Estudos Agostinianos

Diálogo sobre a felicidade

Na contemporaneidade a felicidade tem sido estudada e buscada por diversos meios. Entretanto, ao que indica o Informe Global sobre a felicidade, as pessoas se veem como menos felizes. Nas palavras do professor Christian Dunker “O balanço da década confirma uma tendência da qual já se suspeitava. A curva da felicidade sobe consistentemente entre 1991 e 2011 para cair de forma contínua e gradual, a partir de 2012 até 2019”[1] .Sob a ótica da filosofia, diversos autores já debateram esse tema.

O livro Fundamentos de Filosofia, de Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes, utilizado no Ensino Médio, traz a felicidade como primeira temática, pois “A relação é histórica […],sabedoria, para os gregos, não era apenas um grande saber teórico, mas principalmente prático, tendo em vista que buscava atender ao que consideravam o objetivo supremo da vida humana; a felicidade.”[2] Iniciar a caminhada filosófica com a busca pela felicidade é um ótimo caminho para inspirar a juventude.

O questionamento sobre como ser feliz perpassa a humanidade, e na filosofia existem olhares diferentes sobre o como e por que ser feliz. Agostinho, nas Confissões, apresenta uma felicidade que tem como base a esperança da Vida Eterna. Nietzsche, em O Anticristo, diz que ela só é vivenciada ao se desprezar o além-mundo. Vejamos, de maneira breve, como os dois antagônicos autores demonstram suas ideias.

Santo Agostinho, em suas Confissões, revelou que, durante a trajetória de sua vida, só encontrou a verdadeira felicidade em um relacionamento com o Senhor. “A felicidade é uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que te servem por puro amor: tu és essa alegria! Alegrar-se de ti, em ti e por ti: isso é felicidade.”[3] Buscou demonstrar o seu percurso apresentando os episódios que depunham contra ele, e como a graça de Deus o conduziu ao perdão e a vida. O Bispo de Hipona não nega a existência doutras formas de alegria, “há diversos modos de ser feliz”[4], e ele mesmo já as tinha vivenciado com o roubo das peras[5]. Não obstante, ele entende que esse tipo de felicidade, baseado no erro, é inferior e acaba por gerar tristezas ao afastá-lo da verdade. Defende que, enquanto não há confissão, isto é, a admissão diante de Deus da condição do pecado, não existe possibilidade de ser feliz, “Será, portanto, feliz quando, livre de perturbações, se alegrar somente na Verdade”[6].

No entanto, aquilo que em Agostinho era felicidade, em Friedrich Nietzsche é tristeza. O filósofo se coloca em oposição a tudo que é relativo ao cristianismo e, logo no início de seu livro, declara: “O que é mau? – Tudo o que brota da fraqueza. O que é a felicidade? – o sentimento de que o poder aumenta – de que a resistência é superada…”. E prossegue enunciando “O que é mais nocivo que qualquer vício? – A compaixão quando praticada em nome dos malogrados e dos fracos – o cristianismo…”[7]. Ao afirmar que a felicidade é o oposto da fraqueza, e que a compaixão em favor dos fracos é a marca mais nociva do cristianismo, traça uma diferença irreconciliável com Agostinho[8]. Nietzsche procura mostrar que o cristianismo era responsável por tudo o que se opunha a felicidade: “É cristão todo o ódio contra o espírito, contra o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem do espírito: cristão é todo ódio contra os sentidos, contra a alegria dos sentidos, contra a alegria em geral…”[9]. E ainda acusa a doutrina cristã de, por meio do conceito de queda e redenção, criar pessoas fracas: “Quando, por exemplo, um homem sente alguma felicidade por se achar redimido do pecado, não é necessário que seja um pecador, realmente, mas é necessário apenas que se sinta um pecador”[10].

Para o filósofo, não existe uma vida além-morte, logo, Deus, pecado e consequentemente a redenção perdem a razão de ser, “Quando se coloca o centro de gravidade da vida, não na própria vida, mas no “além” – no nada – na verdade se retirou da vida o seu centro de gravidade”. Essa mudança de centro de gravidade demonstra que, para Nietzsche, a vida tem valor por si só e, portanto, o homem é livre para buscar a felicidade, não necessitando de nada além de si. “Viver de maneira que a vida não tenha mais qualquer sentido é esse agora o “sentido” da vida”[11].

Dialogar com um autor de Tagaste do século V e um Prussiano do século XIX, a respeito de um tema tão atual, simples e complexo, é, ao mesmo tempo, algo recompensador e desafiante. Os dois autores buscam a felicidade, apesar das discordâncias existentes. Agostinho declara “Quando te procuro, meu Deus, estou à procura da felicidade.”[12] Enquanto a felicidade de Nietzsche é niilista, uma vez que, não havendo o porvir, a vida ganha sentido na falta de sentido. Assim, diante do ponto de vista desses dois gigantes da filosofia, podemos nos perguntar sobre as perspectivas e suas implicações:

A vida sem sentido e esvaziada da misericórdia, não seria mesquinha? E, se for mesquinha, o que importa? A felicidade nietzschiana contribuiria para uma sociedade melhor?

A felicidade ancorada na fé não proporcionaria uma paz interior? Ou essa paz interior, seria apenas uma muleta, ou seja, uma mentira para aplacar as tristezas da vida?

Vivemos em um período de crise (já houve algum que não fosse?), e em meio à crise surgem dúvidas e nossas certezas são derrubadas. Eu concordo com Agostinho, procuro uma felicidade no Divino e me entendo como pecador, entretanto, mesmo com minha fé “Eu creio, mas tenho dúvidas[13]”.

Obviamente o tema não se esgota, e nem é o objetivo esgotá-lo, mas a certeza de que o fim último da vida humana é a felicidade permanece.

[1] DUNKER, C. I. L. Tecnologias da Felicidade (1): O que estar conectado revela sobre ser feliz, 2020 Disponível em: <https://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/01/03/tecnologias-da-felicidade-1-o-que-estar-conectado-revela-sobre-ser-feliz/&gt;. Acesso em: 15 mar. 2020

[2] COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Editora Saraiva, 2017 p18

[3] AGOSTINHO. Confissões. 1 reimp. São Paulo: Editora Martin Claret. 2008 p.232

[4] Ibid. p 233

[5] Ibid. p 55

[6] Ibid. p 233

[7] NIETZSCHE, F. O Anticristo. 6 reimp. São Paulo: Editora Martin Claret. 2018 p 24

[8] Nietzsche, ao comentar sobre o fim do mundo antigo, que ele atribui ao cristianismo, cita “É preciso ler apenas um dos agitadores cristãos, Santo Agostinho, por exemplo, para entender, para sentir o cheiro imundo da gente que chegou ao poder.” (NIETZSCHE, 2018, p 108).

[9] Ibid. p 45

[10] Ibid. p 47

[11] Ibid. p 74

[12] Op. Cit p 229

[13] GONDIM, Ricardo. Eu Creio, Mas Tenho dúvidas: A Graça de Deus e Nossas Frágeis Certezas. Editora Viçosa. Minas Gerais. 2007

Sobre o autor

Bruno Garbim de Medeiros

Bacharel em Teologia pela Faceten – Faculdade de Ciências, Educação e Teologia do Norte do Brasil, Licenciado em História pelo Centro Universitário Sumaré, Pós-graduando em Filosofia e Ensino de Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano e pesquisador do Núcleo de Estudos Agostinianos do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.