Sala Michael Oakeshott

Sócrates absolvido

Na Apologia de Sócrates, texto em que Platão reconstrói, à sua maneira, o cenário do tribunal que condenou Sócrates à morte, o réu se vê obrigado, a certa altura, a adiantar sua defesa da acusação de negligência em sua atuação pública.

“É possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar tanto ao trabalho de fornecer conselhos a este ou àquele em particular, se, ao se tratar de aconselhar à cidade e de ir à tribuna para falar ao povo, então me falte coragem” Platão, Apologia de Sócrates, p. 84.

Ignorando os problemas da prática real, histórica e concreta da democracia ateniense, os seus defensores se esforçaram por criar uma imagem impecável da ordem democrática. A oração fúnebre de Péricles, um panegírico indisfarçável do sistema político ateniense, transpira a estampa forjada sobre o regime democrático da pólis:

“(…) Ver-se-á em uma mesma pessoa, ao mesmo tempo, o interesse em atividades privadas e públicas, e em outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios, não se verá falta de discernimento em assuntos políticos, pois olhamos o homem alheio às atividades públicas não como alguém que cuida apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil (…).” Tucídides, Guerra do Peloponeso, II, §40

Péricles qualifica a atividade pública como uma obrigação moral e detrata, sem cerimônias, aquele que se furta a servir a cidade com sua lógica e sua retórica. “Inútil”. Esta é a sentença que recai sobre seus ombros. A fala de Péricles manifesta uma visão divorciada e hierarquizada da atuação pública e privada – a política, pública por excelência, figura como mandatória, superior e apartada dos interesses privados. Esse retrato esclarece a necessidade de Sócrates responder, antes mesmo que o fosse verbalizado por seus acusadores, quanto a sua suposta omissão no chão (isto é, na rocha) da Ecclesia.

Deixemos os Bálcãs por um instante. Em The Claims of Politics, texto de 1939, Michael Oakeshott explorou os alcances e os limites da política, chegando a conclusões em todo diversas daquelas de Péricles. Seu objetivo soa quase como uma defesa – um tanto tardia – da isenção de Sócrates da vida pública. Oakeshott qualifica como “ilusão grosseira” a ideia de que todos os homens e mulheres devem se dedicar à vida política em alguma medida, sob pena de terem seu caráter ou sua sensibilidade colocados em xeque.

Em primeiro lugar, o filósofo britânico estilhaça a fronteira entre ações propriamente “políticas”, isto é, públicas, e ações de outra natureza, supostamente privadas.

“Mas a verdade é que nada que nós fazemos está desconectado da vida em nossa sociedade, nenhuma atividade é privada no sentido de ser deslocada ou descontextualizada da vida social corporativa, e nenhum homem que sente ser o seu dever tomar parte na promoção dos interesses comuns de sua sociedade deve se considerar fracassado simplesmente porque não ingressou no mundo da política”. Michael Oakeshott, The Claims of Politics, p. 147.

A atividade de um músico de câmara, nos diz Oakeshott, diz respeito aos interesses comuns da sociedade tanto quanto a atividade de um Primeiro Ministro. Uma percepção contrária a essa, típica dos encômios de Péricles e do tribunal que se ergueu contra Sócrates, “repousa sobre e contribui para perpetuar uma divisão ilusória da vida de uma sociedade”. A estremadura que separa a “ação política” das demais ações humanas é uma farsa.

E não apenas erram aqueles que insistem na autonomia e nas prerrogativas exclusivas da atividade política, como frequentemente incorrem no pecado da hierarquização dessas ações, como se as ações políticas fossem, por natureza, a manifestação mais acabada dos interesses comuns de uma sociedade, ou mesmo da humanidade como um todo.

“(…) sugere-se que o tipo de atividade comunitária que chamamos de política é de importância superior a qualquer outro tipo, que é incontestavelmente a expressão mais efetiva de uma sensibilidade pelo interesse comum de uma sociedade. Mas há, creio, pouca ou nenhuma verdade nessa sugestão. A política é uma forma altamente especializada e abstrata de atividade comunitária; ela é conduzida na superfície da vida de uma sociedade e, exceto em raras ocasiões, deixa marcas notavelmente pequenas abaixo daquela superfície.” Idem, p. 148.

Aqui vemos Oakeshott perfurar o coração da besta. Ele inverte, em poucas palavras, toda a primazia social que tende a ser depositada sobre a atividade política em detrimento da dimensão histórica e cultural de uma nação. A política não passa do quebrar das ondas, de um conjunto de ações pequenas e perfunctórias que encontram suas verdadeiras raízes na tradição e na experiência social coletiva. A política não cria realidades. Quando muito, ela as espelha. A cultura, a experiência histórica, as tradições e os costumes é que regem uma sociedade no seu íntimo. O significado e os fins de um sistema político, diz Oakeshott,

“(…) repousam para além de si mesmos, no todo social ao qual pertencem, um todo social já determinado pela lei, costumes e tradição, nenhum dos quais é criação da atividade política. A atividade política pode nos ter dado a Magna Carta e a Declaração de Direitos, mas não nos deu os conteúdos desses documentos, os quais vieram de um estrato de pensamento social demasiadamente profundo para ser influenciado pelas ações de políticos.” Idem, ibid.

Oakeshott ainda compara, de forma muito perspicaz, a segmentação das ações públicas e privadas à divisão entre o clero e o laicato. A insinuação de que a atividade política seja, de algum modo, “superior” às demais, dá ensejo à emergência de uma espécie de sacerdócio político, em que os “oficiais”, isto é, os políticos, seriam os responsáveis por prestar o culto devido, ou seja, levar a cabo a atividade política, enquanto aos demais caberia a participação passiva e contemplativa nessa missa cívica. O resultado é que, assim como a separação entre sacerdotes e leigos

“(…) promoveu uma divisão falsa e irreligiosa entre aqueles que eram chamados a servir a Deus e aqueles que não eram, e deu uma falsa importância aos primeiros, também esta crença sobre o serviço social [i. e., atividade política] promove a visão errônea de que alguma atividade seja desconectada da vida comunitária de uma sociedade e concede uma falsa importância à atividade daqueles que se engajam na vida pública”. Idem, p. 147.

Voltemos à Hélade. A resposta de Sócrates àqueles que condenariam sua omissão na vida pública também se encontra em uma inversão moral. Eximir-se da vida pública ateniense não resultava de uma falha moral, mas sim de um excesso de virtude. Isso porque a própria política era corrompida e corruptiva, como Sócrates afirma em uma longa fala.

“É essa voz que me impede de me ocupar das coisas do Estado, e parece-me que faz muito bem em agir dessa forma. Sabeis perfeitamente, ó cidadãos, que se eu tivesse, por algum tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido morto também num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por vós nem por mim. E não me desprezei se falo assim, pois é a verdade. Não existe homem que possa se salvar ao opor-se com sinceridade, não digo somente a vós, mas a qualquer multidão, e tente impedir que muitas vezes se cometam injustiças e se infrinjam as leis na cidade (…)”. Platão, op. cit., ibid.

Sócrates aponta a vileza que é parte incontornável da atuação política, e reconhece que nenhum bem poderia ter feito ali. Seria um “inútil” precisamente na tentativa de atuar na política da cidade, e não fora dela, como previa a cartilha de Atenas. Oakeshott, de certa maneira, também sinaliza os aspectos corruptivos e periclitantes da atividade política:

“A ação política envolve vulgaridade mental, não simplesmente porque implica a cooperação e o apoio daqueles que são mentalmente vulgares, mas por causa da falsa simplificação da vida humana contida mesmo em seus melhores objetivos. (…) De fato, a atividade política envolve uma corrupção de consciência da qual uma sociedade precisa ser continuamente resgatada”. Oakeshott, op. cit., pp. 148-150.

Como Sócrates, Oakeshott entende que a ação política não é esclarecida, crucial e ilibada, como seus defensores a pintam. Por isso argumenta que a política não é para todos. Uma sociedade precisa de homens que pensem a própria sociedade, que reflitam sobre ela e que possam fornecer os subsídios mentais para corrigir os seus rumos. A política é incapaz de fazer isso. Pensar a sociedade não é da competência dos políticos. As artes e a filosofia devem vir ao seu socorro:

“Mas em toda sociedade existem, creio, alguns para quem a atividade política seria uma perversão de seus dons, uma deslealdade a si mesmos, não porque eles tenham pouco ou nenhum papel na promoção dos interesses comunitários de sua sociedade, mas porque seu papel é tal que, para uma sociedade, é essencial que ele seja realizado, e o qual é difícil, senão impossível, combinar com a atividade política. E dentre eles, creio, estão aqueles cujas habilidades e interesses repousam na literatura, na arte e na filosofia.” Idem, p. 150.

Sócrates, já com sua sentença capital em mãos, ponderou:

“(…) pois sempre me considerei por demais honesto para conseguir salvar-me se me dedicasse a tais coisas e convencido de que não teria sido útil nem para mim nem para vós, e porque sempre acudi rapidamente aonde quer que eu reputasse poder proporcionar o maior bem a cada um de vós em particular (…)”. Platão, op.cit., p. 90.

Assim, Sócrates escolheu permanecer à margem da política, abraçando como missão a provocação e a reflexão filosófica como o melhor caminho para manifestar seus interesses pelo bem da própria comunidade e dos próprios homens que o condenaram à morte. Esse é, literalmente, o caminho que Oakeshott propõe para os homens das artes e da filosofia.

“Não é sua tarefa sair de seu abrigo, trazendo com eles alguma sabedoria superior, e entrar no mundo da atividade política, mas sim ficar onde estão, permanecerem fiéis a suas habilidades, que consistem em mitigar um pouco da ignorância da sociedade sobre si mesma”. Oakeshott, op. cit., p. 151.

Nada mais socrático do que mostrar aos políticos, permanecendo fora da política, sua ignorância sobre a sociedade. Sócrates, assim, se vê absolvido pelo tirocínio de Michael Oakeshott. Este, por sorte, não precisou sorver da cicuta daquele para defender suas ideias.

Referências bibliográficas

OAKESHOTT, Michael. The Claims of Politics, in Religion, Politics and the Moral Life. New Haven and London: Yale University Press, 1002. Ed. and Introd. by Timothy Fuller.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.

TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001.

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Imagem: A Morte de Sócrates/Jacques-Louis David (1787)

Sobre o autor

Pedro Issa

Graduado e licenciado em História (FFLCH-USP) e Mestre em História Social (FFLCH-USP). Pesquisador no Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.