Revista Laboratório Temática 5 – Diálogos da Diáspora - Racismo e Antissemitismo

Holocausto, pandemia e Terra plana: um ensaio sobre negacionismos

Introdução

O termo negacionismo ganhou espaço no debate público brasileiro nos últimos anos, principalmente ao longo da pandemia de Covid-19, graças ao discurso de combate, aparentemente contraproducente, do presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores em relação às descobertas científicas da nova doença que assolava o mundo. Primeiramente, negando a gravidade da pandemia, depois, a eficácia das vacinas, e então, oferecendo remédios sem comprovação científica para o tratamento clínico de pacientes.

Como todo termo que cai no debate público, começou a ser utilizado muitas vezes de forma equivocada, às vezes como um sinônimo de mentira. Ou, para utilizar o termo que acabou virando moda a partir da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016, negacionismo como fake news.

A grande questão na discussão acerca do negacionismo não é o ato de mentir sistematicamente para obter algum resultado político específico. O negacionismo tem a ver com formação de uma visão de mundo muito específica, forjada no ressentimento e uma cruzada contra a modernidade. Assim, a discussão sobre negacionismo passa menos pela montagem de um discurso objetivo com fins políticos bem estabelecidos e mais com um conjunto de sentimentos e ressentimentos com o presente.

Di Cesare (2021) explica que o conspiracionismo[1] é um atalho para se encarar a complexidade da sociedade, uma tentativa de ler um mundo ilegível. Uma maneira de se suportar viver em um mundo mutável, inconstante e inapreensível. Não passa por uma confusão mental ou manipulação maliciosa dos fatos, mas uma maneira de encarar o mundo de maneira concreta.

Podemos dizer que o negacionismo é uma forma de subverter a própria noção de passagem de tempo. O desenrolar dos fatos acontece não por obra do acaso, ou de disputas nunca totalmente explicáveis, por fenômenos nunca totalmente compreensíveis. Tudo acontece porque existe um grupo, uma elite econômica ou política, um povo ou uma irmandade por trás. Assim, a história é escrita por um pequeno grupo de pessoas, uma sociedade secreta, inalcançável e fantasmagórica.

Porque o complô está em todos os lugares, mas se faz invisível. Quem comanda o complô de dominação mundial não tem um rosto, mas seus poderes são ilimitados. Por causa de seus poderes, ninguém nunca pode alcançá-lo. Assim, a falta de prova do conspiracionista não pode ser refutada, pois falta de prova é a prova que existe o complô: se não se pode provar, é porque o complô realmente domina tudo e é poderoso.

Os grupos que se unem em torno do complô costumam criar uma comunidade própria ao redor daquelas ideias. Uma comunidade de pessoas ressentidas com o presente, impotentes contra a complexidade do mundo. Dentro desta comunidade, são acolhidas e se tornam especiais. Porque passam a saber a verdade, que quase todas as outras pessoas no mundo não conhecem. Elas detêm o grande segredo, o elixir da sabedoria. De ressentidas, passam a provar em comunhão o sabor da superioridade intelectual sobre o resto da humanidade.

Normalmente o negacionismo, o fato de negar fatos históricos já totalmente provados e consolidados, está associado à ideia de conspiração. Só há a escrita de uma história pública de um fato inexistente porque há forças ocultas querendo construir aquela narrativa, normalmente com alguma intenção terrível e oculta. Se nega a história e a ciência justamente porque há alguém manipulando os dados. Os fatos consolidados, independentemente de provas, estão no espaço público porque alguém quis que estivesse, não porque são verídicos.

O negacionismo e o conspiracionismo não são novos, mas são problemas políticos muito consolidados dentro da cada vez maior complexidade tecnológica e social da modernidade. Diferentemente do que possa parecer em um primeiro momento, negacionismos sobre assuntos mais diversos costumam estar conectados em símbolos ou gramáticas. Os bodes expiatórios tidos como “grupos das sombras” aparecem repetidos em vários momentos. Isso porque o negacionismo não é apenas uma negação da realidade, mas “uma ferramenta poderosa de criação de novas epistemologias e subjetividades, sustentar grupos ideológicos ou religiosos, satisfazer interesses econômicos ou moldar políticas públicas.” (Gherman, Mizrahi, 2023)

Uma outra forma de explicar o negacionismo seria associar essa prática ao conceito de Fastinger de dissonância cognitiva coletiva, que explica o comportamento de membros de seitas religiosas quando suas profecias apocalípticas não se cumprem, e continuam acreditando em seus dogmas por estarem em um espaço de sociabilidade imune aos fatos, vivendo em sociedade paralela. O professor Castro Rocha (2023) utiliza este conceito para explicar justamente o bolsonarismo no Brasil, como uma grande seita, pois a manutenção daquele vínculo de grupo e da própria identidade forjada por aquele sujeito, produto de um investimento de afetos enorme ao longo do tempo, depende da manutenção desse sistema de crenças.

O pequeno exercício que fazemos a partir deste momento é encontrar conexões entre três negacionismos muito conhecidos. Primeiramente, o negacionismo do Holocausto, oriundo logo do período pós-Segundo Guerra, que é uma espécie de modelo para os negacionismos outros que vêm subsequentes. Depois, relacionamos este com o negacionismo científico da área de saúde pelo governo de extrema-direita brasileiro de Jair Bolsonaro, durante o período da pandemia de Covid-19. Por último, e talvez mais folclórico, o negacionismo do formato da Terra, os chamados terraplanistas. Nossa hipótese é que esses negacionismos estão interligados por uma gramática de negação da modernidade e de procura de bodes expiatórios em comum.

Negacionismo do Holocausto

O termo Holocausto é amplamente conhecido pelo debate público. Trata-se do assassinato em escala industrial de minorias étnicas pelo regime nazista alemão, sobretudo de população judaica. Entre campos de concentração, extermínio, marchas de morte e guetos, morreram aproximadamente seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Este conhecido número dá a dimensão da escala industrial de extermínio adotado pelo nazismo, que eles chamavam de “solução final” para a questão judaica.

Desde então, o nazismo e a figura de Hitler passaram a ser a representação do mal absoluto, inumano. Assim entraram na cultura pop, no cinema e nas artes. Os horrores do nazismo e da Segunda Guerra Mundial povoam o imaginário coletivo no Ocidente, despertando o horror e certo fascínio. Há certamente uma contradição nesse espaço que o lugar que o nazismo ocupa na cultura ocidental: ao mesmo tempo em que todos conhecem seus símbolos, ele é imaginado como um processo aistórico.

O debate público acerca do Holocausto, muitas vezes, gira em torno de narrativas heroicas, catárticas ou inquisitórias, e não em um processo histórico essencialmente moderno, como de fato é. Em um contexto de crescimento acelerado da extrema-direita na Europa e no Brasil, é necessário compreender os processos políticos que desencadearam tamanha brutalidade durante a Segunda Guerra.  Assim, mais importante que olhar para Auschwitz, é entender o fortalecimento do fascismo italiano e o nazismo ainda durante os anos de 1920 e início de 1930.

Um dos processos fundamentais para a ascensão do nazismo que deu condições políticas para o Holocausto é o discurso conspiracionista sobre judeus. A ideia de que judeus de todas as nacionalidades, culturais e ideologias diferentes tramavam juntos para dominar e prejudicar o povo alemão agindo nas sombras, no subterrâneo. Esse falseamento da realidade é explícito, e está presente na obra de Adolf Hitler de 1925 “Minha Luta”, quando argumenta que banqueiros judeus estariam unidos para atacar a nação alemã, junto com intelectuais judeus russos da Revolução de 1917, o que ele chamava de “judeu-bolchevismo”.

Esta narrativa criada pelo nacional-socialismo alemão não é apenas uma mentira. Ela faz parte de um processo de reescrita da história com o fim político específico de aniquilar uma parte considerável da população do continente. Sem conspiracionismo, não existiria Holocausto. O conspiracionismo legitima o genocídio e a busca pela homogeneização da população em critérios físicos, culturais e raciais previamente estabelecidos.

Usualmente, tendemos a pensar no negacionismo de extrema-direita como um fenômeno pós-1945. De fato, após a derrota da Alemanha Nazista, muitos dos oficiais, combatentes e políticos nazistas negaram o Holocausto para se livrar de penas de crime contra a humanidade. Também a partir dos anos 1980, algumas décadas depois da guerra, grupos neonazistas popularizaram o negacionismo do Holocausto, promovendo que ele não existiu, que o número de vítimas era fantasioso ou que judeus apenas fugiram. E que teriam utilizado a narrativa do Holocausto para impor certas políticas ao mundo.

É interessante notar, nesse sentido, que o nazismo é forjado na década de 1920 e sobrevive ao longo do tempo, em diferentes contextos, sempre baseado em teorias conspiracionistas e negacionistas. Quando analisamos discursos da extrema-direita atual, que flerta com teorias fascistas, este processo continua muito semelhante. Observamos líderes de extrema-direita no mundo inteiro que negam verdades já socialmente estabelecidas, trazendo debates teoricamente já superados, como mudanças climáticas ou a negação de períodos de escravidão ou de ditaduras.

Negacionismo da pandemia

No caso da pandemia de Covid-19, esse processo ficou particularmente claro.  Líderes de extrema-direita de todo o mundo negaram a gravidade ou mesmo a existência da pandemia. Trump e Bolsonaro são dois exemplos de estadistas que esnobaram das recomendações de cientistas mesmo quando a tragédia já se anunciava iminente. Trump foi obrigado a recuar parcialmente em seu negacionismo em dado momento, pela pressão da imprensa e opinião pública. Bolsonaro, por sua vez, insistiu desde sempre em esnobar da pandemia, não tomar as atitudes recomendadas pelos especialistas, chamar de “gripezinha” em rede nacional. Ou mesmo desdenhando das vítimas, imitando pessoas sufocando ou dizendo que “não era coveiro” para ficar contando os mortos.

O negacionismo da pandemia se aproxima do negacionismo do Holocausto não apenas porque são mentiras contadas pela extrema-direita. Eles fazem parte de um mesmo processo de formação de identidade baseado na identificação de inimigo externo e da luta para combatê-lo. Nos Estados Unidos e no Brasil, a Covid-19 foi chamado de “vírus chinês”. Surgiram várias teorias conspiratórias que a doença era um plano de comunistas e globalistas para acabar com os nacionalismos, destruir as economias livres e capitalistas, restringir a liberdade dos cidadãos e até instaurar um “governo mundial”.

Há nesses “neo-negacionismos” um processo muito parecido de construção narrativa de conspiração. Primeiramente, uma grande crise. No caso da Alemanha, o país em frangalhos econômicos por causa da Primeira Guerra Mundial, com a economia em colapso e uma grande descrença na classe política tradicional para resolver os problemas. Mais recentemente, já havia uma persistente crise econômica e de representação política nas democracias liberais, culminando na eleição de líderes cuja retórica de enfrentamento a inimigos imaginários e a criação de bodes expiatórios formam em si o programa de governo. Ou seja, lideranças ditas “outsiders” da política, com um discurso muito diferente da extrema-direita da década de 1930, mas com uma gramática de enfrentamento parecida, o que faz com que Traverso chame estes líderes de pós-fascistas.

E então veio a pandemia. Com ela, a identificação de culpados externos, que estariam conspirando e fabricando crises para dominar e destruir aquela sociedade. Na narrativa nazista, estes eram os judeus, e na extrema-direita atual, é a China, globalistas, comunistas e outros grupos – a depender da criatividade. Por último, o remédio, que seria personificado na figura do líder, que pode ser Hitler, Trump ou Bolsonaro.

Não estamos comparando aqui a brutalidade do nazismo alemão com os líderes da extrema-direita atuais. O Holocausto como “solução final” foi definido ao longo da Segunda Guerra, e não estava claro desde o início o que aconteceria. Nosso papel aqui é entender como há similaridades no processo de formação discursivo de extrema-direita, e como este depende sempre de conspiração, inimigos externos e perigos iminentes para a sobrevivência. Além, é claro, de um salvador que vai lutar contra “tudo isso que está aí” para uma parcela específica da população.

Esta figura heroica antissistema cabe muito bem nas características da pandemia do Covid-19. A pandemia tem uma característica de infecção muito rápida na população em parcelas grandes da população, e uma maior naquela parte da população mais frágil. Os casos graves e as mortes acontecem mais naqueles que possuem comorbidade, pessoas com doenças pré-existentes, idosos e obesos.

Se, durante o período nazista, pessoas com doenças graves e deficiências eram segregadas, o discurso da extrema-direita contemporânea durante a pandemia era de que apenas pessoas com comorbidades ou idosas estariam morrendo, como se isso fosse um mal menor. Assim, aqueles que se sentem mais preparados, os fortes, que se aproximam da figura máscula do líder, os que possuíam histórico de atleta, estariam imunes ao vírus. Porque a doença, afinal, estava destinada a matar os fracos.

Por isso, a vacinação é um problema. Remédios sem eficácia comprovada salvariam a vidas daqueles que pegassem a doença e confiassem na liderança. A vacina, contudo, é um produto de um trabalho científico, da pesquisa, o que normalmente não está na gramática da extrema-direita. Mais do que isso: a vacinação ajudaria a salvar todos, inclusive aqueles que não precisariam ser salvos. A lógica da vacinação é de garantir uma proteção social contra o vírus pela população inteira, garantido a cidadania, poupando sacrifícios e dando prioridade àqueles mais vulneráveis.

Todas as medidas sanitárias propostas para diminuir a velocidade do contágio são interpretadas pela extrema-direita como ataques diretos ao direito individual, à liberdade e até mesmo à cultura ocidental. Muitos desses discursos comparam essas medidas de proteção sanitária com as medidas tomadas pelos nazistas contra judeus na Segunda Guerra. Não é trivial.

Como falamos, o nazismo está impregnado no imaginário das pessoas como uma espécie de “mal absoluto”. O discurso de negar ou justificar os horrores do Holocausto encontra barreiras sociais fortes, inclusive legais. Entretanto, ao mesmo tempo, não se tem muita clareza para a maior parte das pessoas do processo histórico, ideológico e de ressentimento forjado pelo nazifascismo europeu a partir já do final dos anos 1920. Por isso, discursos de dissimulação de referências nazistas são perigosos e poderosos, podendo criar outros tipos de negacionismo.

Uma estratégia de negacionismo atual é utilizar essas referências de nazismo para qualquer coisa. Ao dizer que usar máscaras para prevenir a pandemia é igual a obrigatoriedade de identificação da estrela amarela que identificava judeus durante a Alemanha de Hitler é, ao mesmo tempo, atacar o uso de máscaras e relativizar o nazismo. É a mesma lógica de dizer que não-vacinados irão para guetos ou campos de concentração no futuro. Não é um negacionismo que negue o fato histórico em si, mas a distorção desses fatos a ponto de perderem sua força argumentativa e também para elaborar uma agenda própria, com outras denúncias negacionistas. Não são poucas as referências de personalidades e políticos de extrema direita comparando medidas restritivas com o Holocausto.

Esta é a mesma lógica atrás da tática chamada de “apito de cachorro” de propaganda. Esses grupos utilizam simbologias neonazistas discretas e subjetivas, que são entendidas apenas por aqueles que entendem o significado, fortalecendo a coesão interna dessa rede neonazista ou causando revolta e denúncia em grupos de esquerda que conhecem essa simbologia. No bolsonarismo, pode se beber um copo de leite em uma live ou fazer gestos supremacistas com a mão, fingindo estar arrumando o paletó. Essas denúncias soam para leigos como alarde desnecessário ou histeria, motivos de piada. Mais uma vez, a dissimulação ajuda a fomentar o negacionismo pelo excesso. Afinal, se tudo é nazismo, nada é nazismo. Chamar medidas restritivas para conter a pandemia de nazismo e, ao mesmo tempo, fazer piadas com denúncias de simbolismos efetivamente nazistas são dois lados de um mesmo processo de dissimulação negacionista de extrema-direita, muito difícil de ser combatido.

O negacionismo pode se manifestar em todas as faixas do espectro político. Entretanto, no caso da extrema-direita, é o pilar principal de sustentação política. Não há discurso de extrema-direita que não seja construído em cima de pilares de negacionismo. É ele que define subjetividades desses grupos e agendas políticas, com consequências reais. Discursos supremacistas e neonazistas precisam sempre de um discurso alarmista, de inimigos óbvios que precisam ser superados o mais breve possível para um futuro brilhante daqueles que são mais puros, de uma raça superior, ou mais fortes, morais e “cidadãos de bem”. Por isso, o negacionismo bolsonarista frente à pandemia não é casual. Ele opera em uma lógica tradicional conspirativa de extrema-direita que se fortalece a partir dos anos 1920, e vai adquirindo novas narrativas, roupagens, inimigos e violências, sempre desafiando o frágil tecido social de nações ocidentais.

A Terra é plana

A própria palavra terraplanista virou uma espécie de xingamento para alguém cujas ideias parecem estapafúrdias demais. Embora, em um primeiro momento, o terraplanismo seja uma teoria da conspiração bastante tosca, ela tem ganhado adeptos ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Basicamente, terraplanistas são aquelas pessoas que acreditam hoje, em pleno século XXI, que o planeta Terra é plano, em forma de disco, e é estático. Lua e sol rodariam como um holofote, dentro de um grande domo, dentre outras ideias exóticas.

A questão é que, no Brasil, o terraplanismo não ficou restrito ao submundo da internet. Olavo de Carvalho, grande guru intelectual do bolsonarismo, também grande negacionista da pandemia, das vacinas e do Holocausto, também chegou a afirmar que “não existe nenhuma comprovação do exato formato da Terra”.

Embora pareça anedótico em um primeiro momento, a estrutura do negacionismo científico do terraplanismo se releva muito próximo a outros negacionismos perigosos que vimos até aqui.  O documentário “A Terra é Plana” (2018), do diretor Daniel J. Clark, revela que há a formação de uma comunidade baseada em um profundo ressentimento de não entender a ciência moderna e toda sua complexidade. Há a ideia de que tudo o que o mainstream científico mostra, bem como as universidades, estão em um grande complô, de forças obscuras, que não querem que as pessoas saibam a verdade.

Assim, em matéria de ciência, os terraplanistas não são os guardiões da verdade e precisam permanecer unidos para zelar por ela. Uma das mais importantes ideias do filme é que a própria comunidade terraplanista é unida de tal forma que abandonar as crenças seria abandonar a própria comunidade e, portanto, uma parte muito importante da sua própria identidade.

De excluídos da sociedade a pessoas iluminadas que sabem um segredo que ninguém mais sabe. De pessoas que não compreendem a ciência moderna para aqueles que são os únicos detentores do segredo sobre o planeta. Ou mais que isso: eles utilizam diversos experimentos “científicos” para mostrar que a Terra é plana. Todos baseados na empiria, em demonstrações absolutamente palpáveis e concretas, que não levam em conta a escala quase abstrata da curvatura da Terra, pelo seu tamanho em relação ao que o olho humano consegue alcançar.

Aqui, um breve parênteses. Importante autor que trabalha com o fascismo histórico e com as relações de conspiração no fascismo histórico, Moishe Postone argumenta que o fascismo é uma “revolta contra o abstrato”, que é inerente à modernidade. A ideia central de seu argumento é que as relações de poder, de produção e circulação de bens, e mesmo de gênero os raciais, tornaram-se valores cada vez mais abstratos e inteligíveis na modernidade. E assim, o fascismo um conjunto de ressentimentos, não com a modernidade, mas com a abstração causada por ela. Não com o capital produtivo que cria novas tecnologias, mas com o sistema financeiro que ganharia dinheiro “às custas do povo”.  Com os terraplanistas, não com uma ciência etérea, complicada, ininteligível, mas a saída para uma palatável, que consiga ser feita em casa, que os resultados sejam facilmente interpretáveis.

Utilizando essa mesma lógica para o movimento terraplanista, também podemos entender como um movimento de negação a modernidade. Baseia-se em uma interpretação religiosa bíblica que explicaria o formato do planeta e o domo que cobre, como descrito em Gênesis, o livro bíblico. Entretanto, não é necessariamente uma comunidade extremista religiosa. A religião entra nessa mistura para dar um propósito da criação divina de vida, com a centralidade da natureza no homem. Mais uma vez, dar concretude a uma existência cada vez mais abstrata.

Nesse sentido, a discussão sobre o formato da Terra se encaixa nessa negação da modernidade por dois caminhos. O primeiro é o próprio histórico da discussão sobre o formato da Terra. Afinal, há passagens na bíblia cristã em que está escrito que a Terra é plana, e assim era também durante a Idade Média, onde o geocentrismo era a única explicação aceitável. O caminho da explicação concreta e inteligível reverbera em um saudosismo de um mundo mais simples, onde as coisas eram imaginadas como concretas, apreensíveis, que dava para entender.

O outro caminho para a negação da realidade é a própria estrutura heliocêntrica. Afinal, são pessoas ressentidas com a complexidade das relações da modernidade, que se sentem em um vazio nas sociedades modernas. O que a astronomia sabe sobre o que há fora do planeta Terra não ajuda nessa sensação: sempre tamanhos, distâncias e números que são absolutamente impossíveis de se processar pela humanidade. A Terra plana nega tudo isso: coloca o planeta Terra novamente no centro do universo, e a humanidade como comandante deste centro. A sensação de vazio e impotência perante a ciência, a sociedade e o universo se vão.

Entretanto, se a Terra seja redonda e gire ao redor do sol fossem mentiras, quem é que conta e reproduz esta mentira? Assim, entra o conspiracionismo. Um dos líderes da comunidade terraplanista norte-americana, que aparece no documentário “A Terra é Plana”, Mark Sargent diz que organizações como a NASA, a família Rothschild, a maçonaria. Olavo de Carvalho, por sua vez, chegou a afirmar que Albert Einstein achou que era preferível modificar a física inteira só para não admitir que haveria provas para o heliocentrismo.

A família Rothschild e Einstein talvez tenham muito pouco em comum, tirando o fato de serem lidos socialmente como judeus. Aqui, voltamos à questão do complô do início deste ensaio: são judeus que são vistos como aqueles que balançam as certezas, como criadores do mundo moderno. A maçonaria e instituições de Estado também podem estar associadas a este grande poder, que atomiza pessoas, e quem, em termos weberianos, são responsáveis pelo desencantamento do mundo. São os responsáveis pela morte da concretude, como diria Moishe Postone, para a dominação planetária.

A comunidade terraplanista se sente iluminada. Ela é superior por saber a verdade que ninguém mais sabe, se sentem poderosos porque seriam vozes que os poderosos querem calar. Ela também possui um vocabulário próprio e inimigos eleitos próprios. E isto vira parte fundamental da própria formação de identidade dessas pessoas, como se fosse uma religião ou etnia. O embate aos inimigos, da NASA à maçonaria, é o forjador dessa identidade. A ideia de que os conspiradores querem calar este grupo, que existem aquelas pessoas poderosas que não querem que eles existam, é o que mantém essa comunidade unida.

O resgate da crença de que a Terra é plana, na realidade, uma tentativa (desesperada) de re-encantar o mundo, em termos weberianos. Tornar o mundo novamente fácil, explicável, para se tornar novamente centro dele. E também tornar a humanidade o centro de tudo para, enfim, desmascarar aqueles que anuviaram toda a percepção da vida.

Conclusão

A percepção da existência de uma conspiração judaica é central para a formação da ideologia nazista. Depois da Guerra, o neonazismo se manteve vivo e atuante mantendo a mesma gramática, agora através de um negacionismo do Holocausto. Este negacionismo do Holocausto, que também é forjado na ideia de conspiração judaica, serve como gramática para outros negacionismos que surgiriam desde então.

Aqui trouxemos dois exemplos muito emblemáticos e diferentes, que são o negacionismo científico durante a pandemia e o negacionismo astronômico em relação ao formato da Terra. Embora com enfoques e públicos muito diferentes, podemos perceber que estes negacionismos possuem uma mesma estrutura de conspiração. Pequenos grupos específicos e secretos estariam por de trás do plano de dominação mundial contando grandes mentiras: o Holocausto nunca existiu, vacinas não funcionam ou causam autismo, a Terra é Plana.

Todos estes discursos buscam colocar a culpa em um pequeno número de pessoas sobre o problema de não se entender e não se sentir pertencentes ao mundo moderno. O conspiracionismo cria comunidades e senso de pertencimento, cria laços sociais. Também ajuda o conspiracionista a enxergar o mundo moderno de maneira simples, de modo que ele consiga entender e, ao mesmo tempo, a sensação de ser especial porque ele possui a “chave da verdade”, que poucas pessoas no mundo têm acesso.

Assim, o conspiracionismo é um problema político real. Ele interdita a possibilidade de se pensar a política como um espaço público de dissenso, mas mais do que isso: transforma um certo grupo de pessoas, seja um povo, uma etnia ou uma corrente política em inimigo. E, diferente do adversário, o inimigo precisa ser exterminado, finalizado, neutralizado. Não há diálogo possível com quem traz e semeia a mentira para dominar o mundo. Não se negocia com um grupo cuja própria existência seja, em si, uma ameaça pessoal.

Referências

A TERRA É PLANA. Direção: Daniel J. Clark. Estados Unidos. Netflix, 2018.

‌DI CESARE, Donatella. O Complô no Poder. 1. ed. Brasil: Editora Ayiné, 2022. 172 p

Entrevista: “Negação do Holocausto é raiz do negacionismo pandêmico”, diz filósofa perseguida por neonazistas. Disponível em: <https://www.intercept.com.br/2022/03/07/entrevista-negacao-do-Holocausto-e-raiz-do-negacionismo-pandemico/&gt;. Acesso em: 19 jun. 2023.

FERREIRA, Wilson. Teoria da Terra Plana Renasce Mais uma Vez em Tempos Difíceis. Cinegnose. Revista Fórum, [S.l.], 22 mar. 2017. Disponível em: https://revistaforum.com.br/blogs/cinegnose/2017/3/22/teoria-da-terra-plana-renasce-mais-uma-vez-em-tempos-dificeis-1416.html. Acesso em: 19 jun. 2023.

SCHUSTER, Karl; GHERMAN, Michel, VÁZQUEZ, Óscar Ferreiro. “(Para) traduzir a negação, as teorias da conspiração e o antissemitismo.” In Negacionismo: a construção social do fascismo no tempo presente, pp. 19-32. Edupe, 2022

UOL. O que a ciência diz sobre a Terra ser o centro do universo?. UOL Tilt, [S.l.], 9 jan. 2019. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/ultimas-noticias/redacao/2019/01/09/o-que-a-ciencia-diz-sobre-a-terra-ser-o-centro-do-universo.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 19 jun. 2023.

MARTINS, A. F. P. (2020). Terraplanismo, Ludwik Fleck e o mito de Prometeu. Caderno brasileiro de ensino de Física37(3), 1193–1216.

POSTONE, Moishe. (1980). Anti-Semitism and National Socialism: Notes on the German Reaction to “Holocaust”. New German Critique 19, 97-115.

Notas

[1] Di Cesare usa a palavra “complotismo”. A autora faz essa diferenciação porque conspirações para tomar o poder de fato existem. À criação de histórias fantasiosas de conspiração para a dominação mundial, ela chama de complô. Aqui, vamos continuar adotando o nome conspiracionismo, já consolidado na literatura.

Sobre o autor

Gabriel Mizrahi

Gabriel Mizrahi - Doutorando em Relações Internacionais (PUC-Rio). Mestre em História Social (UFRJ). Pesquisador do NIEJ/UFRJ e Colaborador do Instituto Brasil-Israel. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Diálogos da Diáspora - Racismo e Antissemitismo, do Labô.