Estudos Sobre Morte e Pós-morte

A mão da contingência e os estudos sobre morte e pós-morte

Este texto é dedicado ao nosso grupo de pesquisa, composto (coincidentemente) só por mulheres. Diversas formações acadêmicas, diversas vivências, mas com objetivos claros e únicos. Obrigada pelo compartilhamento, pela confiança e pelas contribuições. Seguiremos juntas. – Andréa Kogan e Maria Cristina Mariante Guarnieri

O nosso grupo de morte e pós-morte começou no início do corrente ano com um objetivo de ter uma visão ampla sobre como vemos a morte no mundo contemporâneo (por vieses psicológicos, filosóficos, históricos, etc.), além dos momentos pós-morte (em relação aos vivos – “como sobreviver?”, rituais de luto e afins; e em relação aos mortos – visões de diferentes religiões sobre o que acontece depois da morte – “a alma sobrevive?”, etc.). Enfatizamos nas nossas discussões o que havíamos pensado no final de 2019 (como consta na descrição do grupo de pesquisa): “Todo mortal vive a angústia da morte. Por mais que tenhamos certeza dela, ou mesmo que possamos construir elaborações sobre o além-morte que facilitam nosso enfrentamento do que com certeza nos cabe como destino, a realidade continua sendo o nosso diálogo com o desconhecido. Nossa razão tenta entender o que não possui representação na linguagem, nossa razão tenta escolher quais das representações do pós-morte melhor nos convêm – de acordo com religião, filosofia, experiências, etc.”

A bibliografia que temos hoje é extensa, algumas obras foram selecionadas para discussão e outros tópicos de análise foram levantados no grupo, ao longo dos meses de fevereiro, março, abril, maio e junho. Afinal, esse é um grupo que procura pesquisar um tema sobre o qual nada sabemos – apesar de ser a única certeza da vida – e que para isso reúne como material de pesquisa toda a diversidade de narrativas em relação ao assunto. Mas cada uma dessas narrativas traz uma imagem de morte que revela a atitude humana diante dela, tema, aliás, da grande pesquisa do historiador Philipe Àries.

No mundo contemporâneo, a atitude mais comum é a de negação da morte. Uma morte que se esconde, que não pertence mais à pessoa, que é cada vez mais protagonista de uma batalha rica em recursos tecnológicos e de uma demanda de imortalidade que poucos admitem buscar. Sabemos que somos mortais, mas a finitude está no inconsciente e tudo fazemos para mantê-la ali, o que resulta em uma pobreza de recursos para o enfrentamento da morte, da perda, do sofrimento e da dor. Esta “negação da morte” é conhecida desde sempre, pois trata-se de um mecanismo de sobrevivência instintiva em cada um de nós. Ernest Becker (1976) chamará isto de mentira vital, isto é, criamos ilusões que buscam apenas manter a negação da morte. É impossível viver sem uma ilusão, mas ele questiona em seu livro a qualidade dessas ilusões, pois algumas promovem uma expansão da consciência e outras apenas servem como refúgio para os nossos medos.

Muitas pesquisas já revelavam que tal negação impunha, na contemporaneidade, um enorme silêncio ao redor da morte. Tudo é feito para que nos mantenhamos afastados deste que é considerado o terrível momento. As crianças são poupadas e distanciadas do fato, os velórios devem ser curtos, as missas são cada vez mais raras (nem como resposta social), os enterros são evitados e a morte ocorre oculta dentro de um hospital ou de uma instituição de saúde, que julgamos estar mais preparada para enfrentar a situação. O evento do morrer deve ser o mais discreto possível, o luto deve ser breve e o tema deve e pode ser evitado. Estudar e pesquisar sobre a morte e o pós-morte inspira curiosidade e rejeição. O que não poderíamos imaginar é que nosso tema tomaria um lugar central neste primeiro semestre de 2020. Não poderíamos imaginar que o assunto que propusemos em 2019 fosse um dos assuntos mais debatidos (e temerosos) no ano de 2020. Sabemos pelas pesquisas que a morte que se torna pública é mais comentada, pois é a morte do outro, do desconhecido que está longe demais para ser próxima e revelar a nossa impotência em relação à nossa condição. Mas a morte como estamos vivenciando nessa pandemia chega muito perto e em grande número, e se torna novamente a protagonista indesejada de nossos encontros, rompendo o silêncio e causando um ruído estrondoso justamente por nos entregar aquilo que entendíamos como ideal: a morte nos hospitais, o enterro sem velório, sem ritos, sem a comunidade presente.

Diante da morte, estamos desarmados, mas nossa tentativa de falar sobre ela nos leva a conhecer muito sobre a condição humana. Portanto, a pesquisa desse semestre pretendia deixar que os temas emergissem a partir do conhecimento de cada integrante, para que pudéssemos ter uma ideia do grupo e, dessa forma, conseguirmos estabelecer uma base comum para o seu desenvolvimento.

Começamos as discussões presenciais, no início do ano, afirmando o quanto algumas pessoas não se sentem confortáveis para falar sobre a morte. O quanto evitam falar, pois sentem como se “doença e morte fossem contagiosas”. Pois bem. Seguimos e cá estamos. A doença (mesmo que uma só) é discutida em todos os momentos e, por consequência e por medo, a morte também. Entre Kierkegaard, Walter Hugo Mãe, Becker, narrativas judaica, cristã e espírita, mais uma bela provocação do diálogo sobre o tempo de Luís Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura com Arthur Dapieve, nossos encontros trouxeram reflexões que, por vezes, poderiam ser mais distantes, porém a vivência de isolamento durante a pandemia tomou um lugar ao lado de todos – no mundo real e nas discussões acadêmicas. Histórias de morte e de luto foram incorporadas ao nosso debate e aos encontros via zoom. Tudo fez mais sentido, tudo ficou mais concreto. A morte não foi vista somente como algo a ser estudado, mas vivenciado, discutido e elaborado.

As milhares de mortes se tornam valores absolutos em relação ao cotidiano. O medo da morte mais ainda. De acordo com Kierkegaard “um falecido é um homem forte, ainda que não percebamos isto nele, ele tem a força da inalterabilidade”. A nossa relação com aquele que foi embora, que morreu, que sucumbiu à doença permanece com as mesmas reações neste 2020 pandêmico. Não há “menor” ou “maior” tristeza no meio da pandemia e do confinamento. O sofrimento não se mede. A morte de um ser próximo traz o mesmo sentimento de luto e de tudo que vem a partir dele tanto em 2020 quanto foi em 1950, por exemplo. Não importa o período no qual estamos vivendo. É isso que torna a pandemia um objeto de estudo, uma vez que nossa experiência de perda não pode ser ritualizada e compartilhada devido aos protocolos de saúde, mas há uma tentativa coletiva de dar conta de tudo que estamos perdendo individualmente, como nação, como seres humanos.

De acordo com a escritora Edwidge Danticat, em seu livro “The art of death”, de 2017, “Talvez a maneira que a morte se coloca dentro dos espaços mais privados nos estimula a subestimar o peso esmagador de tal perda devastadora. Talvez rotinas ininterruptas e o fluxo diário da vida nos forcem a esquecer que perder um ente querido é absolutamente confuso, excruciante e às vezes, insuportável.” Nos tempos em que vivemos, a morte não entra mais no “fluxo diário da vida” com seus rituais e cotidianos normais. Além da dor em si, ela entra no tempo indefinido, em um momento de “novo normal” (termo comumente usado, mas não necessariamente entendido ou aceito).

O fluxo cotidiano citado pela autora já não existe mais (como podemos pensar em fluxos cotidianos na vivência da morte e do luto neste momento?) e nem nós, talvez, sejamos mais os mesmos. Mas e o que esperar? Como serão os novos tempos? Como ficará a dor que não pode ser compartilhada? Como será o luto que não foi ritualizado? Como será a morte que não foi pranteada? Com ficará a palavra que não pode ser dita?

A reflexão continuará não somente por ser relevante se quisermos entender o presente, mas também para entendermos o quanto é necessário lidar e estudar o assunto. A reflexão continuará porque entendemos que diante da morte estamos vivos.

Imagem: Death in the sickroom – Edvard Munch (1893)


Sobre o autor

Andréa Kogan

Formada em Letras, doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP, autora do livro “Espiritismo Judaico”, assistente acadêmica do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ, onde também é coordenadora do grupo de pesquisa sobre Morte e Pós-Morte e pesquisadora do grupo de Judaísmo Contemporâneo.

Sobre o autor

Maria Cristina M. Guarnieri

Psicóloga, Mestre e Doutora em Ciências da Religião (PUC-SP), docente do IJEP (Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa), Autora dos livros “Do fim ao começo: falando de morte e luto para adolescente” (Editora Paulinas) e “Angústia e Conhecimento: uma reflexão a partir dos pensadores religiosos” (Editora Reflexão). Coordena os grupos: Jung e a Filosofia da Religião e Morte e Pós-Morte do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.