Lamparina – Centro Aletti
A história do mundo vai se desenrolando entre avanços e retrocessos. As redes sociais e os novos meios de comunicação deram celeridade às informações que nos chegam. Fatos relevantes acerca de conquistas na área social, avanços na ciência, luta contra discriminação e preconceito, novas formas de tratamento para doenças antes incuráveis, são apenas alguns exemplos do progresso de uma humanidade que está em movimento.
Contudo, notícias de guerras, destruições, violência no sentido amplo, são outros exemplos que poderíamos elencar, de mazelas que enfrenta a sociedade hodierna e que diariamente nos invadem. Diante de tal cenário catastrófico a palavra esperança pode dizer muito ou nada. Ao mesmo tempo em que nos perguntamos: é preciso ou possível ainda ter esperança?
Chegamos ao final de mais um ano civil e quase como que por osmose assimilamos a ideia de que o ano que vem será melhor. O ano novo renova os planos e projetos, faz o coração pulsar novamente, renovando o desejo de seguir em frente, com mais coragem. Nesse sentido, o ritual de fechamento de um ano é uma ocasião propícia para rever a trajetória pessoal e comunitária. Nas palavras de Han, os rituais estabilizam a vida e a tornam habitável (cf. HAN, 2022, p. 12).
Ao mesmo tempo há quem, diante desse cenário tão otimista, se sinta constrangido e até mesmo sufocado. Há quem não renove suas promessas, nem faça votos, já que os anteriores não foram cumpridos. Como projeção de futuro entendem que a vida seguirá no marasmo de sempre, na observação de Jó, personagem bíblico, “assim tive por herança meses de ilusão, e couberam-me noites de pesar” (Jó 7,3). Esses lamentos constituem também um ritual que os faz se sentir em casa quando o mundo cobra alegria, entusiasmo e simpatia.
Quando falamos de esperança poderíamos defini-la como movimento, aquilo que nos faz ansiar percorrer o caminho. Nessa dinâmica a esperança não é estática, passiva, mas ativa. É um princípio coerente e unificador, conferindo coragem de existir, aceitar e orientar a vida. Na dimensão humana a esperança vai ao encontro dos desejos e projetos racionais, animando o viver, o conviver e o agir da pessoa e da sociedade.
Segundo Tolentino: “O barco precisa de quem, enamorado pela viagem, seja capaz de ajudá-lo a deixar a quietude ilusória do porto. A página precisa de quem arrisque contar uma história. Nas coisas mais pequenas como nas grandes encontramos o mesmo chamamento à esperança” (MENDONÇA, 2016, p. 51).
Esperança é ir aprendendo como enfrentar a vida e dar sentido aos inevitáveis fracassos, dentro do processo de tentativas e erros. Aprender como se integrar no processo, ajuda a viver, a superar as crises e a enfrentar os desafios. Francisco assevera: “Todos esperam. No coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e expectativa do bem, apesar de não se saber o que trará consigo o amanhã. Essa imprevisibilidade do futuro, porém, faz surgir sentimentos por vezes contrapostos: desde confiança até o medo, da serenidade ao desânimo, da certeza à dúvida” (Spes non confundit, n.1).
Esses sentimentos descritos por Francisco, abundam no livro conhecido como Sagrada Escritura. Nele a esperança parece ser o fio condutor, do entrelaçamento das histórias ali contidas. Lançaremos um olhar panorâmico sobre os desdobramentos dessa percepção na mensagem contida em seus livros.
Esperança na Primeira Aliança
A história da salvação, apresentada na Bíblia, se desenrola como uma história de esperança. O Deus da promessa educa o povo na esperança, por isso, podemos dizer que uma chave de leitura para a Bíblia é promessa-esperança. Promessa que vem da parte de Deus e suscita a esperança nos seus. O povo de Israel nasce da promessa feita aos patriarcas, e viver dessa promessa será a sua razão de ser e existir.
A conquista da terra, o desenvolvimento do país, o advento da monarquia, a deportação para o exílio, são situações e lugares que suscitam, amadurecem e purificam a esperança de Israel. O povo buscará guardar a fidelidade à promessa fundadora e à esperança divina que nela se enraíza.
Quando a esperança é esquecida ou ameaçada, os profetas intervêm. Os profetas falam no presente, recordando as promessas já realizadas e apontando para um futuro com Deus. Eles garantem o sentido divino da história da salvação e a atualidade da promessa. De modo que os salmos fazem a junção do princípio de realidade e da confiança. A promessa se enraíza na esperança: haja o que houver, Israel deve esperar sempre no Senhor.
Travessia do Mar Vermelho – Centro Aletti – Santuário Nacional de Aparecida – Fachada Norte
De acordo com Tolentino: “Sem esperança só notamos a pedra, o caráter tosco, o obstáculo fatigante e irresolúvel. É a esperança que entreabre, que faz ver para lá das duras condições a riqueza das possibilidades ainda escondidas” (MENDONÇA, 2016, p. 50). Essa consciência faz o povo resistir, não obstante as inúmeras dificuldades que lhe advém: a caminhada do deserto, a conquista da terra, o exílio da Babilônia, para citar apenas algumas. A esperança mantém o povo da Primeira Aliança firme na promessa do seu Deus.
Esperança na Segunda Aliança
Para o Cristianismo a promessa feita aos primeiros Pais se cumpre em Jesus de Nazaré. Sendo o Cristo, Ele é a esperança encarnada, assumindo um nome e um rosto. No alto da cruz se revela a plenitude de um Deus amor, cuja morte é um ato total de esperança. Ele é a certeza e a esperança de ressurreição, pois confere a união definitiva com Deus. O objeto primordial da esperança cristã é a glória de Deus que é comunicada, fazendo dos crentes seus filhos mediante o Filho, por meio do batismo. Em Cristo a esperança se torna teologal, ela parte de Deus e o tem como origem, motivo e objeto.
Josaphat enfatiza que:
“a esperança é uma virtude teologal, base e dinamismo da existência cristã, pessoal e comunitária, enquanto esta é uma marcha e mesmo uma subida. Subir, em termos éticos ou espirituais, significa a vitória da presença e da promessa do Amor, em nós e pela nossa transformação nele e por ele” (JOSAPHAT, 1999, p. 45).
Assim a esperança é realista, não é uma alienação ou um placebo. Pensando nos problemas decorrentes da existência humana, Francisco lembra que a esperança não exclui as adversidades: “São Paulo é muito realista. Sabe que a vida é feita de alegrias e sofrimentos, que o amor é posto à prova quando aumentam as dificuldades e que a esperança parece desmoronar-se diante do sofrimento” (Spes non confundit, n. 4). A esperança, portanto, não suprime o sofrimento ou as dificuldades, mas constitui sim, um ato de confiança em meio a todas as adversidades da vida.
Nessa esteira é possível pensar em uma esperança para além da experiência de fé, da espiritualidade ou da mística?
Natividade – Centro Aletti
Esperança no progresso?
Ao longo da história da civilização a esperança foi alicerçada no progresso tecnológico e científico. Francis Bacon, de acordo com Bento XVI, apresenta um novo conceito de esperança, ela ganha uma nova forma, “agora se chama fé no progresso” (Spe Salvi, n. 17). Como Bacon, outros pensadores trouxeram à baila a reflexão de um mundo mais esperançoso, já que a Revolução Industrial, o Iluminismo, a Revolução Francesa, as novas tecnologias dariam ao homem libertação, “redenção” e esperança.
De acordo com Bento XVI: “o século XIX não perdeu a sua fé no progresso como nova forma de esperança humana e continuou a considerar a razão e a liberdade como estrelas-guia a seguir no caminho da esperança” (Spe Salvi, n. 20). Todavia, continuará Bento XVI:
“Todos nos tornamos testemunhas de como o progresso nas mãos erradas pode ser, e foi, realmente um progresso terrível no mal. Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem interior, então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo” (Spe Salvi, n. 22).
Não se trata aqui de um discurso contrário ao progresso e à evolução tecnológica, apenas e tão somente a constatação de que a esperança não brota dos sistemas econômicos e sociais sejam eles quais forem. Observamos o comportamento político e notamos como os interesses pessoais se sobrepõem aos coletivos, assim, esses sistemas não são geradores de esperança. A fé no progresso por si só não é capaz de alimentar e manter viva a esperança. Nesse sentido, rejeitar a razão, a mística, a espiritualidade e a ciência, constituiu um erro grave no pleno desenvolvimento do ser humano.
Esperança para quem tem pressa?
Altamente conectados, as redes trouxeram celeridade à nossa vida, a praticidade no trabalho e nos estudos, aproximando os que estão distantes. Porém, trouxeram no seu bojo a ansiedade e a incapacidade de lidar com as demoras, de modo que, a palavra paciência parece não encontrar mais lugar. É notável que há uma crise no amadurecimento das pessoas cada vez menos dispostas a se relacionar. Com pressa, não percebem que a esperança não está nas coisas que possuem ou não. Nem mesmo na agitação ou urgências do dia a dia.
A esperança requer paciência! A beleza do saber esperar, fazer pausas, contemplar e na contemplação redescobrir a beleza da vida que acontece e nutri a esperança. Ela também nos convida ao desapego, para Tolentino: “O viajante de costumes simples é aquele que tomou a decisão prévia de transportar consigo o essencial, deixando sempre na sua bagagem um espaço disponível” (MENDONÇA, 2016, p. 75).
É preciso esvaziar-se e deixar-se surpreender. A sociedade hodierna, na ótica de Han, vive numa “coação de autenticidade, cada um se produz, se perfaz” (cf. HAN, 2022, p. 31). Como aprendemos na arte sacra: o belo não é quando acrescentamos algo, mas sim quando não se pode tirar mais nada. O equívoco da sociedade reside no acúmulo e, portanto, urge redescobrir que a grandeza da nossa trajetória, não reside na saciedade, mas na falta, que nos coloca em movimento. Nas palavras de Adélia Prado, no poema intitulado tempo: “Não quero pão, nem queijo, quero a fome”.
Um jubileu de esperança?
No próximo ano se completará os 2025 anos do nascimento de Jesus, personagem histórico controverso, revolucionário para o seu tempo, o Cristo da fé para o Cristianismo. Para marcar tal acontecimento, o Papa Francisco convocou a Igreja Católica, para um Jubileu Ordinário, através da Bula Spes non Confundit (A esperança não decepciona). Este Jubileu terá início no dia 24 de dezembro de 2024 e terminará em 06 de janeiro de 2026, com o fechamento da porta santa da Basílica Papal de São Pedro.
Mas por que um Jubileu? De vinte cinco em vinte cinco anos a Igreja Católica é convidada a celebrar um jubileu ordinário para comemorar o nascimento do seu Senhor. Tendo iniciado com o Papa Bonifácio VIII, em 1300, os jubileus foram propostos para serem celebrados a cada cem anos, depois a cada cinquenta e finalmente a cada vinte e cinco anos. Inspirados no livro do Levítico, em que no ano jubilar os escravos eram libertados e a as dívidas perdoadas, eles são uma ocasião para recordar a bondade de Deus que rasga os céus, se abaixa e arma a sua tenda e habita no meio do seu povo.
Em Roma, abrir-se-ão as portas santas das basílicas papais para que o povo possa por ela passar, sinal do Cristo porta, “quem entrar por mim entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jó 10,9). Nas demais dioceses do mundo, igrejas jubilares serão lugares para peregrinação que sempre ilustram esse desejo interior de mudança. Não é mágica, não é o único meio de reconciliação, mas como seres simbólicos, a passagem pela porta ou a peregrinação até uma igreja, inaugura um tempo novo, marcado sempre pela expectativa de ser uma pessoa melhor. Dessa forma como lembra o Papa Francisco na Bula Spes non confundit, com a qual proclamou o jubileu ordinário, somos “Peregrinos de Esperança”.
Logotipo do Jubileu Ordinário 2025
Esperançar?
Considerando as muitas notícias que nos invadem todos os dias, naturalmente nos perguntamos, ainda é possível esperançar? Olhando para a história da civilização notamos que, em cada contexto, a sociedade sempre padeceu de inúmeras situações que foram motivo de desespero, desalento e desistência. Todavia, a humanidade sempre os superou e seguiu em frente. Encontrou forças, descobriu que era mais forte do que pensava e passou do desespero à esperança. Como diria Rubem Alves: “Temos uma capacidade quase infinita de suportar a dor, desde que haja esperança” (ALVES, 2013, p. 19).
Agostinho declara que “a esperança tem duas filhas: a indignação e a coragem”, duas asas que nos fazem alçar voos cada vez mais altos. O cinema sempre retratou a esperança, pois seus roteiros são atravessados pela luta, pela coragem, resistência ou resiliência. Dos dramas à comédia, dos documentários aos musicais, a esperança tende a ser o fio condutor das muitas histórias contadas.
A morte, por sua vez, apresenta a dinâmica da esperança nas mais diversas culturas, independente da crença ou da não crença. Há uma esperança que brota da morte, pois ela reclama algo a mais de nós, nos questiona e nos convida a adentrar o mistério. Nos insere numa experiência mística capaz de nos transportar para além de nós mesmos.
Como diria Arendt: “Toda esperança traz consigo um medo, e todo medo cura-se ao tornar-se esperança correspondente” (ARENDT, 1992, p. 213). A mistura de dor, gozo e júbilo, que nos desestabiliza e ao mesmo tempo nos devolve a nós mesmos, faz da esperança um atravessamento místico, porque “o místico não se encontra no invisível. O místico se encontra no visível” (ALVES, 2016, p. 20). Enxergar a beleza da vida nas situações concretas do dia a dia, sem alienação, nem negação, ou um otimismo delirante, apenas e tão somente “a vida como ela é”, segundo Nelson Rodrigues, é a verdadeira esperança.
Somos seres de busca e, não à toa, a busca pela verdade, pelo belo e pelo bem, tem movido a humanidade. Vivemos e fazemos essa experiência no LABÔ, onde reavivamos a esperança, seja por meio das pesquisas, dos seminários, das aulas, mas principalmente pelo respeito ao outro, nas múltiplas características de seus membros e linhas de pesquisa. Conviver com o diferente e descobrir que o outro nos enriquece é uma aventura pela qual não devíamos abrir mão.
Se temos algo a aprender com o passado é a capacidade de continuar esperançando. Renovar a esperança é um ato de protesto e resistência, mas também de confiança. Acreditar contra toda a esperança move o coração humano na direção de um futuro que se apresenta sempre novo. Para Tolentino: “a esperança é capaz de dialogar com o futuro e de aproximá-lo. A nossa existência, do princípio ao fim, é uma profissão de fé na esperança” (MENDONÇA, 2016, p. 50). Que o Natal seja ocasião para crentes e não crentes, se extasiarem diante do grande mistério da vida que se apresenta como possibilidade de renascimento e esperança de dias melhores. Feliz Natal com esperança!
Referência bibliográfica
ALVES, Rubem. Do universo à jabuticaba. 2 ed. São Paulo: Planeta, 2013.
ALVES, Rubem. Se eu pudesse viver minha vida novamente. São Paulo: Planeta, 2016.
ARENDT, Hanna. A vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumara, 1992.
BENTO XVI. Spe Salvi. Carta encíclica sobre a esperança cristã. São Paulo: Paulinas, 2007.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus,
FRANCISCO. Spes non confundit. Bula de Proclamação do Jubileu Ordinário do ano de 2015. Brasília: Edições CNBB, 2024.
HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais. Petrópolis: Vozes, 2022.
JOSAPHAT, Carlos. Fé, esperança e caridade: encontrar Deus no centro da vida e da história. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1999.
MENDONÇA, Tolentino. Mística do instante. São Paulo: Paulinas, 2016.
Imagens: arquivo pessoal





