Sala Michael Oakeshott

Oakeshott e a Fundação Americana


Agradecemos à Liberty Fund,
editora de Law and Liberty por autorizar a publicação deste artigo.

Tradução: Alex Strum | Revisão: Luiz Bueno e Andrea Kogan | © Labô
Texto original em lawliberty.org  (publicado em 21/10/2013)

Muitos conservadores americanos enxergam Michael Oakeshott com perplexidade. Apesar de ser reconhecido mundialmente como um pensador conservador, uma leitura cuidadosa da sua obra leva à conclusão de que ele não se enquadra facilmente no panteão dos conservadores famosos. Ele descreveu o conservadorismo como uma disposição e não como uma plataforma ou movimento. Ele observou que não é inconsistente ser conservador em política e “radical em quase todas outras atividades”.

Talvez a mais provocativa de todas as falas é a sua acusação que a fundação da América foi “racionalista” por excelência. Ele escreveu no seu mais famoso ensaio “Racionalismo na Política” que o início da história dos Estados Unidos é “um capítulo elucidativo da história da política do Racionalismo. A Declaração da Independência é um produto característico do saeculum rationalisticum. Representa a política da necessidade percebida, interpretada com a ajuda de uma ideologia. E não é surpreendente que tenha se tornado um dos documentos sagrados da política do Racionalismo.”

Isto se tornou problemático para os conservadores americanos, pois Oakeshott enxergava o Racionalismo como o principal vício da política moderna. O racionalista eleva princípios abstratos à posição de um guia, ou conjunto de instruções, para a atividade política. A política não é mais a atividade de pessoas que sabem o que fazer porque foram instruídas em normas e tradições bem estabelecidas. É agora uma atividade de diletantes e amadores que pensam que uma ideologia é o suficiente para dizer-lhes quais bens devem almejar e como fazê-lo. Ao seguir estas ideologias, os racionalistas fazem uso explícito de regras escritas (constituições, regulamentos) que pretendem especificar certas verdades imutáveis, procedimentos, bem como permissões e limitações de poder.

Em meados do século XX, quando Oakeshott escreveu, havia uma variedade de políticas racionalistas a serem escolhidas: Marxismo, Nacional Socialismo, Objetivismo, etc. Atualmente temos nossas próprias variantes: ambientalismo, progressismo, anarquismo e semelhantes. Até mesmo certas categorias de conservadorismo podem ser consideradas racionalistas. Então, o que deve um americano conservador pensar quando defrontado com a acusação de Oakeshott de que o projeto americano é um exemplo de Racionalismo por excelência?

Esta é uma questão incentivadora para o excelente novo livro de Gene Callahan, Oakeshott on Rome and America. Ninguém, que eu saiba, até agora abordou diretamente a acusação de Oakeshott de que a América seria racionalista, porém, esta questão está no centro do questionamento de Callahan. Também é de importância vital para qualquer americano conservador. Para colocá-la claramente: se estamos inclinados a concordar com a crítica de Oakeshott, de que o Racionalismo é uma abordagem mal intencionada da vida política, devemos, então direcionar estas críticas para nós mesmos, especificamente à nossa Constituição e à Declaração de Direitos e a tudo que decorreu destes documentos fundantes? São os Estados Unidos, com seus objetivos de governo limitador e separação entre os poderes, tão racionalistas como a China ou a ex-União Soviética?

Callahan concorda com Oakeshott sobre os problemas inerentes ao Racionalismo e gostaria de excluir os Estados Unidos desta classificação. No mínimo, ele pensa que há mais nesta questão além do que os comentários provocativos de Oakeshott implicam. É aqui que a originalidade da tese de Callahan surge. A maioria dos leitores de Oakeshott estariam inclinados a imaginar o seguinte: se a fundação de uma nação é racionalista, então a prática e a história desta nação devem exibir racionalismo. Da mesma forma, se uma nação (como a Grã Bretanha ou Roma) não tem uma fundação racionalista, então sua prática política também não será racionalista. No entanto, Callahan mostra que a origem e posterior prática de sociedades não necessariamente funcionam de forma alinhada. Para fins de ilustração, ele compara América e Roma.

De acordo com Callahan, seguindo Oakeshott, a fundação da América parece ter sido racionalista ao escrever uma constituição para unir todas as gerações. Seria como se, uma vez ratificada, o documento, por si só, poderia servir de guardião contra desvios da letra da lei. Sob esta ótica os autores da Constituição parecem ter colocado uma fé excessiva em governar por preceitos e com meras “barreiras de pergaminho”, como, famosamente, notou Madison.

Entretanto, como Callahan acertadamente observou, esta constituição escrita era limitada nos seus objetivos, deixando um amplo espaço de liberdade para indivíduos e estados. Ela não procurava estabelecer uma utopia na terra, nem tampouco implementar modernos projetos utópicos como igualdade de renda ou sistema de saúde universal. O poder seria limitado, controlado, verificado as pessoas seriam protegidas de governos que desejassem fazer demais. Ironicamente, governo limitado ou “associação civil” foi o objetivo de uma fundação racionalista.

Por outro lado, a República Romana emergiu organicamente e gradualmente ao longo de séculos. Roma não teve documentos fundacionais explícitos, mas foi uma sociedade profundamente tradicional. Contudo, os Romanos se consideravam “abençoados pelos deuses.. [seu destino era] governar o mundo e impor uma civilização e uma ordem sobre os barbarismos”. Isto implica, para ambos, Oakeshott e Callahan, uma concepção racionalista de eventos, ou, colocado de forma mais precisa, o que poderia ser descrito como a “a política da fé”. Na política da fé, a atividade política é vista como salvífica, não limitada quanto a seus objetivos. Oficiais do governo não são árbitros neutros, mas diretores, professores, ou até mesmo profetas e deuses.

A comparação de Callahan entre a América e Roma destaca a dificuldade de classificar sociedades simplesmente como racionalistas e não-racionalistas. Callahan lembra repetidamente ao leitor que Oakeshott trabalha com tipos ideais. Racionalistas e conservadores, política cética ou política da fé, associações civis ou empresariais, todas essas são ideias e não pessoas ou regimes. Seria tão impossível encontrar um racionalista puro quanto descobrir uma sociedade que seja totalmente uma associação civil. Elementos de ambos, Racionalismo e o que Callahan denomina “política prática” estão presentes em todas as sociedades em diversos graus.

A implicação do que Callahan observou é que modos de pensar e ações racionalistas se tornaram inevitáveis, até mesmo desejáveis, no pensamento e na atividade política contemporânea. Com efeito, ele destaca o grau que conservadores modernos, até mesmo aqueles que a maioria de nós admira por suas defesas vigorosas da liberdade, sucumbiram  aos seus atrativos. Oakeshott sabidamente criticou Hayek por isto, observando que “um plano para resistir a todos os planos pode ser melhor que seu contrário, porém, pertence ao mesmo estilo de política”. E Murray Rothbard, um enérgico defensor da liberdade econômica, construiu seu sistema filosófico inteiro com base no princípio de que certos direitos, principalmente direitos de propriedade e auto propriedade, eram o ponto inicial indispensável de toda conduta humana. Se estes pontos de partida levam a consequências repugnantes, isso já não importa.

Leitores cuidadosos e historiadores em particular podem encontrar pontos para discutir na análise de Callahan, embora ele tenda a se antecipar a estas objeções. Alguém pode questionar se Callahan representou de forma apropriada a história de Roma ou, ao se concentrar principalmente em um único representante do Racionalismo americano (Thomas Jefferson) ele pode ter enfatizado demais uma tendência na geração fundadora, excluindo as outras. Certamente estas são questões legítimas e interessantes por si, porém não são elas que tornam este livro tão atrativo. O livro é notável porque ele utiliza reflexões de Oakeshott e as aplica a questões de grande relevância contemporânea para a América. Estas questões dizem respeito sobretudo ao caráter e aos limites da Constituição dos Estados Unidos.

A saber: a fundação da América, apesar de seus objetivos de limitar e fiscalizar o poder dos que governam, exibe uma tendência essencialmente racionalista? Em outras palavras, são os princípios auto evidentes e os direitos universais que ela proclama nada mais que um destilado da experiência política herdada da Inglaterra, proclamados como verdades eternas? E mesmo se fossem consideradas verdades eternas em 1776 ou 1787, ainda seriam hoje? Callahan observa que se a cultura política não apoia esses direitos e limites, ou, colocando de uma forma gentil, se presidentes, políticos e juízes têm intenção de reinterpretá-los, então não há nada que possa impedi-los de fazê-lo.

Callahan observa que uma constituição escrita será inevitavelmente “lida de uma maneira a seguir o entendimento prevalente de como um governo deveria operar e quais poderes deveria possuir”. Isto não é simplesmente porque constitucionalistas vivos e progressistas de todas as linhas conseguiram obter maiorias em casos importantes. É porque, argumenta Callahan seguindo Oakeshott, nenhuma constituição escrita consegue fazer o que pretende fazer em termos de estabelecer barreiras efetivas e substantivas à ação política, especialmente quando maiorias apoiam estas ações. Por estas razões até mesmo o Originalismo não é apoiado. A ideia de fundamentar ou estabilizar o sentido da Constituição usando o recurso da “intenção original” é, como ele observa, “não apenas uma quimera hoje, mas sempre foi assim”. Em resumo, a cultura política apoia a Constituição e não o contrário. Basta olharmos para o debate contemporâneo em relação ao casamento para constatarmos que isso é verdade, gostemos ou não.

Um pensamento final. Talvez, possa ser discutido, que Oakeshott está certo nos seus argumentos sobre cultura política. A política prossegue numa democracia desde que a maioria esteja satisfeita com seus resultados. No entanto, considerando os debates atuais sobre liberdade religiosa pode se perguntar onde nos encontraríamos sem a “proteção”, ou ao menos a ameaça, da primeira emenda contra excessos do governo. Uma coisa é achar que as disposições da Constituição e da Declaração de Direitos não são inteiramente adequadas para o objetivo, outra coisa é ficar sem elas. Todas as partes envolvidas nos debates sobre direitos específicos ao menos reconhecem que a Declaração de Direitos deve ser levada em consideração.

Mas isto é uma questão para outro livro. O livro atual de Gene Callahan, Oakeshott on Rome and America, é uma introdução lúcida e provocativa destes assuntos.

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Sobre o autor

Elizabeth Corey

Professora assistente de Ciência Política no Honors Program na Universidade de Baylor. Ela é autora de Michael Oakeshott on Religion, Aesthetics and Politics, pela University of Missouri Press, 2006.