“L’autoritratto della Chiesa”
As paredes dos edifícios religiosos sempre foram as telas sobre as quais a Igreja pintou seu autorretrato. Hoje, no entanto, não é óbvia a relação entre a arte, distanciada do conceito de beleza, e a espiritualidade, cada vez mais afastada do Espírito Santo. Se o presbitério é praticamente a única coisa religiosa que permanece, a possibilidade que se delineia é abrir aos artistas, não para se tornar um lugar genérico de expressão artística individual, mas o espaço de uma arte purificada por uma Igreja que seja includente.
Marko Ivan Rupnik, jesuíta, esloveno, teólogo, artista pintor e mosaicista, docente na Pontifícia Universidade Gregoriana e no Pontifício Instituto Litúrgico na pequena obra “L’autoritratto della chiesa”, 48 páginas, apresenta esse autorretrato à luz da beleza e da arte.
Da beleza se perdeu o significado e ela foi conscientemente destruída com a filosofia idealista e com o romantismo, iniciando, segundo o autor, uma deliberada operação de destruição da beleza que está radicalmente unida ao cristianismo. Não se pode destruir o cristianismo sem destruir a beleza (1).
Atualmente, não é evidente a relação entre arte e beleza. A teologia se prendeu à ética, à moral e ao bem, porém, temos uma Igreja que é boa, só faz o bem, mas não atrai nem fascina a ninguém, pois só uma Igreja bela se faz enamorar.
A melhor síntese sobre a beleza, na visão de Rupnik, foi feita por dois russos: Vladimir Solov’ëv e Pavel Florenskij. Solov’ëv sustenta que um bem que não se torna beleza é um perigo para o homem, e constatamos isso continuamente: não existe sofrimento maior quando alguém em nome de uma ideia de bem o imponha a todos. É a ditadura do bem, suprema expressão do mal. O bem que não se torna beleza se torna um fanatismo, destrói o homem, é um monstro. Em nome da verdade foram cortadas muitas cabeças, com a bandeira de ideia humanista, a época moderna assassinou milhões de pessoas.
Solov’ëv afirma que a ideia que não é capaz de encarnar-se como beleza demonstra sua impotência. A beleza é a carne do bem e da verdade, e isso é uma coisa extraordinária. O bem verdadeiro precisa se manifestar como beleza. Diz Rupnik que seu pai afirmava sempre que, se é verdade algo que alguém lhe diz, isso poderá se saber se for dito com amor e quando o disser seu coração vai experimentar uma relação bela com essa pessoa. Se quando afirmamos uma coisa, não deixamos transparecer a beleza de uma relação, o que dizemos é fruto de uma paixão, de uma ideologia, e não exprime a verdade. Para Solov’ëv, “um conteúdo ideal no qual permanece unicamente uma propriedade interior do espírito, da sua vontade e do seu pensamento, falta a beleza, e a ausência da beleza significa impotência da ideia”. Por isso, para ele, a beleza é “a encarnação em forma sensível do mesmo conteúdo ideal que antes de tal encarnação se chamava bem e verdade”.
“O bem e a verdade para realizar-se devem se tornar no sujeito uma força criadora capaz de transfigurar a realidade, e não apenas refleti-la”. Segundo Rupnik, o padre e mártir Pavel Florenskij fez aqui a melhor síntese da beleza: “a Verdade manifestada é o amor – Cristo – o amor realizado é a beleza. A beleza realizada é a manifestação da verdade como amor (2)”. A Igreja é bela porque é a comunhão das pessoas, diz Florenskij. Se não existe a beleza da relação, não existe a verdade. A verdade é o amor — Cristo — o amor realizado é a beleza . A beleza é a manifestação da verdade, mas da verdade como amor. Se é assim, a beleza é uma comunicação teúrgica, quando a verdade se revela como amor e o amor a transfigura. Quando se comunica, a beleza transfigura a realidade através da qual se comunica, por isso na verdade que o outro me diz sou transfigurado e ele também”.
A beleza é inseparável da comunicação e a única verdadeira comunicadora, pois há alguém para comunicar, Deus Pai.
A beleza aprende de Deus Pai, o artista aprende de Deus Pai. E Deus Pai se comunicou através do Filho, através de uma pessoa. Ideias não se comunicam.
Se a verdade não pode ser revelada como amor, é um ídolo. Para comunicar é preciso a pessoa. Cristo comunicou o Pai e não apenas em discursos, mas na sua carne, no seu corpo, e para isso quis o Espirito Santo, o supremo comunicador do Pai. O corpo do Cristo é uma figura, e a arte figurativa é aquela que vai até o céu, porque a carne se torna carne espiritual.
Cristo não comunicou o Pai em uma forma fixa, clássica, perfeita como a do Renascimento, nem em um niilismo expressionista violento, de denúncia, do mal e de coração partido. Cristo é o mais belo e o mais feio, tão feio que faz virar o rosto porque não se podia olhar, segundo as Escrituras (cf. Is 52:14).
No Antigo Testamento há o interdito de fazer a imagem de Deus, pois Ele reservou esse privilégio único para esculpir sua verdadeira imagem na carne do Filho. O Deus que veneramos nós o esculpimos com o nosso pecado. A maior obra de arte feita pelo homem é a Paixão de Cristo até
seu corpo ressurreto.
Se o Pai o ressuscitou da morte, poderia curar-lhe as cicatrizes, mas elas permaneceram pois por causa delas Cristo foi reconhecido após a Ressurreição. A realização do amor pelo Filho se dá no Tríduo pascal, por isso a beleza é pascal.
Rupnik não acredita que os Pais da Igreja fossem menos inteligentes que os teólogos dos últimos cinquenta anos, pois eles não se deixaram fascinar nem enganar pela forma clássica. A forma clássica não pode expressar a Pascoa, é incompatível com o amor de Deus Pai e, se um amor não é pascal, é um amor pagão. Pensar que vou amar e sem pagar pessoalmente, sem sofrer, significa ser um grande idealista pagão, porque a beleza é pascal. Por isso não se pode pensar em criar arte sem o martírio do artista e da arte. Só assim poderemos tornar a arte, a grande arte que expressa o amor e se realiza através da divino-humanidade.
Para isso vem o Espírito, o único que pode nos “enxertar” no Filho. Não se pode tornar filho de Deus sozinho, não se pode viver um amor pascal ao lado de Cristo, mas só enquanto parte d’Ele. Isso é válido também para o artista. Nesse sentido, pode-se dizer que a beleza realizando-se transfigura a própria pessoa e a vida dessa pessoa.
Se uma mãe se santifica amando, se um pai se santifica amando, um artista vai se santificar do mesmo modo. É totalmente inútil exaltar uma arte se aquele que a realizou não se está santificado.
Santificar-se significa consumar-se: isso é para Marko Rupnik a arte da vida, a arte que se torna beleza.
Notas
(1) Marko Ivan Rupnik. L’autoritratto della chiesa, arte, bellezza e spiritualità. Bologna. EDB Lampi, Centro Editoriale Dehoniano, 2015, p. 17.
(2) Cf. Marko Ivan Rupnik. Via della bellezza sapienza di vita. Museo della Basilica, Santa Maria delle Grazie, Quaderni 5. Firenze: Edizione Feeria, 2007. p. 1