma similar. Da mesma forma que o anterior, os judeus também passaram historicamente por um processo de apagamento físico, religioso e cultural, de modo que sua identidade tem se tornado dinâmica em torno da sobrevivência.
Hannah Arendt (2017), ao refletir sobre a vida dos judeus em diáspora no pós-segunda guerra, os interpreta sob a lente do termo do eterno “refugiado”. Isso porque o judeu em imigração torna-se um indivíduo que se vê como um refugiado de si próprio, e frequentemente busca anular sua identidade e cultura para que possa ter uma maior garantia de sua sobrevivência.
Mais contemporaneamente esse aspecto entra em questão, pois figuras associadas ao judaísmo vêm sendo resgatadas por evangélicos neopentecostais e lideranças de extrema-direita. Nesse processo, uma estética judaica passou a ser apropriada por esses segmentos, de forma que a partir dela seja estabelecido um diálogo com grupos sociais como políticos de extrema-direita, líderes religiosos pentecostais, liberais libertários e grupos associados a agentes de segurança.
Sobre isso, a Igreja Universal acaba apresentando-se como uma figura importante, já que busca associar-se ao judaísmo e a uma imagem de Israel com maior frequência. Exemplos dessas tentativas são a construção do “Templo de Salomão” em São Paulo[2], com materiais importados de Israel, a aparência de Macedo como um rabino, utilizando quipá e xale de orações[3], dentre outras.
Dessa forma, fez-se importante tratar não apenas a apropriação de artefatos ou símbolos judaicos, o que seria insuficiente, mas entendê-los a partir da categoria de judeidade (MEMMI, 1969). Em sua concepção, Albert Memmi (1969) argumenta que essa judeidade remeteria ao modo pelo qual o judeu seria concebido como um judeu, contendo a sua experiência social, religiosa, cultural e política de sê-lo, de modo que esses elementos formariam a sua identidade.
Lidar com a categoria é importante, pois assim como no caso da negritude, o modo pelo qual se dá a apropriação passa por um aspecto de desmembramento dessa judeidade enquanto identidade. Isso se dá pois essa relação é construída diretamente com o judeu e a sua judeidade por meio dos objetos, símbolos e artefatos. Como no caso anterior, as apropriações são o caminho pelo qual a dinâmica é estabelecida com as identidades.
Esse tipo de movimento, atualmente, não é exclusivo da IURD. De certo modo, como apontam Gherman e Klein (2019), há um processo de ruptura na ideia de judeu mesmo nos segmentos políticos de extrema-direita contemporâneos. O diálogo estabelecido com os judeus se dá em um processo de aproximação, mas que nega uma identidade judaica em suas práticas, sendo o apoio consistido apenas em sua forma (GHERMAN, 2022).
Em uma das visitas realizadas em um culto da igreja, foi possível observar como esses símbolos são apropriados no nível local, produzindo um sentido direto com os fiéis. No culto em questão, tratava-se questões sobre dificuldade de emprego e prosperidade, com o pastor dialogando com fiéis no púlpito e incentivando-os a não desistir e chamar pela “prosperidade” em suas vidas.
Em seguida, o pastor iniciou uma reza pela prosperidade financeira de um fiel em específico e, ao longo do processo, imagens de uma menorá eram projetadas pelas paredes da igreja. Esse procedimento era repetido toda vez que uma reza por melhora da vida dos fiéis era realizada, com a imagem da menorá sendo reproduzida em larga escala pelos projetores do templo. O artefato não estava presente fisicamente no local, mas era suficientemente importante para ser projetada visualmente para os fiéis terem aquela referência imagética enquanto rezam.
Esse relato é complementado pelo momento em que o dízimo foi pedido, tendo passado uma “sacola” com os envelopes e as respectivas doações. Além da menorá permanecer projetada durante esse momento, a própria sacola do dízimo tinha uma menorá costurada em seu tecido, de modo que todos os fiéis possam vê-la enquanto fazem o depósito na bolsa.
Há, com isso, a utilização do símbolo judaico enquanto um sinal de prosperidade para os fiéis. As conexões estabelecidas no culto, a partir das apropriações da menorá se fazem em relação à uma ideia de salvação e progresso financeiro pessoal, costumeiramente associado ao ganho de dinheiro e lucro. Esse fato ilumina o modo pelo qual o judaísmo e seus elementos são apropriados de uma forma específica pela IURD.
Aqui, a colonização se daria a partir de uma “falsa aproximação”, em que seus elementos são apropriados em sentido positivo, de modo que a comunidade evangélica, em último nível, deveria se aproximar mais da judaica nos âmbitos social e político. Isso toma forma a partir das iniciativas políticas registradas em “Plano de Poder: Deus, os cristãos e a política” (2008), em que Macedo aponta que os cristãos precisam de uma nação e que não podem esperar a volta do Messias para tal, mas que ela deve ser construída para seu retorno.
Essa que Macedo (2008) nomeia como a nação dos filhos de Israel, apesar de ter no país um ideal de futuro, o Brasil aparece como um local propício para o desenvolvimento desse projeto de poder. Isso se dá porque é no país em que os “escolhidos” para realizar tal missão estariam se reunindo, sendo esses os cristãos de uma maneira geral (MACEDO, 2008).
Nessa nova nação, os princípios e a moral cristã seriam a base de sua identidade nacional. Entretanto, é importante destacar que a generalidade do termo indica uma tentativa de agregar outros segmentos religiosos que giram em torno da volta de um messias à Terra. Esse elemento dá forma à utilização dos símbolos judaicos, à medida que esses segmentos seriam conectados por sua ideia em comum do retorno e de uma terra prometida aos filhos desse retornado (MACEDO, 2008).
A colonização do judaísmo aparece em um sentido que se elabora um modelo de indivíduo considerado como vítima do passado, oprimido e perseguido como os cristãos de maneira geral, mas que ressurge como o agente do futuro. Nesse sentido, esse indivíduo cristão seria fundamental como agente político para a construção dessa Israel material, propiciando o retorno do messias.
Quando posta em perspectiva, é possível observar como essa narrativa contempla um projeto de nação compartilhado por diversos segmentos religiosos pentecostais e setores políticos de direita e extrema-direita contemporâneos (GHERMAN, 2022). A aproximação com o judaísmo se dá, portanto, não por uma conexão genuína entre os segmentos religiosos, mas por um resgate utilitário de suas características.
Levando isso em consideração, a apropriação se dá em dois caminhos: primeiro em um nível individual em que transparece uma dimensão de “bem” e prosperidade ao fiel que precisa do amparo e, por outro lado, em nível coletivo em forma de projeto político. Em ambos os casos as utilizações tomam uma forma positiva de um caminho a ser seguido, seja individual ou coletivamente pelos cristãos.
A “régua moral” da Igreja Universal
Tendo observado como essas apropriações ocorrem e suas relações com a negritude e a judeidade cabe agora colocar esses casos em perspectiva. O ponto principal a ser percebido é como cada um se faz apropriado sob certos estereótipos e características que são relacionadas entre si, como “bem” e “mal”, “atraso” e “prosperidade”, “demônio” e “deus”.
Figura 1 – A “régua moral” (Fonte: elaboração própria)
Como é possível observar na imagem, é uma construção polarizada quando proposta a análise de ambos em perspectiva comparada. Os estereótipos e associações realizadas em ambos os casos são elaborados em uma dimensão que considera o lado oposto, estabelecendo uma equivalência que indica ao fiel, aos pastores e outras lideranças que há um ideal de errado e correto a ser seguido, seja ele moral ou político.
Há uma relação que pode ser entendida como um “filossemitismo antissemita” (GHERMAN, 2022) no caso judaico[4], mas em comparação ao caso afro-brasileiro apenas há a presença da antinegritude. Enquanto esse último é uma marca do surgimento e ascensão da igreja no “mercado religioso” brasileiro, o primeiro se apresenta como uma forma contemporânea de expansão religiosa, social e política ao relacionar-se com o segmento judaico.
No caso “maligno”, a associação com as religiões de matriz africana se dá em uma dimensão teológico-social, dialogando diretamente com a desqualificação da identidade negra no âmbito pessoal e das práticas sociais. No caso “benigno”, a relação com o judaísmo toma forma a partir de um projeto teológico-político, inserindo-os em uma concepção de “maioria moral” que é identificada pelos símbolos judaicos utilizados religiosa e politicamente. Por conseguinte, ao relacionar ambos com a realidade material do fiel, permite-se estabelecer uma conexão de sentido entre uma esfera macro (teórica, nos livros e na teologia) e uma micro (produção de sentido local, na vida material).
Retomando o aspecto político dos usos dos artefatos judaicos, ele gira em torno de uma concepção de cristão enquanto identidade política, como sinaliza Almeida (2021). A aproximação com o judaísmo e Israel entra em um projeto cristão de sociedade e ocupação do espaço público, de modo que passam a compor o discurso de religiosos ou figuras políticas que têm como base uma identidade política cristã.
É um elemento fundamental no processo de construção de uma “maioria moral” na política identificada a partir do cristianismo, caso que ocorre no pentecostalismo estadunidense ao longo da década de 1970 (ROCHA, 2020), mas toma forma contemporânea no Brasil pós-2010. Internacionalmente, o judaísmo passa a ser um elemento agregador entre esses atores políticos nesse aspecto moralizante da ação política.
Dessa forma, na medida em que a régua orienta os discursos dos pastores, ela também serve de base moral para as ações individuais dos fiéis em suas vidas. Contudo, vale mencionar que não necessariamente essas ações estão ancoradas diretamente ao discurso do pastor, mas que as atitudes da igreja aparecem com seus sentidos sistematizados para o fiel em diferentes aspectos da sua vida social.
A especificidade do caso situa-se no elemento desqualificador do sentido original do objeto apropriado. Na medida em que a colonização acontece, essa não é feita de modo isolado, mas ambos se encaixam em uma dimensão moral que estigmatiza essas identidades, seja qualificando ou desqualificando-as.
Considerações finais
É possível argumentar que o discurso religioso da Igreja Universal elabora símbolos de mazelas e prosperidades – associados às ideias de bem, mal, deus e demônio – associado à projeção de ideias que tem um recorte racial e de origem bem definidos. As alegorias e associações estabelecidas nesse processo remetem a um rompimento com uma identidade negra e judaica.
Esses elementos iluminam a importância de levar em consideração também a prática ao analisar o discurso religioso da IURD. Especificamente sobre esse caso, a elaboração teórica que é feita nos livros toma forma material nos cultos, de modo que o trabalho de campo se faz fundamental no processo de entendimento do fenômeno, complementando a análise das obras.
Dessa maneira, a partir da colonização de seus símbolos, as respectivas identidades negra e judaica também são. Seja rejeitando completamente e atingindo diretamente uma maioria negra de fiéis, seja em uma falsa aproximação substantiva, mas que rejeita o judaísmo em suas propriedades, a Igreja Universal faz uso de ambas para que seu discurso religioso produza sentidos próprios.
Como mencionado, um outro resultado importante da análise são as dimensões nas quais essas apropriações acontecem. As duas passam pelo processo, já no caso afro-brasileiro há um caráter social pela rejeição veemente de uma identidade negra, e, no caso judaico, a falsa aproximação ocorre em um aspecto político que dá uniformidade ao projeto de poder elencado por Macedo. Em um lado há a treva na qual devemos nos afastar e andar em direção à terra prometida que nos espera do outro.
Por fim, cabe mencionar que outros trabalhos podem contribuir no sentido dos resultados aqui obtidos. A IURD não atua sozinha nessas apropriações, sobretudo no caso contemporâneo dos usos do judaísmo no segmento evangélico. A aproximação ocorrida na última década é significativa o suficiente para ter esse processo analisado em outros segmentos do campo.
Referências
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ALMEIDA, Ronaldo. “A religião de Bolsonaro: populismo e neoconservadorismo” In: AVRITZER, Leonardo; KERCHE, Fábio; MARONA, Majorie (orgs.). Retrocesso democrático e degradação política. São Paulo: Autêntica, 2021.
ARENDT, Hannah. Nós, os refugiados. Covilhã: Lusosofia Press, 2013.
DIAS, Julio César Tavares; CAMPOS, Zuleica Dantas Pereira. O discurso de intolerância da Igreja Universal do Reino de Deus: uma análise do livro Orixás, Caboclos e Guias. Revista Fragmentos de Cultura – Revista Interdisciplinar de Ciências Humanas, v. 22, n. 4, 2012.
FERNANDES, Andreia Maia; ALMEIDA, Flávio Aparecido. A Igreja Universal e a intolerância religiosa: A satanização das religiões afro-brasileiras. REFLEXUS – Revista de Teologia e Ciência das Religiões, v. 14, n. 1, 2020.
FRESTON, Paul. Protestantismo e política no Brasil: da constituinte ao impeachment. 1993. 307f. Tese (doutorado) – Departamento de Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993.
GHERMAN, Michel; KLEIN, Misha. Entre ‘conversos’ e ‘desconversos’: o caso da influência da Nova Direita Brasileira sobre a comunidade judaica do Rio de Janeiro. Estudios Sociales del Estado, v. 5, n. 9, p. 101-123, 2019.
GHERMAN, Michel. O Judeu imaginário no Bolsonarismo: Um Caso de Conversão e Desconversão e seus oponentes. Religião e Poder, 2022.
GHERMAN, Michel. O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo. São Paulo: Fósforo, 2022.
MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?. São Paulo: Unipro Editora, 2019.
MACEDO, Edir. Plano de poder: Deus, os cristãos e a política. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
MEMMI, Albert. O retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
MEMMI, Albert. Negritude and Judeity. European Judaism: A Journal for the New Europe, vol. 3, no. 2, p. 4-12, 1969.
ROCHA, Daniel. Da “minoria silenciosa” à Maioria Moral: transformações nas relações entre religião e política no fundamentalismo norte-americano na década de 1970. Religião & Sociedade, v. 40, n. 1, p. 91–114, jan. 2020.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. 2ª ed. São Paulo: Selo Negro, 2005.
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ZANIRATI, Giovani. Intolerância religiosa: o discurso etnocêntrico da Igreja Universal contra as religiões de matriz africana. Revista Artes de Educar, v. 6, n. 3, 2020.
Notas
[1] Ver mais em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/11/negros-sao-maioria-nas-igrejas-evangelicas-e-desigualdade-ajuda-a-explicar.shtml>
[2] Ver mais em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/07/templo-de-salomao-e-inaugurado-em-sao-paulo.html>.
[3] Ver mais em: https://veja.abril.com.br/brasil/rabino-edir-quase-isso
[4] Como delimitado por Gherman (2022), compreende uma instrumentalização de símbolos, interesses, estéticas e outros elementos judaicos por parte de segmentos conservadores, que na prática configuram uma ferramenta discursiva de mobilização política de prática antissemita, ao passo que produz antissemitismo em suas ações.


