Estudos Agostinianos

IN-VOCARE

Nas primeiras páginas da obra Confissões, Agostinho de Hipona sublinha que Deus, pela sua grandiosa potência e sabedoria, é infinitamente digno de louvor. O homem, fragmentozinho da criação, deseja realizar uma saudosa homenagem ao Criador, todavia, limitado diante de grandiosa tarefa, “anda em círculos carregando a prova de seu pecado”,[1] a sua própria mortalidade. Poderia um ser tão frágil, infinitamente distante daquele que criou o céu e a terra, voltar-se para Deus a fim de exprimir um canto de louvor?

Para o filósofo, o panegírico à divindade não só é possível, mas é uma necessidade. “Tu o incitas, para que goste de te louvar, porque o fizeste rumo a ti e nosso coração é inquieto, até repousar em ti”.[2] Pelo deleite, Deus instiga a criatura a louvar seu criador, não para que o próprio Deus se gabe das justíssimas palavras que Lhe cabem, mas para que a própria criatura encontre o repouso que anseia o seu coração acelerado, inconstante e inquieto.

Se convém louvar, então é necessário fazê-lo com medida e proporção. Essa preocupação leva o hiponense a analisar cada passo que antecede o louvor. Para louvá-Lo, certamente devo invocá-Lo. Como invocá-Lo sem conhecê-Lo? Mas invocá-Lo não seria uma forma de conhecer a Deus? Por um lado, se ignoro aquilo que invoco, corro o risco de invocar outra coisa. Todavia, se não posso invocar aquilo que não conheço, ao menos posso invocar aquilo em que acredito. “Que eu te procure, Senhor, invocando-te, e te invoque, acreditando em ti”.[3] Assim, o fiel louvará a Deus, pois louvá-Lo é procurá-Lo: e todo aquele que O procura é inspirado, pela fé, a invocar a Deus. Então, se é certo que o fiel deve invocá-Lo, como realizar essa tarefa?

Em primeiro lugar, é justo indagar: o que é invocar? O termo latino aponta para in-voco, ou in-vocare, ou seja, chamar para dentro. Quando in-voco a Deus, chamo-o para dentro de mim. Mas existe em mim, indaga Agostinho, algum lugar para Deus ocupar? Se Ele preenche todos os lugares, então já ocupa um lugar no interior do homem. Se não estivesse em nós, não haveria nenhum interior, nem mesmo haveria um homem. “Por que te invoco, se estou em ti?” [4] Se o homem está em Deus, já que Ele está em todo lugar, então há algum sentido em invocá-Lo?

Eis o enigma que trespassa o coração daquele que deseja invocar a Deus. As Confissões revelam a infinita desproporção entre Deus e aquele que deseja invocá-Lo. “O que és tu para mim? Tem piedade, para que eu fale”.[5]

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Post scriptum β: Em 2019, o Núcleo de Estudos Agostinianos estudou as obras A predestinação dos santos e O dom da perseverança. No ano de 2020, investigaremos uma das obras mais belas do bispo de Hipona: Confissões. O Núcleo acontece duas vezes ao mês, às segundas-feiras, das 15hs às 17hs.

Notas

[1] AGOSTINHO. Confissões, I, 1.

[2] AGOSTINHO. Confissões, I, 1.

[3] AGOSTINHO. Confissões, I, 1.

[4] AGOSTINHO. Confissões, I, 2.

[5] AGOSTINHO. Confissões, I, 5.

Sobre o autor

Andrei Venturini Martins

Doutor em Filosofia, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), membro da Associação Brasileira de Filosofia da Religião e coordenador do Núcleo de Estudos Agostinianos do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.