A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

O atravessamento da era digital na crise do amadurecimento

As tecnologias do mundo contemporâneo nos proporcionam adentrar uma experiência virtualizante, na qual são suspensos os limites do mundo concreto. Para darmos início ao tema do artigo, é necessário evocarmos algumas questões: Como a experiência digital atravessa a psique do sujeito? Sobretudo, como esse sujeito se coloca nessa relação com os smartphones e com a internet? Em resposta a essas perguntas, destacarei dois objetos para análise. Em primeiro lugar, o smartphone como objeto que permitirá o acesso para a internet ou para virtualização do próprio indivíduo. Em segundo, a internet como mundo virtual passivo de habitação subjetiva ou objetiva.

Graças à internet, tudo está se virtualizando, o trabalho pode ser na modalidade home-office, a educação a distância, as relações via redes sociais e, consequentemente, o próprio indivíduo se coloca em um ambiente virtual e o habita. Estar conectado deixou de ser apenas um luxo e passou a ser uma necessidade, frente às altas demandas de virtualização dos mundos corporativo e social.

Mas algo nos preocupa, principalmente quando falamos de dependência ou compulsão. O IBOPE realizou uma pesquisa, em fevereiro de 2019, apontando que 52% das pessoas não conseguem ficar longe de seus smartphones, com apenas 18% das pessoas conseguindo ficar mais de um dia sem seu celular e os outros 30% suportando ficar distante por algumas horas, mas com algum grau de dependência do objeto.

Quanto a esses dados, observei duas possibilidades de análise para este fenômeno. A primeira seria apreender aquilo que Winnicott (1989) aponta como “interação entre processos pessoais e provisão ambiental” – aqui teríamos que assimilar o que é o VIRTUAL e suas experiências. Num segundo momento, compreender como essa experiência é interiorizada no indivíduo.

No entanto, para compreendermos essas duas instâncias, é necessário apontarmos que a dependência do objeto, e, principalmente, do ambiente, vão na contramão do desenvolvimento emocional postulado por Winnicott (1989). A saúde psíquica, para o autor, é o equivalente à autonomia e à emancipação do sujeito com o ambiente – no caso, o bebê, em seus primórdios, deve conseguir distinguir a unidade Eu-Sou das unidades Não-Eu.

Bom, ante a essa demanda de dependência do objeto, parece-me que estamos dividindo os sujeitos entre saudáveis e não saudáveis, no entanto, não podemos esquecer do processo de virtualização que abarca os dias de hoje – “levar uma vida social ausente da mediação eletrônica já não é mais uma opção. Consequentemente, a morte social está à espreita dos que ainda não se integraram ao cyberworld” (VILHENA e NOVAIS, 2018, p.148).

Sabendo disso, temos que responder ao que se refere esse mundo virtual. De acordo com o sociólogo Pierre Lévy (2003) o virtual não se opõe ao real, pelo contrário, ele é em si, uma realidade passiva de se habitar, mesmo não tendo um espaço físico. Pode-se considerar virtual tudo aquilo que está alocado em um “não-lugar” geográfico, ou seja, tudo aquilo que transcende o espaço físico para um espaço metafísico, tais como: a imaginação, a memória, o conhecimento e a experiência religiosa.

Não só nos dias de hoje, mas também anteriormente, vivenciamos a experiência do virtual e somos capazes de habitar esse lugar. Lugar este que pode nos levar a perder as fronteiras de tempo e espaço, consequentemente, dos limites. É diante dessa experiência de habitar esse ambiente que agora se coloca como lugar, que temos que observar essa dualidade de LUGAR e NÃO-LUGAR habitável.

Para Vilhena e Novais (2018) a experiência de lugar deve fornecer um sentido de identidade e uma história, seria um espaço de construção de socialização, além de registro e fecundação de narrativas. Já no outro extremo, o virtual como “Não-Lugar”, encerra espaços onde não estão simbolizados nem identidade, nem relação e nem história, é pontuado, na medida em que é marcado pela pós-modernidade e suas características de abundâncias de eventos e exacerbação do individualismo (VILHENA e NOVAIS, 2018).

Aqui, temos o início do segundo momento do artigo: como a experiência virtual é interiorizada no sujeito. Esse problema só pode ser respondido, por meio da análise dos novos algoritmos e de como eles provêm tais experiências para os indivíduos. De acordo com Branco (2017), é nas redes sociais que os algoritmos tendem a nos ofertar aquilo que desejamos – experiências que não se desvinculam da unidade Eu Sou, relações objetais puramente narcísicas. “As redes sociais nos dão aquilo de que mais gostamos: nós mesmos. E é muito difícil vencer essa tentação narcisista” (p. 52).

Tais relações são ressaltadas pelo Psicanalista Joel Birman (2011) como autorreferenciais, nas quais o indivíduo contemporâneo está sob a influência de dois aspectos culturais centrais – a cultura do narcisismo e a cultura do espetáculo –, duas das teorias que influenciam e integram a experiência do indivíduo contemporâneo e principalmente impregna o mundo virtual com suas demandas. 

A exigência do espetáculo e o catalisador dos laços sociais, sendo, pois, a mise-en-scène a reguladora fundamental do espaço social. O mundo estaria centrado no eu da individualidade, sendo essa sempre autorreferente. Assim, o sujeito busca sempre a estetização de si mesmo, transformada na finalidade crucial de sua existência (BIRMAN, 2011, p.91).

Um pouco mais recente, o autor Byung-Chul Han (2019), em “sociedade do cansaço”, nos aponta uma percepção similar à de Birman no que diz respeito à ausência da alteridade no mundo virtual, estendendo sua teoria sobre como aquele mundo irá influenciar no princípio da realidade. Segundo Han (2019), não há resistência no mundo virtual. Assim como Pierre Levy (2003), afirma que a existência de limites só ocorre no concreto. O efeito da virtualização é a transformação do Ego pós-moderno em uma constante autorrelação libidinal. As patologias que surgem na pós-modernidade apontam no sujeito uma necessidade constante de afirmar-se como indivíduo, “em um jogo de correr atrás do próprio rabo”, sendo seu único objeto de desejo, “a ‘alegria’ que se encontra nas redes sociais de relacionamento tem sobretudo a função de elevar o sentimento narcísico. Ela forma uma massa de aplausos que dá atenção ao ego exposto ao modo de uma mercadoria.” (HAN, 2019, p.93)

A inexistência da alteridade impossibilita a experiência do objeto Não-Eu, não havendo diferenciação do outro. O outro, em si, é o próprio indivíduo e, na medida em que vai se diferenciando, o indivíduo vai afastando-o, ou controlando seu acesso a ele. O próprio indivíduo passa a ser mercadoria, e tende a adaptar-se e reconstruir-se de acordo com os padrões normativos, distanciando-o de seu Verdadeiro-Self. Em suma, são experiências retroativas de “identidades vazias que alimentam indivíduos vazios” – a compulsão se coloca no processo de reconstrução de si, através de uma defesa maníaca.

Para acompanhar o texto, indico o clipe da música “Desconstrução” do artista Tiago Iorc: https://www.youtube.com/watch?v=UXTYErYEXsk

Referências bibliográficas

BIRMAN, Joel. (2000) Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Editora Record, 2011.

BRANCO, Sérgio. (2017) Fake News e os caminhos para fora da bolha. Rio de Janeiro,. Disponível em:  http://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/bitstream/handle/bdtse/4758/2017_branco_fake_news%20_caminhos.pdf. Acesso em 19 out. 2019.

CONTURBIA, Soraya de Lima Cabral. (2017) O conceito de integração na psicanálise de DW Winnicott.

HAN, Byung-Chul. (2010) Sociedade do cansaço. Editora Vozes Limitada, 2019.

LÉVY, P. (1996). Que é o Virtual?, O. Editora 34. 2003

IBOPE. (2019) Smartphone: metade dos internautas brasileiros não consegue ficar um dia sem, Disponível em: <http://ibopeconecta.com/metade-dos-internautas-brasileiros-nao-consegue-ficar-um-dia-sem-o-smartphone/>. Acesso em: 15 de agosto de 2020

VILHENA, Junia de, & NOVAES, Joana de Vilhena. (2018). Lugar e não-lugar no mundo virtual: Notas sobre criatividade e territórios de existência na rede. Tempo psicanalitico, 50(2), 143-161. Recuperado em 15 de agosto de 2020, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382018000200008&lng=pt&tlng=pt.

WINNICOTT, D. W. (1986). Tudo começa em casa São Paulo: Martins Fontes,1989.

Imagem: ViewApart (iStockPhoto)

Sobre o autor

Ayrton Yuri Alves Souza

Graduando em psicologia e Membro Fundador da Liga Acadêmica de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade Nove de Julho. Pesquisador do Núcleo de Filosofia Política e do Grupo de Pesquisa A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.