
No tempo da minha avó se fechavam os olhos para as puladas de cerca do marido, para as violências domésticas e outras imoralidades em nome da preservação de uma instituição considerada sagrada para a reprodução e para manutenção da sociedade, o casamento. Olho roxo, pernas presas a correntes, insultos e humilhações eram heroicamente suportados para que o laço contraído na Igreja e abençoado pelo Estado nunca se desfizesse antes da descida ao túmulo. “O curioso é que os casais brigavam muito e ninguém se separava. Sei, hoje, que há, em qualquer casamento, uma vítima obrigatória. E a continuidade matrimonial exige que a vítima aceite seu destino e sua função” (RODRIGUES, 1993, n.p.). Quando o cunhado rodrigueano atacava a cunhada ou a sobrinha, ainda que pego em flagrante delito, a consciência cívica da esposa, refreando-lhe os brios, amansava qualquer ímpeto diligente por dignidade. Contrariando o protesto da aluna de psicologia da PUC, a esposa repetia o mantra consagrado por sua mãe e sogra: “o casamento é sagrado, basta não ver”. Segundo alguns, a hipermetropia moral daquela esposa deve servir de guia ético para os assuntos da República. Não somente da esposa, claro. Direitos iguais. A adúltera convocava à mesma resignação o corno cívico.
Ainda que a sacralidade do matrimônio venha de pretéritas eras, sua significação social moderna finca raízes no século XVII, quando da divisão da vida entre o que é público e o que é privado. Até então, a vida era “vivida em público” (ARIÈS, 2014). A vida privada surge, assim, opondo-se à vida pública pela via do casamento: “A vida privada é, portanto, a vida de família, não individual, mas de convívio, e fundada na confiança mútua” (ARIÈS e DUBY, 2015). A casa familiar é o nascedouro da intimidade onde não é permitido que se saiba o que dentro se passa, sendo, ao mesmo tempo, e em razão disso, o berço do indivíduo moderno. Marx (2010) disse que a família, na sociedade burguesa antiga, em razão de seu caráter político, era um dos elementos constitutivos da vida estatal. Possível que tão extensa raiz é que tenha tornado o casamento objeto da proteção social. Levou muito tempo até que os humanos pudessem abrir mão dele sem maiores preocupações sociais. O divórcio é o reconhecimento da diminuição da importância social do casamento. Aquilo que os olhos não viam, mas que o coração sentia encontrou seu instituto romântico mais feliz na mesa de juiz. Com isso, o casamento ampliou o escopo do indivíduo, tornando-o assunto privado, como costuma acontecer com os temas que deixam de ser socialmente fundacionais. O casamento, na medida em que não tem papel na manutenção tampouco na reprodução da sociedade, passa a ser um problema psicológico ou moral. Adam Phillips (1997), por exemplo, discute o casamento indagando o porquê da monogamia: “Para que se formam os casais se não for por prazer?”. Algo semelhante parece ocorrer com a democracia liberal. Seus últimos defensores o fazem em nome de algo maior, coletivo, social.
Carlos Andreazza, por exemplo, ao analisar um dos tantos julgamentos do ex-juiz Sérgio Moro, disse, referindo-se às acusações de parcialidade de que são alvos os seus julgadores, como se consentâneos aos votos motivos ocultos imperassem: “esse ministro que votou contra o Moro foi indicado pelo Lula – foi, e daí? Todo mundo foi indicado por alguém, e quem indica tem seus interesses. Imputar ou inferir que os interesses de quem indica condicionarão a atuação do indicado é uma descrença absoluta na República”. Devo dizer que, na falta de outras bases pelas quais confiar nas instituições da República, ratifico o estatuto do corno republicano.
Que a sustentação de qualquer instituição, a República, a democracia ou o casamento, em última instância dependa da crença em seu valor a despeito de suas falhas, difícil discordar. A propósito, o sociólogo Manuel Castells (2017), ao analisar a crise da democracia liberal, disse que “a força e a estabilidade das instituições dependem de sua vigência na mente das pessoas”. Seria um sintoma de fim de festa a política escorregar para as esferas da vida privada, ser assunto psicológico ou moral? Se foi assim com a instituição casamento, por que não seria com a instituição democracia? Ao que parece, as instituições da democracia liberal dependem cada vez mais dos atos de coragem moral e de resiliência psicológica. Na fábula “Os três porquinhos”, a casa que é mais facilmente derrubada pelo sopro do lobo é a casa de palha. O ensinamento do conto, dizem, é: preguiça e pressa não constroem casas resistentes. Aqui, a metáfora da casa de palha sugere que a democracia, quando reduzida ao vínculo subjetivo, não tem estofo para suportar “o sentimento majoritário de que os atores do sistema político não nos representam” (CASTELLS, 2017, n.p.). A crise de legitimidade da democracia liberal que vivemos pode ser escrita como ruptura entre representante e representado ou como rompimento do “vínculo subjetivo entre o que os cidadãos pensam e querem e as ações daqueles a quem elegemos e pagamos” (Ibid.). Não que a democracia liberal tivesse navegado em águas calmas ao longo de todo século XX. Ela sempre foi desafiada por formas de poder alternativos; à diferença do que ocorre hoje, os desafiantes vinham de fora do campo democrático: regimes de força, autoritários e ditatoriais. A novidade atual é o desafio vir de dentro de seu campo.
Yascha Mounk (2018) disse terem surgidos dois desafiantes internos à democracia liberal: a democracia iliberal e a antidemocracia liberal. Na democracia iliberal, o elemento liberal é ocultado, silenciado ou diminuído em nome do exercício do poder pelo famigerado povo, através de seu heterônimo, o populista. Para alguns, o mito Bolsonaro; para outros, o papai Lula. Mas também Trump, Orban e os movimentos da imorrível extrema direita europeia. Na antidemocracia liberal, o elemento liberal é mantido, porém o exercício do poder cabe ao burocrata não eleito, sobre cuja cabeça a peruca coroada e iluminada dita a lei ou a resolução que dispensa a discussão dissonante e demorada que vem das camadas intermediárias que sempre caracterizaram a democracia liberal. Os altos funcionários dos organismos supranacionais, como a UE, ou juízes das altas cortes se encaixam nessa forma de poder alternativo. Ambos se dizem democráticos. Ambos dispensam as camadas intermediárias, o vozerio conflituoso decorrente das diversas posições em jogo na trama social e política.
Em consonância aos estudos de Castells e Mounk, Roger Eatwell e Matthew Goodwin (2020) mostram o surgimento do movimento nacional-populista, aqueles que “priorizam a cultura e os interesses da nação e prometem dar voz a pessoas que se sentem negligenciadas e mesmo desprezadas por elites distantes e amiúde corruptas”, mas salienta que sua natureza é mais fluida que a vã tentativa de os encaixar sob “o estereótipo do velho branco e raivoso” (Ibid.). Argumentam que os apoiadores dos discursos nacional-populistas “não são fascistas que querem destruir nossas instituições políticas centrais; uma pequena minoria quer, mas a maioria possui preocupações compreensíveis com o fato de essas instituições não representarem a sociedade como um todo” (Ibid.). A razão, em resumo, é a desconfiança quanto a capacidade da democracia liberal sustentar o pacto sociopolítico. Assim como o casamento deixou a esfera da subsistência social, abrigando-se na esfera dos assuntos privados, as instituições da democracia liberal tendem a ser assunto de foro íntimo, de crença. Doravante, a questão passa a ser a qualidade subjetiva da crença. Esvaziada de seu elemento fundamental – a confiança – a crença se reduz ao ritual, como na semelhança semântica entre o obsessivo e a ritualística totêmica sobre a qual escreveu Freud (1913).
A confiança é a base da crença. A confiança é a base da “crença em”, como diz Winnicott (1963). A “crença em” permite que se identifique um objeto externo ao self capaz de representar a bondade constituída internamente. Se diz que a confiança é uma conquista maturacional na medida em que nos primórdios da vida as adaptações ambientais permitem ao bebê ter a ilusão de que pode criar os objetos de que necessita, e de que nesse ato criativo inaugural, ele pode criar a si-mesmo, ao outro e ao mundo, como condições prévias ao processo seguinte que é a desilusão, a aceitação gradual de que o mundo é composto por elementos “não-self“. O psicanalista nos explica que no “decorrer do tempo, surge um estado no qual o bebê sente confiança em que o objeto pode ser encontrado, e isto significa que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência do objeto” (WINNICOTT, 1990, p. 83-84). É o estabelecimento da confiança de que se pode encontrar no mundo aquilo de que se necessita ao longo da vida. É o estabelecimento da crença em um mundo essencialmente bom. No entanto, a bem-sucedida integração dos elementos “não-self” gera confiança, não tolice. Confiar num mundo bom não desconsidera os infortúnios como parte da vida. São as incapacidades ambientais (dar sustentação a criatividade inaugural do bebê) que dificultam ou impedem a instalação da confiança de que se pode encontrar no mundo os objetos de que se necessita. Como resultado, ora o mundo é ingenuamente aceito, ora é paranoicamente repelido. Paranoia e ingenuidade, é preciso frisar, enquanto virtualidades maturacionais, faces de uma mesma moeda, não decorrem da capacidade de confiar; antes o contrário: é o insucesso na instalação da “crença em” que geram essas aptidões. Em ambas as situações, a realidade – de si, do outro e do mundo – tem seu acesso dificultado. Convém perguntar, então, se a crise da democracia liberal, a partir da desconfiança relativa as suas instituições, não seria, no fundo, mais que uma crise de representatividade e, sim, uma crise de amadurecimento. Se a confiança ou a “crença em” não foram instaladas, crer é comportamento ritual, repetição – como carro que tenta “pegar no tranco”. As falhas da democracia liberal, a ritualística vazia de suas instituições e os trambiques dos representantes escancaram o fosso, não entre representantes e representados, mas, figurativamente, entre bebê e ambiente.
O apoio atualmente dado aos discursos nacional-populistas, a adesão feita ao populista, mito ou papai, e o gozo ante as decisões das instâncias não eleitas (as que me interessam, claro), mais não fazem que emular as situações primevas do surgimento da pessoa, situações em que, mesmo sem saber, o bebê depende absolutamente do ambiente para dar seus primeiros passos humanos: criar o mundo, os objetos, a si-mesmo e confiar na benevolência do mundo. Mas, como a cópia se mostra malfeita, ora vige a ingenuidade ora a paranoia. A crença na República feita somente com a resignação do corno cívico, como pede o jornalista, sem base maturacional, sem confiança, faz lembrar a advertência freudiana de “que a invocação de espíritos nada consegue, se não existe a crença neles, e que também a força mágica da oração fracassa, se por trás dela não se acha a devoção” (FREUD, 1913, p. 89).
Referências
ARIÉS, P. A História Social da Criança e da Família. São Paulo: LTC, 1981.
ARIÉS, P.; DUBY, G. História da Vida Privada 2: Da Europa Feudal a Renascença. São Paulo: Cia de Bolso, 2015.
CASTELLS, M. Ruptura: A Crise da Democracia Liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
EATWELL, R.; GOODWIN, M. Nacional-populismo: A revolta contra a democracia liberal. Rio de Janeiro: Record, 2020.
FREUD, S. Totem e Tabu (1913). in Obras Completas Volume 11. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2012.
MARX, K. Sobre a Questão Judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
MOUNK, Y. O Povo contra a Democracia: Porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
PHILLIPS, Adam. Monogamia. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
RODRIGUES, N. O Óbvio Ululante: Primeiras Confissões – Crônicas. Seleção Ruy Castro. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
______________. O Reacionário: Memórias e Confissões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
D. W. WINNICOTT. Moral e Educação, in Processos de Amadurecimento e Ambiente Facilitador: Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, São Paulo, UBU, 2022.
_________________. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
Audiovisual
ANDREAZZA, C. Sem Espuma: Orçamento Secreto no Ministério da Saúde. YouTube, 04 abril 2024. Disponível em: https://encr.pw/Dmp0S Acesso em 23 abril 2024.
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