Nossos dias carecem de heróis, o que nos obriga a olhar para o passado em busca de inspiração para dias difíceis. O herói, contudo, nem sempre é bem visto em sua época, e é a História que se encarrega, anos mais tarde, de trazer justiça ao legado de homens e mulheres perseguidos por seus ideais e criticados de alguma maneira.
Cada um em seu tempo, os filósofos e escritores argelinos Aurelius Augustinus (ou Santo Agostinho) e Albert Camus são dois exemplos de coragem, pois viveram em períodos em que era exigido dos intelectuais a adesão cega a visões de mundo que, sabiam eles, eram fadadas ao fracasso, quando não à injustiça. Foram fiéis ao que acreditavam ser a forma correta de pensar e agir, a despeito da impopularidade entre seus contemporâneos.
Semelhanças
É possível falar em semelhanças entre Agostinho e Camus, porque de fato existem, a despeito dos 1.600 anos que os separam. Ambos eram argelinos, e foram marcados pela mãe. A tese de mestrado de Camus foi sobre Agostinho e o neoplatonismo. E há um livro[1], bastante controverso, em que um pastor norte-americano diz ter tido encontros com Camus, e que este apresentou genuíno desejo de ser batizado.
No entanto, há outra semelhança entre as vidas desses dois grandes homens: tanto Agostinho quanto Camus assistiram “invasões bárbaras” sobre a civilização. Agostinho, um romano lato sensu, viu os vândalos cercarem Hipona, na África, depois de a própria Roma já ter sido invadida por Alarico. Camus viveu os anos da 2ª Guerra Mundial, assistindo o terror nazista e a reconfiguração do mundo após o conflito. Acompanhemos brevemente a posição de cada um desses filósofos diante da “peste”, ressaltando a sintonia possível no pensamento que ambos ofereceram aos homens em tempos sombrios
Agostinho
Na obra Cartas ao amigo alemão[2], Camus afirma que amava muito o seu país para ser nacionalista. Talvez Agostinho pudesse dizer o mesmo. Filho de uma tradição intelectual latina, era produto do Império Romano, um descendente ilustre. Teve uma trajetória intelectual errática até encontrar, na fé cristã, uma resposta para suas ansiedades e dúvidas. Mas na sua Cidade de Deus, Agostinho demonstra um apreço muito maior por uma comunidade que não era circunscrita aos limites imperais, geográficos, mas, sim, era universal: a Igreja, o conjunto de homens verdadeiramente livres.
Essa comunidade deveria, o tanto quanto possível, viver pautada pelos maiores mandamentos do cristianismo: amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmos. Embora o primeiro mandamento seja ontologicamente superior, sua comprovação se dava na prática do segundo (ecoando as palavras de São João em sua epístola: “quem diz que ama a Deus, mas odeia o seu semelhante, é mentiroso”[3]). Os cristãos deveriam amar os romanos, mesmo os pagãos, e agora, por mais absurdo que parecesse, deveriam amar também os invasores bárbaros. Por esse motivo, o cristianismo foi criticado, acusado de ser o pivô da queda de Roma: em lugar da supremacia do poder e da força romanas, o Império se via influenciado por pregações a respeito do amor ao inimigo, da paz, etc[4].
Possídio[5], o amigo e primeiro biógrafo de Agostinho, registra palavras marcantes do Bispo de Hipona. Os líderes da Igreja pediram a Agostinho orientações sobre como agir diante da violência dos invasores. Em resposta, Agostinho orienta aos bispos que permaneçam com as pessoas de sua congregação, que os apoiem durante a fase aguda da guerra, os consolem, e que continuem a observar os valores pelos quais pautavam as suas vidas. Sustenta que aquilo que os fazia diferentes, “cidadãos dos céus”, eram exatamente as virtudes cristãs com as quais viviam, e pelas quais também morreriam. Eram os valores impopulares que os tornavam mais humanos, justamente por serem criados “à imagem e semelhança” de Deus.
O cristianismo trouxe consigo a moral judaica, mosaica, mas deu maior ênfase a alguns de seus pontos, a saber, a humildade, a misericórdia e o amor. Para os cristãos, a vida só era digna de ser vivida se fosse pautada por esses valores, pelo exemplo de Cristo, quer na paz, quer na guerra.
Camus
Em meio à atual pandemia de COVID-19, a obra A Peste, de Albert Camus, novamente ganhou notoriedade, retratando uma cidade que é tomada pela peste, embora o autor tenha se utilizado de uma metáfora e a praga na verdade representasse o terror nazista. Nesta análise, contudo, daremos atenção a outra obra de Camus, Cartas ao amigo alemão, de 1945.
Como se sabe, Camus não era cristão, mas o ponto a ser demonstrado aqui é que, assim como Agostinho, Camus aponta caminhos que, apesar de impopulares, constituem o trajeto mais difícil, mas também o mais humano. À semelhança de Agostinho, Camus percorreu uma busca intelectual, que o levou, como diz Tony Judt[6], da certeza para a dúvida, e por fim ao silêncio. Para a maioria dos intelectuais franceses contemporâneos a ele, o comunismo se mostrava como a única resposta ao terror nazista e à opressão sofrida pelos trabalhadores.
Contudo, ao saber que a Rússia perpetrava horrores semelhantes aos dos nazistas, Camus teve a coragem intelectual e moral de posicionar-se contra o comunismo, e não só ele, mas em oposição a todo tipo de racionalismo em política. Camus percebeu a incapacidade dos sistemas políticos de responder às questões mais imediatas das pessoas. A violência e o ódio haviam deixado uma marca tão destrutiva que, pensava ele, não era possível fazer uso deles na busca por respostas aos problemas que surgiram durante e depois da 2ª Guerra Mundial:
“É, sim, um grande feito, avançar para a tortura e para a morte, quando se sabe com certeza que o ódio e a violência são coisas vãs em si mesmas. É um grande feito bater-se quando se despreza a guerra, aceitar a perda de tudo, conservando o gosto da felicidade, correr para a destruição tendo na mente a ideia de uma civilização superior”.[7]
Essa postura pôde ser constatada na questão da independência da Argélia. Camus havia nascido e crescido no país africano, convivido com pieds-noirs (descendentes de europeus que viviam no norte da África) e com argelinos árabes, e propunha um diálogo improvável àqueles que usavam de violência para afastar os colonos franceses. Ele mesmo um argelino pied-noir, foi instado a respeito de sua posição em relação ao conflito, e optou por um caminho impopular: entre a “justiça” da FLN (Frente de Libertação Nacional) e seu terrorismo, e sua mãe, Camus preferiu a mãe. “Minha mãe poderia estar em um daqueles bondes” explodidos pela FLN, disse a um militante argelino.
A justiça da FLN significava, para Camus, a falência do diálogo, a vitória da violência, do ódio, ao passo que sua mãe, uma mulher comum de ascendência europeia, pobre, que havia trabalhado como empregada doméstica para criar os filhos sozinha, representava a possibilidade e a realidade de que pessoas como ela poderiam conviver pacificamente com os árabes, como haviam feito por décadas.
A opção responsável deixou Camus sozinho e isolado, mas hoje ele é visto à frente de seus contemporâneos, moralmente superior aos que se fizeram cegos em suas escolhas duvidosas (vide O ópio dos intelectuais, de Aron). Se, em O mito de Sísifo, Camus aposta na vida, a partir dali ele passa a repensar a forma em que ele e seus pares intelectuais falavam e escreviam, e optou por uma via impopular, mas, a seu ver, mais correta e mais justa.
[1] MUMMA, Howard. Albert Camus e o teólogo. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.
[2] CAMUS, Albert. Cartas a um amigo alemão. Lisboa: Livros do Brasil, 1968.
[3] 1 Jo 4:20.
[4] A acusação de que o cristianismo havia minado o Império Romano foi o que levou Agostinho a escrever A Cidade de Deus, obra na qual o bispo de Hipona defende a fé cristã e demonstra como os próprios romanos já haviam abandonado os valores que tornaram Roma grande. A acusação é repetida por alguns historiadores, dentre eles destacamos Edward Gibbon e seu Declínio e queda do Império Romano.
[5] POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997.
[6] JUDT, Tony. O peso da responsabilidade: Blum, Camus, Aron e o século XX francês. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
[7] CAMUS, Albert. Cartas a um amigo alemão. Lisboa: Livros do Brasil, 1968, p. 23.
Imagem: colagem Heraldo Galan