Estudos Agostinianos

Nada Ortodoxa: entre o Espírito e a Letra

Num domingo notoriamente enfadonho, daqueles em que o estado de espírito pode ser traduzido em “muita coisa para fazer, vontade nenhuma de realizá-las”, deparei-me com uma minissérie, após longa busca no catálogo do serviço de streaming, chamada Nada Ortodoxa (em inglês Unorthodox). Depois de certa relutância, finalmente comecei a assistir os episódios que narram a história de Esther Shapiro, apelidada de Esty, uma judia que decide fugir de sua comunidade hassídica em Nova York. Esse movimento é aquilo que o Ocidente conhece por ultraortodoxo, marcado, entre tantas outras coisas, pela rejeição da cultura ocidental moderna – inclusive, a série acentua bem as proibições de uso da internet, de aprendizado de instrumentos musicais, entre outras.

Assim como em algumas religiões, nos grupos judeus de aderência religiosa mais estrita, tal qual a comunidade de Esty, não é tão simples perceber uma clara distinção entre a prática religiosa e o indivíduo, que ele se dissolve numa comunidade. A personagem principal da série passa exatamente por essa crise: beirando os vinte anos, tendo completado um ano de casamento, não consegue gerar um filho, sente dor e desconforto forte na prática sexual, enquanto todas as suas conhecidas recém-casadas já tiveram filhos. Como ela própria se define ao seu marido, Yanky, ela é diferente! Esty sente a pressão de uma comunidade religiosa cheia de regras e decide fugir sem avisar nem mesmo sua família.

Este foi o ponto em que a série me ganhou, o que me fez permanecer longas horas afundado no sofá tentando compreender as nuances dessa história. Não se tratava de uma mulher independente que deixara de acreditar em Deus, nem de alguém que não via mais sentido para si na religião que praticava, trocando por outra, mas de uma mulher concreta que viu sua vida esvaziada dentro dos limites da religião.

A história de Esty, que é baseada numa história real, levou-me, de algum modo, ao pensador cristão, Santo Agostinho, num dos embates mais intensos de sua reflexão: a controvérsia pelagiana. Pelágio e seus seguidores entendiam que a Lei era suficiente para a redenção do homem, de tal modo que a salvação seria o resultado do esforço humano ao praticá-la.

Apoiado na tradição paulina, Agostinho argumenta em favor da correta compreensão da redenção. Para ele, a salvação não é o resultado do esforço humano em praticar a Lei e os mandamentos, mas é dom gratuito de Deus, concedido a quem Ele quiser. O homem sem Deus não tem forças nem para desejar caminhar corretamente, pois é a graça que restitui a liberdade da vontade.

Por liberdade, o bispo de Hipona não entende a possibilidade de fazer aquilo que se queira, afinal, o ser humano, ferido profundamente em seu ser, isto é, marcado pelo pecado, não faz outra coisa senão afundar-se mais em sua situação decaída. Para querer bem, o homem precisa da liberdade da vontade, que lhe é comunicada por Deus. A graça, todavia, não suprime a vontade pessoal, mas a regenera com a liberdade.

A discussão de Agostinho entre o Espírito e a Letra, então, é posta dessa maneira: sem o acompanhamento divino, o homem não é capaz nem de querer bem, quanto mais de cumprir a lei e se salvar, afinal “a Letra mata, mas o Espírito comunica a vida” (2Cor 3,6). A graça, portanto, é um dos conteúdos mais fortes do pensamento de Santo Agostinho.

Embora pareça que o Doutor da Graça esteja recusando a Lei, o que ele faz é exatamente o contrário: colocá-la no seu devido lugar. Sustenta que um rigorismo na prática da letra não pode se antepor à ação livre do espírito, pois é o espírito quem possibilita a prática da Lei. Esta ortodoxia da letra asfixia a ação do espírito, que é pneuma, ruah, sopro! Com isso, gostaria de voltar à discussão da história de Nada Ortodoxa.

Ao fugir de sua comunidade religiosa de Nova York, Esty Shapiro vai para Berlim. Lá, pela primeira vez, ela experimenta a vida tal como ela é, seja no contato com as pessoas, seja em situações simples como pedir um café. Em uma cena bem emocionante, Esty vai até um grande lago com um grupo de pessoas que acabou de conhecer. Ainda vestida com as mesmas roupas que usava na comunidade ultraortodoxa de Nova York, alguém lhe conta que na outra margem fica a vila onde os líderes nazistas planejaram o genocídio dos judeus. Esty, carregada do peso simbólico da Lei de sua comunidade, lança a pergunta: “E vocês nadam neste lago?”. E recebe como resposta que “este lago é só um lago!”. É neste contexto que ela, vagarosamente, despe-se de suas roupas típicas e pertences, respira fundo e adentra ao lago. Naquela água percebe-se o início da redenção de sua vida. Assim como no princípio, o espírito pairava sobre as águas, Esty insuflou-se dele, e no lugar da rigidez ortodoxa, que havia sufocado quem ela realmente era, abriu-se espaço para a vida!

Esse movimento de saída de uma comunidade fechada e ultraortodoxa tem ganhado visibilidade nos últimos tempos. Contudo, a série não se apresenta como uma crítica à religião, mas ao sufocamento produzido pela observância rigorosa e estrita que desconsidera a existência individual. O espírito é dinâmico, guarda o que há de essencial e molda-se às situações concretas da vida, enquanto a letra por si só é morta.

Parece que o debate entre Agostinho e Pelágio persiste até os nossos dias, obviamente não em linguagem cristã, mas o que seria o problema do narcisismo e do hedonismo senão a autossuficiência humana? Como se difere o mal-estar do homem moderno frente à sociedade de consumo do próprio sufocamento do espírito causado pela lei? Como lidar com uma sociedade nitidamente marcada pelo cansaço de viver? Será que, na era da liberdade, ainda há pouco espaço para o espírito que vivifica e muito para a Letra?

Percebi, naquela tarde de domingo, jogado no sofá de casa, que, no fundo, quando a ortodoxia, seja ela religiosa, política ou técnica, se impõe sobre a existência concreta e individual, o que há de sopro de vida em nós é sufocado. O rigorismo não leva em conta a dimensão dinâmica da vida! Em tempos como os nossos, parece que o ensinamento reto, porém impiedoso, ganha mais força para sufocar, combater o diferente, impor-se aos mais frágeis e amedrontar corações puros.

Contudo, para que o leitor não fique com a impressão de se tratar dum pessimista desalmado quem escreve esse relato, lembre-se de que há esperança. Se é verdade que o espírito vivificante resiste pela esperança, também é certo que ela não decepciona!

[1] Bacharel em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP e graduando em Teologia pela PUC-SP. Pesquisador do Núcleo de Estudos Agostinianos do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.

Imagem: Unorthodox/Netflix

Sobre o autor

Cauê Ribeiro Fogaça

Cauê Ribeiro Fogaça é graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP/2021) e em Filosofia pela Faculdade de São Bento de São Paulo (2017). É presbítero católico da Diocese de Santo André/SP. Pesquisador do Núcleo de Estudos Agostinianos do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ. Está entre os organizadores e tradutores da obra Santo Agostinho: o pensador da graça, de Anthony Dupont (É Realizações, prelo). Tem particular interesse na grande área de antropologia filosófica e teológica, e seus desdobramentos.