Arte Sacra Contemporânea: Religião e História

Crucifixo e ícone na missa de 27 de março de 2020

Existe uma razão histórica muito importante na escolha do papa Francesco ao convidar duas obras de arte sacra, a Salus Populi Romani e o Crucifixo da igreja de San Marcello, a participarem da missa de 27 de março de 2020, na Piazza di San Pietro, no Vaticano. O melhor termo a ser usado é exatamente esse: “participarem da missa”.

Segundo o artista, teólogo e padre esloveno, Marko Ivan Rupnick, toda arte sacra existe a serviço da liturgia e, portanto, não há como dissociá-la do espaço litúrgico: “quando se deseja fazer realmente arte litúrgica, deve-se escavar dentro do Corpo de Cristo e recuar na história.(…) a arte, segundo Soloviov, culmina na arte litúrgica porque ela nos mostra as coisas segundo Deus, como as coisas são em Cristo, não como são dentro da minha visão por mais perfeita que seja;”1. O padre Thiago Faccini Paro, assessor do setor em espaço litúrgico da Comissão Episcopal Pastoral para Liturgia da Convenção Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, diz que “a Eucaristia é o fundamento para a criação arquitetônica e artística do espaço celebrativo”2. A pesquisadora e doutora em Ciências da Religião Wilma Steagall De Tommaso, em seu livro O Cristo Pantocrator (2017), citando um discurso do papa Pio XII a um grupo de artistas da Academia da França de Vila Médici em Roma em 19 de maio de 1948, escreve “A Arte sacra é toda a arte realizada para o culto sagrado como meio para levar os homens até Deus.”3.

Com isso entendemos que a arte sacra está distante de ser um objeto meramente decorativo no ambiente, tendo suma importância e participação ativa no espaço preparado para a celebração religiosa. A escolha do pontífice pelo crucifixo da igreja de San Marcello al Corso e do ícone Salus Populi Romani está, assim, em plena sintonia com o objetivo da celebração de 27 de março de 2020, trazendo uma real significância de fé e de ação na situação de crise de saúde que o mundo vive em decorrência da pandemia. As duas obras trazem consigo referências histórias de momentos de dificuldades e calamidades públicas, com forte conotação de superação e vitória, especialmente para o povo romano.

Salus Populi Romani, em português a Salvadora do Povo Romano, é a obra de arte de grande identificação com o gentílico local, por ser o ícone da Padroeira de Roma; ela retrata a Theotókos, a mãe de Deus, em sua forma Hodegetria, ou seja, apontando o caminho que é Jesus, que está em seu colo:

No seu típico ícone “Hodegetria”, o olhar de Maria volta-se ao povo, enquanto Jesus observa-a de relance e levanta um pouco seu braço direito em sua direção, abençoando-a. Na sua mão esquerda, ele segura um livro. Essa imagem foi copiada inúmeras vezes, especialmente durante o século dezesseis no período da Contra-Reforma ou Reforma Católica, e cópias foram enviadas aos quatro cantos do mundo.4

Segundo a Tradição, a autoria dessa obra, restaurada em janeiro deste ano, é atribuída ao evangelista Lucas, que a copiou de uma imagem acheropita (feita sem mãos de homens) de Lidda, na Palestina, pintando-a sobre a madeira de uma das mesas do mobiliário da casa de Maria, construída pelo próprio Jesus, que era marceneiro, seguindo o ofício de seu pai José.5 Atualmente, ela fica na Basílica Papal de Santa Maria Maggiore, uma das quatro de Roma, e ja foi retirada de lá, a pedido do papa Gregorius I (540-604 d.C.), no ano 590 d.C. Naquela época, a cidade de Roma sofria com uma peste, razão da morte de muitas pessoas, dentre elas o Papa Pelagius II (530-590d.C). O pontífice Gregorius, ao substituir o papa Pelagius, organizou uma procissão, dividida em sete cortejos, com a participação da população e do clero, por toda a cidade, com a imagem mariana à frente do povo e, conforme a Tradição, a peste cessou.

Durante a procissão, em apenas uma hora morreram oitenta pessoas, mas Papa Gregório não deixava de encorajar e ir adiante com fé. À medida que o cortejo se aproximava da Basílica de São Pedro, o ar tornava-se mais leve e salubre.6

O crucifixo da Igreja de San Marcello al Corso, segunda obra convidada à missa, é reconhecido pelo povo católico de Roma como milagroso. A escultura, feita em madeira, estava em sua igreja quando ocorreu um forte incêndio, em 23 de maio de 1519, mantendo-se ilesa ao fogo, tendo nos pés uma lamparina que permanecia acesa. Com isso, as pessoas se reuniam para venerar a obra levando velas para depositarem aos pés da cruz. Em 1522, uma nova peste assolou a cidade, e o crucifixo foi retirado da igreja para percorrer as ruas de Roma, em procissão que durou 16 dias, de 4 a 20 de agosto, durante os quais o povo clamava pelo fim do flagelo. Após a volta do Cristo à igreja, a peste terminou. Há uma procissão em celebração desse ato, com a trajetória do crucifixo saindo da igreja de San Marcello Al Corso e sendo levado até a Basilica de San Pietro nos Anos Santos.7

Relaciono os atos dessa busca de cura do povo romano por meio das obras de arte sacra com a serpente de bronze que Moisés levantou no deserto para curar o povo hebreu que adoecia por ataques de serpentes. Episódio está registrado no livro de Números capítulo 21. 8 e 9:

E disse o Senhor a Moisés: “Faze-te uma serpente ardente, e põe-na sobre uma haste, e será que viverá todo o que, sendo picado por ela, olhar para ela. E Moisés fez uma serpente de metal, e pô-la sobre uma haste; e sucedia que, picando alguma serpente a alguém, quando esse olhava para a serpente de metal, vivia.”

Face aos registros históricos relativos às obras escolhidas pelo papa Francesco, percebe-se o sentido que a presença desses elementos sacros trazem para a celebração ao participarem, com o papa, da eucaristia. Em momento oportuno, o pontífice dirigiu-se a cada uma das obras para venerá-las e fazer suas preces ao povo italiano e ao mundo, clamando pelo fim da pandemia de COVID-19. A força e representação de fé que essas obras carregam consigo, conforta os fiéis que, embora ausentes fisicamente da piazza de San Pietro, acompanhavam em todas as partes do globo a celebração daquela missa histórica, na qual o papa ministrou a bênção Urbi et orbi (à cidade de Roma e ao mundo), que, tradicionalmente, é apenas concedida em três ocasiões: A Páscoa, o Natal e a eleição de um novo pontífice. Considerar a importância das obras envolvidas nesse ato memorável é reconhecer que a seleção de obras de arte sacra para o espaço litúrgico se dá na preparação da celebração como se ela já estivesse acontecendo a partir dessas escolhas, pois “o que define a arte sacra é o fato dela só poder ser entendida dentro do rito, da liturgia.”8

Notas

1 – RUPNIK, Marko Ivan. A Arte como Expressão da Vida Litúrgica. 1 Ed. São Paulo: CNBB. 2019. pg.199 – 213

2 – FACCINI,Thiago Paro. em seu artigo de apresentação do Livro de Rupnik “A Arte como Expressão da Vida Litúrgica (2019) para o site da CNBB http://espacoliturgicocnbb.com.br/v1/?p=noticias&r=lerNoticia&id=37

3 – TOMMASO, Wilma Steagall. O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil, na obra de Claudio Pastro. 1 Ed. São Paulo: Paulus. 2017 – Pg.215.

4 – KOJIMA, Yoshie. Reprodução da imagem da Madonna Salus Populi Romani no Japão. Revista do Departamento de história da Universidade Federal de Pernambuco. https://periodicos.ufpe.br/revistas/cadernosdehistoriaufpe/article/view/237271/29702

5 – https://gaudiumpress.org/content/92741-o-icone-da-salus-populi-romani-foi-restaurado-cerimonia-do-traslado-sera-domingo/

6 – Gregorio de Tours no Historiae Francorum (liber X, 1) e Iacopo de Varazze, na Legenda Aurea Apud https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2020-03/arcanjo-miguel-peste-castel-santangelo.html

7 – https://pt.aleteia.org/2020/03/26/o-cristo-milagroso-visitado-pelo-papa-contra-o-virus-e-levado-a-praca-de-sao-pedro/

8 – PASTRO, Cláudio apud TOMMASO, Wilma Steagall. O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil, na obra de Claudio Pastro. 1 Ed. São Paulo: Paulus. 2017 – Pg.217.

Imagem: Vatican Media

Sobre o autor

Marcos Oliva

Formado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Nove de Julho. Pós-graduado em Cinema, Fotografia e Vídeo: Criação em Multimeios pela Anhembi Morumbi. Pesquisador do grupo Arte Sacra Contemporânea: Religião e História, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.