
Tenho o prazer de publicar, mensalmente, a coluna OUTSIDER, cuja existência se deve ao encorajamento de Andréa Kogan e Luiz Felipe Pondé. Por vezes oferecerei ao leitor textos longos e informativos, por vezes textos curtos e provocativos, além dos inúmeros tons de cinza que há entre esses extremos. Que não se prendam à forma. A única constância aqui será a sinceridade do autor: sinceridade que só se alcança quando se é um outsider.
Dedico este texto aos alunos do curso “Estamos sozinhos no universo?”, ministrado no primeiro semestre de 2025.
Em algum momento, num passado distante, pré-histórico, o homem se colocou como um problema para si próprio. Assim, pela primeira vez, um primata faria a pergunta “quem sou eu?” – ou, mais provavelmente, “quem somos nós?”. Esta inquietação levou nossos antepassados a questionarem seu papel no drama cósmico, o que, por fim, os levou à pergunta que dá nome a este ensaio.
Como é sabido e exaustivamente estudado, todos os agrupamentos humanos responderam negativamente a tal questão, dando origem ao fenômeno universal chamado religião. “Ter uma religião” é, sob esse aspecto, crer-se parte integrante de uma ampla sociedade, composta por homens e (termo de que me utilizo despretensiosamente) por seres espirituais. Acreditar que existem espíritos, “forças da natureza”, divindades etc., torna o silêncio eterno dos espaços infinitos menos assustador. É claro que com a religião surgem novos medos, tais como o medo da condenação eterna. Isto, contudo, não anula o fato de que quem “tem religião” se sente menos sozinho.
É necessário notar, entretanto, que nossa busca por companhia não se limitou – e não se limita – à transcendência. Pelo menos desde a Grécia antiga, o homem se pergunta se não haveria vida (de preferência) inteligente em outros corpos celestes: “logo ali”, na imanência, e não em outras faixas da realidade das quais estamos, em princípio, irremediavelmente apartados. Ora, o que me proponho nestas linhas é, precisamente, esboçar a história de nossas ideias a respeito de vida fora da Terra, de vida alienígena. Só a ignorância da academia – particularmente grave nos cursos de humanas das universidades públicas brasileiras, tomados quase por completo ou por ideologias babacas ou por estudos estéreis – poderia sugerir a alguém que se trata de um assunto de pouca importância.
Chamemos nosso tema por seu nome próprio, sacramentado pela tradição: pluralidade dos mundos. Desde já, é importante que se diga que o termo “mundo” não manteve o mesmo significado ao longo dos mais de vinte séculos de debate a respeito do assunto. Na Grécia, “mundo” (“cosmos”) significava todo um sistema, formado por uma porção determinada de céu, uma “Terra”, corpos circundantes e, eventualmente, seres vivos – e não simplesmente um planeta habitado, tal como em A guerra dos mundos, de H.G. Wells.
Houve no mundo antigo duas posições dominantes a respeito do tema: a que chamarei de atomista (defensora da pluralidade dos mundos) e a que chamarei de platônico-aristotélica (detratora da pluralidade dos mundos). Segundo Hipólito, teólogo cristão do século III, Leucipo e Demócrito já sustentavam a existência de muitos mundos habitados, tese que viria ser aprofundada e sustentada com mais ardor por Epicuro e Lucrécio.
De acordo com a física de Epicuro, o mais relevante dentre os atomistas, a realidade era composta de espaço vazio e de partículas indivisíveis, aquele infinito quanto a sua extensão e estas infinitas quanto a sua quantidade. Tais infinitudes só poderiam gerar infinitos mundos (no sentido grego acima exposto), todos com suas plantas, seus animais e seus homens. Se tudo é fruto do entrechoque casual de intermináveis átomos, por que somente aqui haveria vida? Como sugeriu Metrodoro de Quios, membro da escola de Demócrito, a existência de um mundo único seria tão estranha quanto a existência de uma única espiga de milho numa imensa planície. Note-se que a afirmação da pluralidade dos mundos, além de ser uma consequência lógica da teoria atomista, trazia, para Epicuro, a vantagem adicional de problematizar a divinização dos astros tão comum à época e que, para a filosofia do jardim, se colocava como um empecilho para a felicidade humana.
A posição atomista, no entanto, nunca logrou ser tão influente e aceita quanto a posição platônico-aristotélica. Se Platão, já no Timeu, havia afirmado a existência de um mundo único, caberia a Aristóteles a defesa mais sistemática desta tese. O mundo aristotélico, ao contrário do de Epicuro, não era homogêneo. Para Aristóteles, a Terra encontrava-se no centro da realidade material, sendo circundada (exatamente nessa ordem) pela Lua, por Mercúrio, por Vênus, pelo Sol, por Marte, por Júpiter, por Saturno e pela “esfera das estrelas fixas” – esta última uma espécie de “casca” do cosmos, salpicada de pequenas luzes.
Toda essa máquina, ainda segundo Aristóteles, seria formada por cinco elementos, terra, água, ar, fogo e éter, cada qual com seu lugar natural, um local no cosmos para o qual tenderia ou seria naturalmente atraído. Sendo o cosmos uma grande esfera, a terra tenderia para seu centro, sendo envolvida, respectivamente, pela camada de água, pela camada de ar, pela camada de fogo e pela camada de éter, a qual iria da Lua até as estrelas.
Sendo essa a forma do cosmos, diz Aristóteles (mormente no De Caelo), decorre daí que não pode haver uma pluralidade de mundos – e isso sobretudo pelos dois argumentos que se seguem. Primeiramente, uma vez que cada elemento tem seu lugar natural, é impossível que haja mais do que um cosmos, já que se isso fosse verdade a terra, por exemplo, tenderia tanto para o centro deste mundo quanto para o centro de todos os mundos que houvesse – de modo que, por vezes, veríamos uma porção de solo alçando voo em rumo ao desconhecido, o que patentemente contraria a experiência. Além disso, uma vez que Aristóteles nega a existência do vácuo, é impossível que haja vários cosmos, afinal, sendo todos eles esféricos (a exemplo do nosso), por mais que encostassem uns nos outros, sempre haveria muito espaço vazio entre eles – tal como há muito espaço vazio numa piscina de bolinhas…
O fato é que – quer por sua superioridade intrínseca, quer por sua afinidade com o cristianismo – as filosofias de Platão e Aristóteles saíram vitoriosas da disputa com a filosofia atomista, tornando-se hegemônicas ao longo da Idade Média. Ademais, por estar plenamente convencido do mundo espiritual, o homem medieval não se lembrou de “buscar companhia” nas estrelas, de modo que o assunto da pluralidade dos mundos ficou fora de moda durante uns bons séculos.
Entretanto, ao contrário do que se costuma pensar (já que pega bem ser preconceituoso – ou mesmo ignorante – com relação à Idade Média), o tema dos outros mundos nunca foi um tabu para os medievais. Apesar de, em geral, recusarem a pluralidade, os grandes autores do período nunca viram nessa tese algo ímpio, a ela não anuindo por motivos puramente filosóficos – particularmente por conta daqueles já alegados por Aristóteles. Esse é o caso, por exemplo, de Roger Bacon e do monumental Tomás de Aquino, que fez questão de frisar que não via qualquer incompatibilidade entre a pluralidade dos mundos e a Revelação. Alberto Magno, o professor de Tomás, chegara mesmo a afirmar que a investigação desse assunto era uma das mais nobres que poderia haver.
As primeiras vozes medievais dissonantes sobre o tópico foram as de Guilherme de Ockham e de Nicolau de Oresme. O primeiro, ainda no século XIII, problematizou um dos argumentos aristotélicos utilizados para negar a pluralidade. Mesmo sendo verdade a tese dos lugares naturais, pergunta Ockham, o que impede que cada mundo tenha seu próprio centro e sua própria ordenação interna, não interferindo nem agindo sobre os elementos dos mundos vizinhos? Nicolau de Oresme (séc. XIV), por sua vez, além de endossar a crítica de Ockham (a aprofundando ao substituir a noção de lugar natural absoluto pelos conceitos de pesado e leve e ao afirmar a viabilidade do vácuo), levanta a possibilidade – já aventada por Orígenes – da existência de inúmeros mundos sucessivos uns aos outros.
O próximo passo em direção ao abandono da cosmologia aristotélica caberia a um outro Nicolau, o de Cusa. Autor do clássico A douta ignorância, o cardealnão só voltaria a defender a infinitude do espaço, como também sua homogeneidade, afirmando que todo corpo celeste seria formado pelos mesmos quatro elementos que até então se acreditava estarem confinados na região sublunar. Entendendo perfeitamente as consequências de suas teses, Cusa anuncia abertamente a possibilidade de vida fora da Terra.
Não há indícios de que Cusa tenha lido os antigos atomistas, tudo levando a crer que sua filosofia é fruto exclusivo das querelas próprias à Idade Média. Todavia, se é verdade que Cusa não fora influenciado por Epicuro ou Lucrécio, é certo que ele próprio influenciou Leonardo da Vinci, especialmente no que diz respeito à já mencionada homogeneidade composicional dos objetos astronômicos e no que toca à mudança de significado do termo mundo – que, doravante, nada mais significará do que um corpo celeste habitado.
Não posso passar adiante sem citar neste ponto um autor que, para mim, entendeu como ninguém os grandes problemas teológicos que a crescente aceitação da possibilidade de vida alienígena traria: Guillermus Vorrilong. Este obscuro biógrafo de Duns Scot, que aceitava sem ressalvas a possibilidade da pluralidade, foi o primeiro a levantar as seguintes questões: os seres inteligentes de outros mundos foram afetados pelo pecado de Adão? E, caso tenham sido, foram redimidos pelo sacrifício de Jesus ou tiveram que ter seu próprio Cristo? Otimista, Vorrilong não cria na transferência interplanetária da falta original e defendia que, mesmo que tal contaminação houvesse ocorrido, apenas um calvário teria sido suficiente para a remissão de todos, terráqueos e extraterrestres.
Quem aparentemente não ligava para as consequências mais amplas de suas teorias era Copérnico, que nunca se pronunciou a respeito da existência de vida alienígena. O astrônomo polonês, que defendia a finitude e a hierarquia do cosmos, nunca pretendeu que seus cálculos fundassem uma nova ideologia (como foi e é até hoje o “copernicanismo”). A bem da verdade, se Copérnico, ao transformar a Terra em apenas mais um planeta (ou seja, ao colocar nosso lar em movimento), ajudou a fomentar a crença em vida extraterrestre, ele o fez a despeito de suas intenções e de seu caráter comedido.
Falando sinceramente, o grande falastrão do Renascimento foi Giordano Bruno. A despeito de sua morte horrível e injustificável, a realidade é que considerar Bruno um mártir da ciência moderna é, para dizer o mínimo, reproduzir uma fake news – fabricada sob encomenda no século XIX e reproduzida, ainda hoje, por respeitadas séries de divulgação como Cosmos: uma odisseia no espaço. Sem nos aprofundarmos muito no assunto, basta que se diga que Bruno tinha um pensamento mágico e animista, que nunca foi cientista e que, além disso, não foi condenado por suas teses cosmológicas, e sim por sua teologia, a qual negava a divindade de Jesus.
Por outro lado, é inegável a relevância de Bruno para o assunto deste ensaio. Como se sabe, o autor chegou a publicar uma obra com o título De l’infinito universo e mondi (Do universo infinito e dos mundos), em que, como o título já assinala, defende um universo sem limites e todo povoado – todo cheio de mundos. Orgulhoso, o escritor italiano afirma que teria sido sua obra, mais literária do que qualquer outra coisa, e não a obra matemática de Copérnico que, definitivamente, teria revelado os mistérios do céu. A dura realidade é que Bruno, ao contrário do cientista, pouco ou nada contribuiu para nossa compreensão do espaço, ainda que sua mente fértil tenha colocado a pluralidade, de uma vez por todas, no imaginário europeu.
Creio que Bruno também foi o primeiro a levantar a tese – que será repetida à exaustão por muitos autores religiosos ao longo dos séculos seguintes – de que a infinitude do universo e dos mundos revelaria mais adequadamente a força e criatividade de um Deus todo-poderoso do que um mundo finito e somente habitado por nós. É curioso como este argumento de Bruno vai na contramão do pensamento platônico, que via na finitude – e, por extensão, na finitude do mundo – maior indício de perfeição do que na infinitude, a qual era entendida pelo grego como falta de limites e, portanto, como inacabamento.
É difícil dimensionar a influência que Bruno teve sobre Johannes Kepler, já que este o cita poucas vezes. Diferentemente do escritor italiano, Kepler tinha um espírito experimental, ressaltando a importância da observação mesmo antes de existirem os telescópios. Em sua obra ficcional Somnium (Sonho), publicada em 1634, Kepler, que já estava convencido da homogeneidade da Terra e seu satélite, coloca criaturas vivas na Lua, chegando mesmo a especular sobre sua compleição física em função das condições climáticas a que estariam submetidas.
Kepler, um entusiasta inveterado da pluralidade, chama a atenção de seu leitor para o fato de que não seria o primeiro a cogitar a existência de vida no satélite terrestre, lembrando que Plutarco (séc. I d.C.), já havia colocado a habitabilidade lunar na ordem do dia em seu De facie in orbe lunae (Sobre a face na Lua). Devo acrescentar que, pouco depois de Plutarco, Luciano de Samósata (séc. II d.C.), em sua História Verdadeira, uma sátira dos exagerados relatos de viagem de então, narra uma excursão à Lua e o encontro de vida alienígena. Não acredito, entretanto, que Luciano deva, sem mais, ser alinhado na fileira dos adeptos da pluralidade – e isso não somente pela falta de indícios que apontem nessa direção, como também pelo fato (que fala por si só) de o escritor fazer menção à vida extraterrestre precisamente num contexto de referência a coisas absurdas.
Ainda com relação a Kepler, note-se que seu entusiasmo pela pluralidade foi tão grande que o levou a atribuir a Tycho Brahe a mesma simpatia pela tese, sendo que na realidade não há qualquer sinal de que o astrônomo dinamarquês – que sequer concedia que a Terra girava em torno do Sol – acreditasse na possibilidade de vida alienígena. Aliás, nem Galileu, cujas descobertas empíricas provaram, de uma vez por todas, que a Lua não era feita de um “material diferente” (como pretendiam Aristóteles e os aristotélicos), chegou a ver com bons olhos a tese da pluralidade, da qual nunca se convenceu apesar dos esforços de Kepler em seu Dissertatio cum Nuncio Sidereo (Diálogo com o Mensageiro das Estrelas).
Enquanto uns discutiam sobre o céu, outros faziam a Revolução Protestante (considero a expressão Reforma Protestante muito imprópria por motivos que, em outra ocasião, posso explicar). Contudo, isso não impediu que Philip Melanchthon “resolvesse” a querela da pluralidade com uma canetada: como é absurdo pensar que Jesus viveu e morreu em outros mundos, então… eles não existem! Saudemos, de passagem, o problema percebido profeticamente, séculos antes, por Guillermus Vorrilong.
Pois bem. Conforme a tese da pluralidade dos mundos foi se popularizando, mais e mais autores foram se pronunciando sobre ela, num verdadeiro efeito bola de neve. O frade dominicano Tommaso de Campanella, que estava mais preocupado com questões de filosofia política do que com as estrelas, fez questão de ressaltar que caso existissem “homens” fora da Terra, não haveria motivos para considerá-los como herdeiros do pecado de Adão e, portanto, como necessitados do sacrifício crístico. O icônico padre Mersenne (fazendo eco a Pico della Mirandola), sublinhou, por sua vez, que o silêncio das Escrituras a respeito de vida extraterrestre não constitui um argumento a favor de sua não existência – posição diametralmente oposta à de Melanchthon, que considerou o mesmo silêncio como prova inequívoca de nossa singularidade cósmica.
A cautela e o “jejum em questão de opinião” também foram marcas características de René Descartes – o primeiro pensador a, de fato, apresentar um sistema novo de mundo capaz de substituir a antiga cosmologia aristotélica. Segundo a teoria dos vórtices cartesiana, o universo, de tamanho indeterminado, seria todo preenchido (física plenista) por vórtices, redemoinhos de res extensa compostos por uma estrela central e planetas circundantes. Contudo, apesar de, por esse caminho, Descartes oferecer pela primeira vez uma fundamentação teórico-científica para a hipótese da existência de inúmeros “sistemas solares”, ele se absteve de apoiar – ou atacar – a tese da pluralidade: “sempre deixo questões desse tipo em aberto, em vez de negar ou afirmar qualquer coisa”.
Blaise Pascal, por conta de sua finalidade apologética, nunca teve problemas em dar livre curso à imaginação para, desse modo, melhor “tocar” seus leitores. Numa famosa passagem dos Pensamentos, Pascal brinca com a ideia do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, sugerindo que todo o universo talvez não seja senão uma partícula ínfima do corpo de um inseto – bem como sugerindo que nas menores partes dos insetos de nossa escala de realidade talvez haja “uma infinidade de universos, cada qual com seu firmamento, seus planetas, sua Terra, em iguais proporções à do mundo visível; e, nessa Terra, animais, e neles lêndeas…”.
É curioso que Pascal não diga que nesses infinitos universos, além de animais, haja seres humanos ou algo que o valha. Estou convencido de que o filósofo não o fez por, de fato, não crer que existam seres racionais e morais para além de nós (e dos anjos, claro). Entretanto, não há espaço, aqui, para que eu justifique minha convicção: o leitor que a aceite, ao menos por enquanto, como argumento de autoridade.
O fato é que Pascal, ao mencionar outros universos, visa mais desmontar as pretensões de seus interlocutores (pseudo)racionalistas – que acreditam ser possível conhecer o princípio e o fim de tudo o que há – do que se pronunciar, positiva ou negativamente, sobre a tese da pluralidade. Neste ponto, o apologeta só está retomando, com cores mais vivas, uma estratégia já adotada por Michel de Montaigne nos Ensaios, onde, para problematizar a aderência de nossa razão à realidade, sugere – “como Demócrito e Epicuro” – que a natureza deve, em cada mundo alienígena, se comportar de uma maneira única e, para nós, incompreensível.
Seja como for, se pode afirmar que, no final do século XVII, a pluralidade dos mundos já era um assunto onipresente. A esse respeito, basta que se diga que 82% dos autores iluministas citados por Louis Snyder em The age of Reason se dedicaram ao debate da questão. Dois escritores dessa época foram particularmente importantes para a difusão massiva do tema – inclusive entre não intelectuais: Fontenelle e Huygens.
Bernard le Bovier de Fontenelle, dramaturgo francês, foi o autor do popularíssimo Entretiens sur la pluralité des mondes (Conversas sobre a pluralidade dos mundos).A obra relata uma série de bate-papos noturnos travados entre um filósofo e uma charmosa marquesa que, aos poucos, vai se livrando de seus “preconceitos” e aceitando a tese da pluralidade. O próprio Fontenelle resume os argumentos centrais de seu livro como se segue: 1) se a Terra é habitada e os outros planetas são semelhantes a ela, logo todos (ou muitos) devem ser habitados; 2) se os demais planetas não fossem habitados, não se entenderia o motivo de existirem (seriam inúteis); 3) a natureza se mostra sempre muito fecunda, de modo que não há porque acreditar que só exista vida aqui; 4) quanto mais afastados do Sol, mais satélites têm os planetas de nosso sistema, o que parece indicar que tais satélites lá foram colocados para compensar a rarefação da luz solar; e 5) não há nenhum argumento razoável contra a tese da pluralidade, o que, por si só, constitui um novo argumento para a sua aceitação.
Quase simultaneamente, Christiaan Huygens, um dos maiores físicos e astrônomos observacionais de todos os tempos, produziu o notável Cosmotheoros. Apesar de se afastar da hipótese de vida lunar, chamando o Somnium de Kepler de um mero “conto de fadas”, o cientista holandês sustentava que Júpiter e Saturno deviam ser habitados; afinal, se não o fossem, por que teriam um sistema de satélites naturais tão incrível? Huygens chega mesmo a assegurar que tais corpos celestes teriam habitantes inteligentes, com o mesmo conhecimento humano sobre física e com uma anatomia semelhante à nossa, já que mãos seriam imprescindíveis para se operar instrumentos astronômicos. Sim, o vazio espiritual da época de Huygens já era tão acentuado que até os maiores intelectuais começavam a buscar, angustiadamente, companhia extraterrestre.
Sensato, Isaac Newton nunca se dedicou à questão da pluralidade, ainda que reconhecesse que esta não era incompatível com sua teoria cosmológica. O silêncio de Newton não impediu, todavia, que a crença em alienígenas continuasse a crescer exponencialmente, chegando, por exemplo, aos púlpitos da igreja anglicana através, principalmente, das pregações de Richard Bentley e William Derham, este último autor de Astro-Theology: or a Demonstration of the Being and Attributes of God, From a Survey of the Heavens (Astro-Teologia: ou uma demonstração do Ser e dos Atributos de Deus, a partir de uma análise dos céus). Muitos pensadores cristãos – em sua maior parte, ingleses – começavam então a integrar a tese da pluralidade a suas apologias da religião: a onipresença da vida num universo infinito seria mais uma prova da onipotência e da criatividade divinas. Nunca saberemos se esses pregadores acreditavam no que estavam defendendo ou se tão somente estavam se mostrando abertos às novas ideias para não “perderem público”. Eu, particularmente, tendo a concordar com esta segunda hipótese.
Dos grandes filósofos modernos, Immanuel Kant foi o que mais se comprometeu com o debate da pluralidade. Em sua História Natural Universal (1755), Kant teve o mérito de ter identificado nas “nebulosas” outras galáxias como a nossa (o que até então era impensável), sendo o responsável – ao lado de Thomas Wright, Johann Lambert e William Herschel – por expandir os horizontes da astronomia para além do sistema solar, transformando-a em ciência das estrelas.
Baseado na analogia entre a Terra e os demais planetas, bem como na ideia de que um universo todo povoado é mais condizente com a infinitude divina, Kant aderiu sem quaisquer restrições à tese da pluralidade – tão temerariamente que, na segunda edição da obra, possivelmente envergonhado com as sugestões que fizera, suprimiu toda a terceira parte da História, exatamente aquela em que elaborou um verdadeiro bestiário extraterrestre.
O filósofo alemão declara abertamente que “a maioria dos planetas é certamente habitada, e aqueles que não são, serão um dia”. Kant elaborou uma curiosa “biologia” que permitiria estimar a composição do corpo dos habitantes de um planeta de acordo com a distância deste em relação ao Sol. A grande proximidade da estrela daria origem a seres mais “densos”, “materiais” ou “grosseiros”, ao passo que a maior distância originaria seres mais “sutis”, “espirituais”.
O autor, no entanto, não para aí. Para ele, os seres mais “espirituais” – nativos, por exemplo, de Jupiter e Saturno – seriam mais inteligentes que seus irmãos “materiais” – de Mercúrio ou Vênus. E mais: o livre-arbítrio dos terráqueos (e, quiçá, dos marcianos) só existiria por conta da distância intermediária que há entre estes planetas e sua estrela – a qual, conferindo a seus habitantes uma certa compleição mista, os livraria da amoralidade inelutável dos seres dos outros planetas do sistema solar interno, não bastando, contudo, para brindá-los com a irrepreensibilidade ética dos habitantes dos gigantes gasosos. Com efeito, em Kant a genialidade e o delírio sempre caminham de mãos dadas.
Não posso esmiuçar todos os desvarios que os outros pioneiros da astronomia estrelar disseram a respeito da vida alienígena. Sobre Thomas Wright basta que se saiba que defendeu a tese da pluralidade com base no argumento – pueril – da teleologia do mundo físico: por que existiriam tantos sóis se não houvesse ninguém para utilizar sua luz e seu calor? O espetacular Johann Lambert (notável, entre outras coisas, por ter sugerido a forma discoidal da Via Láctea), por sua vez, não só defendeu a tese da pluralidade, como “povoou” os cometas – onde, protegidos pelos elementos de suas caudas, viveriam os indivíduos mais inteligentes do universo, visto que, dentre todos os seres, seriam os únicos naturalmente cosmonautas, viajantes compulsórios. Por fim, William Herschel, descobridor de Urano, autor do primeiro artigo “astronomia” da Enciclopédia Britânica e de An Easy Introduction to Astronomy for Young Gentlemen and Ladies (Introdução fácil à astronomia para jovens cavalheiros e moças), construiu uma verdadeira ficção científica a partir de suas observações da Lua, onde cria ver estradas, pirâmides e vegetação – identificando nas suas crateras metrópoles, cidades e vilas.
Sendo cada vez mais respeitada pela ciência (quantas babaquices já não foram respeitadas por ela?), a tese da pluralidade estendeu sua influência sobre autores de valor inestimável – muitos dos quais dela se utilizaram para seus próprios fins filosófico-literários, mas cujas convicções pessoais, não raro, é impossível determinar.
Voltaire brincou, em Micrômegas, com a ideia de alienígenas tão grandes que teriam dificuldades para notar que a Terra é habitada – retomando, assim, uma tarefa cara a Montaigne: destituir o homem de seu trono fictício sobre o resto da criação. Alexander Pope, em seu Ensaio sobre o Homem, faz clara referência à vida extraterrestre, asseverando que existiram tanto alienígenas superiores quanto alienígenas inferiores aos humanos. Ademais, Thomas Gray, Edward Young, Samuel Pye, Samuel Taylor Coleridge e William Wordsworth (cada um a seu modo) também trabalharam com a tese da pluralidade, quer para ressaltar nossa pequenez, quer para evocar o sentimento do sublime.
Benjamin Franklin, professando um curioso politeísmo, diz acreditar que cada deus criou, para si, “um sol glorioso, acompanhado de um belo e admirável sistema de planetas” – claro, todos habitados. Mais aguerrido, Thomas Paine, em The Age of Reason (A Era da Razão), de 1794, volta a focar na tensão que há entre a doutrina da salvação e a tese da pluralidade – dessa vez não para impugnar esta última (como fizera Melanchthon) ou para abrandar qualquer conflito (como fizeram Campanella e muitos outros), mas para ressaltar que, frente ao “fato inquestionável” da existência muitos mundos, não estamos mais autorizados a acreditar que Deus se deu ao trabalho de encarnar e morrer neste mísero subúrbio do Universo: não estamos mais autorizados ser cristãos. Nesse espírito, tanto Horace Walpole, pai da literatura gótica, quanto Lord Byron e Percy Bysshe Shelley declararam, expressamente, que a tese da pluralidade os teria confirmado em sua irreligião.
Enquanto a vanguarda intelectual – ou, pelo menos, uma parte muito significativa dela – abraçava com sofreguidão a pluralidade, importantes pregadores continuavam a dela tentar extorquir argumentos a favor do cristianismo, como os presbiterianos escoceses Thomas Chalmers e Thomas Dick, o qual dedicou inúmeros livros à questão. Todos se interessavam pelo assunto, mas – como é praxe – poucos procediam com critério, se aproximando da temática apenas para nela projetar suas ideias pré-concebidas.
O ridículo da situação não demoraria, assim, para ser alvo de chacota. Em 25 de agosto de 1835 o New York Sun publicaria uma reportagem (obviamente) fake, relatando que o astrônomo John Herschel teria, por meio de observações realizadas num poderosíssimo telescópio, identificado seres humanoides alados na Lua. Herschel teria sido capaz até mesmo de observar seus costumes e deles tirar algumas conclusões de cunho moral. Nem é preciso dizer que esse e os volumes seguintes do New York Sun, acompanhados por interpretações artísticas das notas de Herschel, foram um sucesso de vendas, conferindo ao noticiário a maior circulação que um jornal alcançara até então.
Depois que Richard Adams Locke, o autor da matéria, veio a público revelar que tudo não passava de uma brincadeira, o episódio ficou conhecido como Great Moon Hoax (Grande Farsa da Lua). Recomendo que o leitor pesquise as imagens ilustrativas da suposta observação na Internet. O que causa espanto não é, contudo, o sucesso popular atingido pela matéria, mas a aceitação acrítica por parte dos intelectuais. Uma testemunha da época relata que os professores de Yale ficaram em polvorosa com a notícia e que esperavam impacientes por atualizações.
Referindo o caso, Edgar Allan Poe registrou que praticamente ninguém de seu meio chegou a duvidar das informações relatadas, identificando céticos apenas dentre “ignorantes”, que sequer sabiam formular as razões de sua descrença, não acreditando apenas pela estranheza ou singularidade da coisa: “um sério professor de matemática de uma faculdade da Virgínia me disse que não tinha dúvidas sobre a veracidade de todo o caso!”. Não foi a primeira vez – e nem seria a última – que intelectuais se configurariam como o público preferencial de ideias ridículas.
Auguste Comte, devido a seu apego salutar à experiência, rejeitou como ociosa qualquer especulação que se fizesse sobre a pluralidade. O positivista sustentava que o mais razoável seria “limitar o objetivo da astronomia à descoberta das leis dos fenômenos geométricos e mecânicos presentes nos corpos celestes”. Entretanto, nem só de ciência vive o homem, mas também de toda palavra que sai da boca de iluminados e profetas. Se, no século XVIII, Emanuel Swedenborg já havia se lembrado de povoar outros planetas com espíritos humanos “desencarnados”, o século XIX assistiria Allan Kardec, Joseph Smith e Ellen G. White absorverem a pluralidade em seu cabedal de crenças religiosas.
Em O livro dos Espíritos, mais especificamente na questão 55, Kardec afirma a existência de vida em outros lugares do cosmos, havendo extraterrestres mais “espirituais” e extraterrestres mais “materiais” que os homens, a depender de seu grau de evolução. Para o fundador da igreja mórmon, Joseph Smith, os outros planetas do sistema solar, bem como os planetas que orbitam outras estrelas, seriam habitados por seres racionais, compondo um universo infinito e todo preenchido pela vida (como se pode ler, por exemplo, em Doutrinas e Convênios). Por fim, Ellen G. White acreditava que, dentre todos os mundos existentes, Satanás teria escolhido a Terra para sua morada; Jesus, por sua vez, por conta de sua extrema humildade e compaixão, teria escolhido adotar a natureza humana – e não a natureza dos extraterrestres sem pecado, cujos planetas também seriam objeto de Sua providência.
A meu ver, William Whewell (1794 – 1866) – polímata inglês e criador do termo cientista – foi uma das mentes que trataram da questão da pluralidade com mais sobriedade.Ainda que em sua juventude tenha flertado positivamente com a tese, em Dialogue on the Plurality of Worlds (Diálogo sobre a Pluralidade dos Mundos) Whewell desmonta todos os argumentos que pretendiam sustentar a existência de vida alienígena. No que toca à tese finalista de que seria um “desperdício” um universo tão grande só comportar vida em um pequeno planeta, o autor chama a atenção para a questão do tempo. Como a geologia já demonstrava, a própria Terra foi, durante períodos inimaginavelmente longos, totalmente estéril – o que provaria que Deus não é, de modo algum, parcimonioso quanto aos meios que escolhe para dar forma a sua criação.
Além disso, Whewell sublinha o fato de que as condições terrestres propícias à vida são muito específicas, desde sua composição química até sua pressão e sua distância do Sol: nascia, assim, o conceito de zona habitável que, junto com outros fatores, desprestigiaria a tão alardeada igualdade de todos os planetas, construída sobre uma noção demasiadamente tosca de homogeneidade. Por fim, para os religiosos que ainda estivessem chocados com a ideia de que Deus tivesse feito um universo tão vasto apenas para os seres humanos, Whewell ressalta que as estrelas e os planetas, por grandes que sejam, não passam de pedra e vapor, nada comparáveis em dignidade ao homem: racional, capaz de virtude e, no fim das contas, imortal.
As críticas de Whewell concernentes à pretensa homogeneidade dos corpos celestes ganhariam ainda mais força com o desenvolvimento da espectrometria por William Huggins. O evolucionismo, no entanto, exerceria um papel dúbio nessa balança. Se a teoria de Charles Darwin (que, pessoalmente, nunca se pronunciou a respeito do tema) enfraquece a tese de que o universo obedece a um telos, por outro lado ela fortalece a ideia de que a vida tem na matéria inanimada sua fonte última. Em outras palavras, se o darwinismo sugere que o universo não precisa ser uniformemente habitado, já que não seguiria qualquer plano, por outro lado abre as portas para a tese de que a vida pode ter brotado, sob outras formas, em qualquer lugar.
Visando mais a glória do que a verdade, Camille Flammarion escreveria, em 1862, La pluralité des mondes habités (A pluralidade dos mundos habitados), que acabaria se tornando a obra de maior sucesso já produzida por um astrônomo francês. Charlatão, Flammarion mente para o leitor desde a folha de rosto do livro, se apresentando como “experiente calculador do observatório imperial de Paris, professor de astronomia e membro de várias sociedades de sábios”, quando, na realidade, não passava de um aficionado pelo tema, contando, então, com apenas vinte anos de idade. O fato é que, apesar de sua falta de originalidade, Flammarion viveria o resto de seus dias às custas da fama adquirida como defensor inveterado da pluralidade.
O divulgador científico mais popular do século XIX, Richard Anthony Proctor, contemporâneo de Flammarion, também fez muita fama com a defesa da pluralidade em Other Worlds than Ours (Outros Mundos Além do Nosso), de 1870. Proctor, todavia, mudou de opinião ao continuar estudando o assunto – o que não evitou que entrasse para a história como um dos maiores defensores de vida alienígena de todos os tempos.
Permito-me fazer, aqui, uma última referência à presença do tema da pluralidade na literatura, particularmente nas obras de dois autores que não têm o fantástico como seu objeto costumeiro, a saber, Fiódor Dostoiévski e Mark Twain, ambos contemporâneos de Flammarion e Proctor. Dostoiévski, em O sonho de um homem ridículo, relata a “ida” do protagonista a um outro mundo, no qual ele próprio acaba introduzindo o pecado. O que importa aqui, entretanto, é o modo como Dostoiévski relata a viagem e o aspecto desse mundo, dando a entender que não se trata não de um “outro plano” de realidade, mas pura e simplesmente de um outro planeta, muito semelhante ao nosso.
Twain, por sua vez, no conto Extrato da Visita do Capitão Stormfield ao Céu, retoma o tema da pluralidade na clave já adotada por Montaigne e Voltaire: aquela que aponta para a pequenez e insignificância humanas. Na história, tendo falecido, o Capitão Stormfield chega às portas do paraíso, precisando explicar para o “porteiro” de onde vem. Primeiramente, lhe diz que vem da cidade de São Francisco, a qual seu interlocutor afirma não conhecer. Depois declara que vem do estado da Califórnia, recebendo a mesma resposta do porteiro. Após algum tempo, Stormfield nota que o funcionário do paraíso não reconhece suas referências (ele sequer conhecia a Terra!) por conta de nossa irrelevância perante os outros inúmeros planetas habitados do Universo, cujos moradores também seriam merecedores da beatitude eterna.
Contudo, na virada do século XIX para o século XX já era consenso entre os cientistas que nenhum outro planeta do sistema solar era habitado – talvez com exceção de Marte (lembram que, ainda há algumas décadas, “extraterrestre” e “marciano” eram praticamente sinônimos?). Ora, foi nesse contexto que ocorreu a famigerada “controvérsia dos canais em Marte”. Em 1877, o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli relatara que, depois de muito observar nosso planeta vizinho, teria identificado em sua superfície alguns canali. Segundo Schiaparelli, a velocidade com que os canais “germinavam” ou se “duplicavam” não poderia ser explicada por nenhum processo físico ou químico, só restando a biologia para explicar o fenômeno.
O astrônomo, no entanto, não parou por aí. Se em seus escritos traduzidos para o inglês Schiaparelli manteve certa prudência em suas afirmações, nos textos direcionados ao público italiano não teve escrúpulos em defender que tais canais eram fruto da engenharia dos marcianos que, sofrendo com uma grave seca, tentavam desesperadamente irrigar suas plantações. Schiaparelli chegou mesmo a defender que os marcianos deviam viver sob um regime socialista aos moldes daquele de Charles Fourier, voltando todas suas forças contra um inimigo comum: a dificuldade imposta pela natureza.
Muitas vezes o número de adeptos de uma tese é proporcional à sua estupidez. Assim, não é de se espantar que, após as declarações de Schiaparelli, tenham pululado ao redor do mundo dezenas de astrônomos e de trabalhos científicos endossando as observações do italiano. Muitos anos se passariam até que o equívoco geral fosse corrigido pelos trabalhos de Edward Walter Maunder e Eugène Michel Antoniadi, os quais garantiram que, na melhor das hipóteses, a visão dos canais não passava de ilusão – uma espécie de pareidolia.
Após o ocorrido, o tema da vida extraterrestre só voltaria à tona – ao menos fora do âmbito da ficção científica – depois da Segunda Guerra Mundial: em parte com a ufologia, em parte com as agências e os astrônomos profissionais. A ufologia mereceria, só ela, todo um artigo. Em linhas generalíssimas, trata-se, por definição, do estudo de objetos voadores não identificados – que tem como data de nascimento 24 de junho de 1947, quando um piloto americano de reputação ilibada teria visto aquilo que, doravante, seria chamado de flying saucer (o velho e bom disco-voador).
Há ufologia para todos os gostos: a chamada ufologia “científica” (que luta por validação ao, pretensamente, proceder de acordo com os métodos científicos); a ufoarqueologia, que alega que “os deuses eram astronautas” (tese já levantada em As montanhas da loucura, de H.P. Lovecraft, e transformada em máquina de fazer dinheiro por Erich von Däniken); e, por fim, a ufologia mística, uma vertente da Nova Era que mistura espiritismo, cristais, incensos, “canalizações” e alienígenas louros e fortes, como o famoso Ashtar Sheran.
Em 1959 a revista Nature, por sua vez,publicaria uma espécie de “manifesto SETI” – Search for Extraterrestrial Intelligence (procura por inteligência extraterrestre). Nele, os astrônomos Cocconi e Morrison ressaltavam que, caso houvesse civilizações avançadas na galáxia, elas poderiam estar usando ondas de rádio para se comunicar – de modo que, de acordo com os dois, deveríamos voltar nossos radiotelescópios para as estrelas em busca de tecnoassinaturas: sinais de atividade tecnológica alienígena. Na época, Frank Drake – autor de uma curiosa equação que visa estimar a quantidade de civilizações ativas na Via Láctea – já dava curso à empreitada utilizando o imenso telescópio de Arecibo (Projeto Ozma). Desde então, inúmeros programas similares surgiram em todo o mundo, alguns deles ainda em atividade. E que não se pense que o SETI só engajou pesquisadores excêntricos. Note o leitor que, em 1982, Carl Sagan liderou um projeto que recolheu a assinatura de sessenta e nove cientistas (sete dos quais ganhadores do prêmio Nobel) no intuito de pedir à comunidade internacional que se unisse na busca por extraterrestres.
Todavia, nossos cientistas não se limitaram a procurar sinais cósmicos. Por sugestão de Sagan, a NASA aceitou acoplar às sondas Pioneer e Voyager – os primeiros artefatos humanos a abandonarem o sistema solar – mensagens para a apreciação de possíveis civilizações alienígenas. A mensagem acoplada à Pioneer (1972/1973)foi registrada em relevo sobre uma placa metálica, contendo, além de informações mais técnicas, um casal de humanos nus, com o homem acenando amistosamente. Recomendo vivamente ao leitor que procure a imagem no Google: tenho certeza de que ficará chocado com sua aura religiosa.
A mensagem acoplada na Voyager (1977) foi registrada num disco, envolvido numa capa que, além de o proteger, traz informações de como “tocá-lo”. Caso caia nas mãos de algum alienígena bastante curioso e, claro, muito antropomórfico, o disco lhe revelará 116 ilustrações de cenas terrestres, saudações de políticos da época (incluindo o presidente Jimmy Carter), cumprimentos em 54 línguas, sons da Terra, músicas clássicas e o cafoníssimo canto da baleia corcunda, então muito na moda. Nem preciso dizer que -graças a Deus! – até agora não recebemos nenhuma resposta.
O fato é que os anos 1970 e seus exageros acabaram. Hoje, os arroubos dos Sagan deram lugar à modesta astrobiologia. O início do programa espacial foi marcado pela preocupação das agências relativamente à possível contaminação do equipamento enviado para fora da Terra. Muitas análises sempre foram feitas no material que retornava ao planeta, já que a introdução de um organismo alienígena em nosso ecossistema poderia ter consequências verdadeiramente desastrosas. A NASA, por seu turno, não demoraria a utilizar a pesquisa de vida extraterrestre como propaganda de justificação de seus projetos bilionários – já que, como o cinema prova constantemente, o povão adora um E.T.
Contudo, para além dos motivos escusos que podem impulsionar a astrobiologia, ela é, indiscutivelmente, uma ciência séria – ou melhor dizendo, um campo interdisciplinar legítimo. Sob o bojo da astrobiologia se reúnem hoje físicos, químicos, biólogos e geólogos, não para mandar ou receber mensagens interplanetárias, mas para estudar as condições do surgimento e da manutenção da vida na Terra e, por extensão, em outros corpos celestes. Quando observam as estrelas e os planetas que as orbitam, os astrobiólogos não procuram majoritariamente por tecnoassinaturas, mas sim por bioassinaturas: procuram mais sinais de vida microscópica do que transmissões de rádio. Vale dizer que, atualmente, a astrobiologia já se encontra institucionalizada em nosso país, contando com instalações na USP (o ASTROLAB) e com pesquisas financiadas pela FAPESP.
Particularmente, não tenho opinião sobre vida extraterrestre. A pluralidade faz parte da minha ladainha de perplexidades filosóficas: me parece absurdo que estejamos sozinhos e também que não estejamos sozinhos no universo. Uma coisa, entretanto, me parece certa. Pensamos em outros mundos porque nos sentimos abandonados – ou, como o próprio Carl Sagan confessou mais de uma vez, buscamos outros mundos porque nos corrói um sentimento de “solidão cósmica”. Como se sabe, um dos papeis precípuos da religião sempre foi o de pôr panos quentes em tal solidão. De fato, minha breve pesquisa histórica parece ter confirmado que, salvo exceções pontuais, quanto mais religião, menos importância atribuída à tese da pluralidade – e vice-versa. Disto, parece que podemos derivar algumas conclusões plausíveis: 1) a preocupação com vida extraterrestre e a religião ocupam a mesma função antropológico-existencial; 2) a tese da pluralidade visa, de maneira mais ou menos consciente, ressacralizar o mundo, nele reintroduzindo o fantástico e o misterioso; e 3) uma sociedade tecnológica e filosoficamente materialista nunca deixará de buscar companhia nas estrelas.

