Uma visão conservadora do desafio à democracia
A aceleração da globalização ao longo das últimas décadas decorrente, principalmente, das novas tecnologias, está colocando em xeque a organização política e econômica mundial e ameaçando as respectivas normas, instituições e práticas. Uma delas é a própria democracia.
Roger Scruton, no primeiro capítulo de seu livro “Uma Filosofia Política – Argumentos para o Conservadorismo” faz uma defesa enfática da nacionalidade como pilar fundamental das democracias.
Segundo ele, a democracia requer um sentimento de identidade entre os membros de uma comunidade e a nacionalidade comprovou, através de resultados, ser um sentimento forte o suficiente para prover esta coesão.
E complementa afirmando: “as democracias devem sua existência às lealdades nacionais”. Só assim governo e oposição podem coexistir em busca de soluções de conflitos políticos sem ameaçar a democracia. Scruton argumenta que onde a experiência da nacionalidade é fraca ou inexiste a democracia não consegue se enraizar.
Ele distingue patriotismo de nacionalismo, entendendo, como Maquiavel e Mill, que patriotismo significa vínculo ao povo e ao território a que se pertence, enquanto nacionalismo representa hostilidade aos estrangeiros e, como tal, a considera uma patologia da lealdade nacional.
Scruton destaca que o sentimento de pertencimento a um povo evoluiu de identidades tribais – membros de uma família; para identidades religiosas – fiéis a uma entidade religiosa; e finalmente identidades nacionais – vizinhos que falam a mesma língua, têm a mesma história e os mesmos costumes, habitam no mesmo território e reconhecem e respeitam as mesmas leis e instituições.
O uso de “nós”, primeira pessoa do plural, com o mesmo significado para todos os membros de um povo, é para Scruton o indicador de que há uma identidade nacional e um sentimento de pertencimento a uma nação.
Ele vê como ameaça à solidez das democracias os processos políticos que reduzem a soberania das nações sobre decisões que dizem respeito a aspectos que afetam a vida dentro de suas fronteiras, transferindo-as para organismos transnacionais como a EU ou ONU.
Com base neste entendimento, Scruton se opõe às propostas de governos transnacionais que, na sua opinião, ameaçariam o sentimento de lealdade deslocando-a da nação para uma entidade política artificial, supranacional, com a qual haveria pouco, ou nenhum, sentimento de identidade.
Ele entende que nos Estados modernos, materialização política das nações, as leis se tornam efetivas porque são respeitadas e adotadas pelos seus membros em decorrência do sentimento de lealdade nacional, enquanto normas decretadas por entidades transnacionais muitas vezes ficam apenas no papel, por falta do sentimento de pertencimento das populações afetadas.
Yuval Harari, por sua vez, no seu último livro “As 21 lições para o século 21”, no capítulo que trata de nacionalismo, apresenta uma série de desafios que ele chama de globais, porque não respeitam fronteiras, mas que afetam toda a humanidade.
Aquecimento global, processos migratórios, controle de fluxos financeiros, combate ao terrorismo e ao narcotráfico, e o impacto das novas tecnologias como inteligência artificial, automação e biotecnologia, são alguns dos desafios que ele descreve e que só podem ser administrados por entidades transnacionais que tenham poder de regulação, controle e capacidade política de implementação.
As novas ferramentas de comunicação e as redes sociais, por sua vez, estão diluindo lentamente as lealdades nacionais e criando uma “lealdade global”. O apoio a medidas de contenção do aquecimento global e a cooperação internacional em projetos científicos são exemplos onde o interesse global supera os interesses nacionais.
Ao longo da história, à medida que as tecnologias avançaram, houve um constante movimento em direção a maior interação e integrações de comunidades. A integração global é, ou está sendo, o passo seguinte natural.
Esta nova “lealdade global” não substitui necessariamente as lealdades nacionais, apenas estabelece instâncias hierárquicas de decisão que consideram os interesses da humanidade acima dos interesses nacionais.
Por se tratar de uma mudança complexa, e ainda no seu início de implantação, os processos democráticos e as instituições a lhes dar sustentação terão que ser, como em situações análogas, desenvolvidos, testados e aprimorados até que se tornem o novo paradigma. A ONU e diversos organismos regionais e mundiais são iniciativas nesta direção.
Penso que a melhor atitude conservadora neste contexto talvez não seja ir contra uma governança global, mas defender uma transição ordenada para a construção de uma “identidade e lealdade global” que conviva com as lealdades nacionais, sendo que estas podem ir bem além do simples apoio ao time de futebol nacional, como teme Scruton.
O fortalecimento de uma “lealdade global” pode ser, usando os pressupostos de Scruton, o pilar de sustentação de uma democracia globalizada.
Imagem: reprodução Theatrum Orbis Terrarum/Abraham Ortelius (1570)