O ano de 2020 tem sido de caos – sanitário, social, econômico e político – com a pandemia de COVID-19, a queda em grandes economias devido ao isolamento social, e, especialmente no Brasil, a crise política em diversas áreas do governo. Desde as manifestações de 2013, o discurso polarizado já vinha crescendo no país, principalmente na internet (ORTELLADO; RIBEIRO, 2018). Contudo, após as eleições de 2018, a polarização política ficou ainda mais evidente e, em 2020, cada novo acontecimento tem sido politizado e usado como instrumento para angariar apoio político, com discursos recheados de cientificismos, arrogando-se uma segurança absoluta. Isso pode estar refletindo um extremismo ideológico cada vez mais marcante no jogo político nacional, que Michael Oakeshott, filósofo e teórico político inglês, caracteriza como de caráter Racionalista. Isto posto, a questão que surge é: seria possível que um tipo de mentalidade racionalista, cada vez mais comum na contemporaneidade, seja reflexo da imaturidade da nossa sociedade?
Para Oakeshott (1962), o Racionalismo, apesar de não ser a única, é a moda intelectual mais notável da Europa pós-renascentista, consistindo em uma maneira de pensar sobre as ideias políticas e as linhas partidárias, espalhando-se pelo Ocidente. O Racionalista é aquele que, livre de qualquer outra autoridade, tem como norte unicamente a Razão, sendo cético em relação ao conhecimento prático, porque considera que não há hábito, tradição ou crença tão firmemente enraizado que não possa ser questionado pelo que chama de “razão”. O autor faz uma diferenciação conceitual entre conhecimento prático e conhecimento técnico para explicar o Racionalismo. O primeiro existe a partir da experiência, é envolvido no domínio de toda habilidade, não podendo ser ensinado e aprendido, apenas transmitido e adquirido, através do contato contínuo com alguém que está constantemente praticando. O último se refere àquele que pode ser traduzido em regras, fórmulas, equações, podendo ser organizado de forma estruturada. Oakeshott não desconsidera a técnica, defendendo unicamente a experiência, mas aponta que o Racionalista parte do pressuposto de que a técnica é superior à tradição, ao hábito, à experiência. O Racionalismo torna inseparável o conhecimento técnico da certeza e, por considerá-lo autossuficiente, defender a soberania da técnica significa defender a soberania da Razão.
Aonde isso nos leva? A conceitos abstratos cada vez mais comuns nos discursos políticos, que fazem sentido somente à custa da realidade concreta. Na política, o Racionalismo não percebe as diferenças existentes entre uma ideia “no papel” e o resultado na realidade. O conhecimento técnico é percebido como autocompleto e autossuficiente. Exemplos disso são os discursos correntes desde 11 de março de 2020, dia em que a OMS declarou a pandemia de COVID-19. Por um lado, políticos afirmando categoricamente que a medida mais eficaz no controle do vírus seria o distanciamento e, eventualmente, o isolamento social, para evitar o colapso do sistema de saúde. Em muitos países, inclusive em alguns estados do Brasil, a medida foi colocada em prática sem nenhuma organização e sem planos de retorno ou contingenciamento para aqueles que seriam afetados economicamente. Em contrapartida, outros políticos argumentaram firmemente contra a medida isolacionista, dizendo que causaria uma catástrofe econômica geradora de mais mortes do que o vírus em si. Mas há uma forma equilibrada de reagir aos riscos e às incertezas de uma pandemia? Segundo Furedi (2020), escritor e professor de sociologia de uma universidade do Reino Unido, a maneira como uma comunidade responde a uma ameaça está relacionada com a percepção existente sobre essa ameaça e com a capacidade de dar sentido a ela, além de envolver também o senso de segurança existencial daquele grupo.
A pandemia, e todas as mudanças no estilo de vida que ela nos trouxe, evidenciaram os extremos vividos em vários aspectos. Os conflitos preexistentes se intensificaram, e cada novidade – sobre o vírus, sobre tratamentos, sobre os impactos experienciados – é passível de ser polarizada e usada como pretexto para sustentar ao máximo antigas posições políticas. Toda medida está sujeita a ser politizada: desde “fique em casa” até “a economia não pode parar”; “isolamento horizontal” versus “isolamento vertical”; “cloroquina salva” versus “cloroquina mata” – e sem se importar de fato com as estatísticas ou número de mortes, um sentimento de divisão cultural se avulta. Isso interfere na reação da sociedade frente à pandemia, já que, de acordo com Furedi (2020), as questões culturais comunicam regras implícitas sobre como as pessoas devem reagir diante de um perigo, influenciando a sua percepção sobre a própria vulnerabilidade e sobre sua capacidade de resiliência. O roteiro cultural pode funcionar como um par de óculos através dos quais as pessoas visualizam e interpretam um desastre, como uma pandemia viral. No Brasil, a polarização política está tão profundamente arraigada que dificulta a criação de um sentimento de unidade genuína diante de um inimigo comum, evidenciando a imaturidade da nossa sociedade.
Winnicott (1950), psicanalista inglês e estudioso do desenvolvimento humano, apresenta que a democracia pode ser estudada do ponto de vista psicológico. Os ambientes sociais saudáveis são caracterizados por traços similares aos dos cuidados maternos suficientemente bons (tão importantes para o amadurecimento humano), como a estabilidade, a previsibilidade e a adaptação ativa, combinados com o respeito pelos impulsos criativos dos cuidados. Para manter a estabilidade da máquina democrática e a efetivação de suas regras, uma sociedade madura e sadia não impede que os indivíduos façam escolhas pessoais ou que pensem livremente, permitindo que atuem com liberdade nas diferentes áreas da vida comum. Dessa forma, a liberdade desses indivíduos tem como base a responsabilidade de contribuir para a sociedade de um modo completo e de lidar com os conflitos, tanto externos como internos, sem o alívio de justificar suas atitudes em determinada autoridade ou ideia que o poupe da tirania de uma consciência.
Em contrapartida, Furedi (2020) aponta que a linguagem pública da sociedade atual tem sofrido uma perda intencional de visão da realidade, e os significados clássicos das palavras têm se perdido, dificultando que as questões sejam discutidas entre os indivíduos dos grupos sociais a partir de um ponto de referência comum na realidade externa. Partimos do pressuposto de que a ideologia é inerente à política, o que não é de todo ruim. No entanto, para Oakeshott, enquanto a política é posterior aos fatos, a ideologia seria justamente um conjunto de ideias que quer antecipar a ação e pretende moldar a realidade a priori, colocando-se acima da realidade objetiva e tentando apontar como se deve agir no âmbito concreto da política, desconsiderando a história e as circunstâncias em que a ação política efetivamente acontece. Na prática, antes da pandemia do novo coronavírus, os extremismos ideológicos já vinham sobressaindo em diversas situações e discussões. Segundo uma pesquisa da IPSOS (2018), realizada em 2018 em 27 países, a principal causa de tensão entre as pessoas do mundo, atualmente, é a divergência de opinião política. Em termos nacionais, 44% dos 20 mil entrevistados escolheram as diferenças de opiniões políticas como principal motivo de tensão nas relações entre as pessoas, com 62% dos entrevistados afirmando que a sensação de divisão ideológica no país é maior.
Assim, os extremismos ideológicos se colocam em uma posição fechada ao diálogo, demonstrando que não há um confronto de ideias, mas imposições, que afastam e discriminam os indivíduos, fracassando na aplicação de mudanças significativas para a sociedade, aumentando a polarização e o esvaziamento do debate – o que facilita e mantém, a sensação de um mundo binário, em que os padrões acabam sendo repetidos e o protagonismo individual é deixado de lado, dando lugar a falas massificadas. Caso nos deixemos levar unicamente pelas correntes ideológicas vigentes, corremos o sério risco de nos tornarmos partidários de extremos, levando às últimas consequências uma causa política, um movimento ou uma agenda de interesses agrupados (UNAMUNO, 2017). Isso é contrário ao que Winnicott (1940) apresenta como democracia, que seria o exercício da liberdade e a capacidade dos indivíduos de tolerar opiniões opostas, com um possível debate envolvendo desgaste e dor, mas necessário para o bom funcionamento social.
Esse bom funcionamento da sociedade avança conforme o desenvolvimento pessoal de seus membros, ou seja, envolve questões relacionadas a maturidade, incluindo o desenvolvimento moral, que é baseado no cuidado ambiental em relação às necessidades. É importante ressaltar que, ao explicar o desenvolvimento humano, Winnicott não desconsidera as técnicas envolvidas nos cuidados do indivíduo, mas é enfático ao apontar que o amadurecimento só ocorre através de experiências práticas – o que o autor chama de experiências criativas – buscando estabelecer, manter e enriquecer os relacionamentos com seus mundos ambientais. Essa junção entre técnica e prática forma um ambiente suficientemente bom, fundamental no processo maturacional do sujeito, e cria, então, a possibilidade de se desenvolver alguém que contribui com a sociedade de modo responsável, com diálogos e construções proveitosas que, consequentemente, auxiliam na manutenção da democracia.
A perspectiva estritamente técnica das discussões atuais, principalmente em relação às medidas de contingenciamento contra a pandemia, evidencia o caráter Racionalista presente na contemporaneidade, em que algumas pessoas tendem a seguir rigorosamente os conselhos oferecidos por especialistas, enquanto outras depositam plena confiança em autoridades políticas em busca de orientação e liderança. Essa conjectura acontece sem que as pessoas percebam que o conhecimento técnico, postulado como único, está inserido na prática humana, inerentemente imprevisível, que envolve um conhecimento muito mais amplo: o conjunto de todas as experiências acumuladas ao longo da história. Não existe técnica desconectada da prática, sendo ambas fundamentais na atividade humana, especialmente quando se trata de política.
A pandemia de COVID-19 nos traz um grande desafio: amadurecer como indivíduos e como sociedade, permitindo discussões e construções satisfatórias, tolerantes a posições divergentes inerentes ao sistema democrático, sem desconsiderar a importância da experiência humana e da racionalidade cientifica, econômica e política. Assim como o coronavírus é um inimigo invisível e um dos maiores obstáculos a serem ultrapassados na história recente, Oakeshott aponta o Racionalismo como uma doença, cujo sintoma é a incapacidade de enxergar e considerar a própria realidade. Talvez uma metáfora que se aproxime do que o autor consideraria um equilíbrio seria a do estivador:
Aquele que tem a habilidade de manter o navio em estado de equilíbrio. […] Procura moderar o conflito, pois a necessidade de mudança pode ser admitida sem o estímulo de expectativas ilusórias. […] Está preocupado em evitar que a política rume aos extremos […]. Poderá ser visto lidando em qualquer direção que a ocasião exija para que o barco possa prosseguir (OAKESHOTT, 2018, p. 22).
Referências
FUREDI, Frank. Are we allowed to call them riots? Spiked online, jun, 2020. Disponível em: <https://www.spiked-online.com/2020/06/02/are-we-allowed-to-call-them-riots//>.
IPSOS MORI SOCIAL RESEARCH INSTITUTE. A world divided? 2018. Disponível em: < https://www.ipsos.com/pt-br/mundo-dividido>. Acesso em: 05 jun. 2020.
OAKESHOTT, Michael. A política da fé e a política do ceticismo. Tradução de Daniel Lena Marchiori Neto. 1 ed, São Paulo: É realizações, 2018.
OAKESHOTT, Michael. Rationalism in politics. 1 ed, London, 1962.
ORTELLADO, Pablo; RIBEIRO, Marcio Moretto. Gráficos mostram polarização política nas redes sociais no Brasil. Revista Galileu. 10 ago. 2018. Disponível em: < https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2018/08/graficos-mostram-polarizacao-politica-nas-redes-sociais-no-brasil.html>. Acesso em: 05 jun. 2020.
UNAMUNO, M. D. A agonia do cristianismo. Tradução de Alexandre Müller Ribeiro. 1.ed. Curitiba, PR: Livraria Danúbio Editora, 2017.
WINNICOTT, D. W. (1940) Discussão dos objetivos da guerra. In: Tudo começa em casa. Tradução de Paulo Sandler. 3 ed., cap. 21, p. 215-227. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
WINNICOTT, D. W. (1950) Algumas reflexões sobre o significado da palavra “democracia”. In: Tudo começa em casa. Tradução de Paulo Sandler. 3 ed., cap. 24, p. 249-271. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
WINNICOTT, D. W. (1957) A contribuição da mãe para a sociedade. In: Tudo começa em casa. Tradução de Paulo Sandler. 3 ed., cap. 12, p. 117-122. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
WINNICOTT, D. W. (1969) A liberdade. In: Tudo começa em casa. Tradução de Paulo Sandler. 3 ed., cap. 23, p. 237-247. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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