O consumo é característica essencial para a manutenção da vida, não só da espécie humana, mas de todos os seres vivos, que, de uma forma ou de outra, precisam consumir energia para manter a existência, procriar ou perpetuar seus genes. Ele sempre esteve presente na história da sociedade, da pré-história aos dias atuais, conformando e direcionando as ações dos indivíduos. No ato da caça para a sobrevivência, nas conquistas de territórios, na dominação e escravização dos povos, assim como nos atos de guerras e genocídios.
Para o autor Zygmunt Bauman, a partir da revolução industrial, o consumo assume novas caraterísticas. Se na “sociedade de produtores” o trabalho era peça central e moldava as estruturas sociais, na “sociedade dos consumidores” o consumo assume o papel-chave. Entenda-se “sociedade dos produtores” como o período de desenvolvimento fortemente marcado pela segurança. “A apropriação e a posse de bens” era, por deveras, orientada para o conforto e a durabilidade. Nas palavras de Bauman (2008, s.p.), esse foi um período em que “se apostou no desejo humano de um ambiente confiável, ordenado, regular, transparente e, como prova disso, duradouro, resistente ao tempo e seguro.”
Na “sociedade dos consumidores” o ponto de inflexão não estará mais na segurança e durabilidade dos objetos, e sim na sua efemeridade. A transitoriedade dos objetos a serem consumidos liga-se “a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-la.” (BAUMAN, 2008, s.p.). A dialética necessidades versus mercadorias será a mola propulsora da sociedade dos consumidores que implicará em mudanças na maneira como os indivíduos se enxergam em sociedade. Em outras palavras, desejos, vontades, anseios, prazeres e afins se transformam em forças impulsionadoras e operativas, permitindo que a sociedade dos consumidores se desenvolva, organizando as relações sociais e construindo a identidade das pessoas.
Segundo Bauman (2008, s.p.), um dos processos mais significativos foi o da transformação das pessoas em mercadorias, chegando a afirmar que “a subjetividade do sujeito, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilitou ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável”. Um processo que, via de regra, acabou por determinar a posição social das pessoas, o estímulo à competição e à agregação de valores. Os indivíduos, na sociedade dos consumidores, são estimulados constantemente a se tornarem atraentes para o mercado. Um exemplo interessante são as redes sociais, que, ao fazerem as pessoas se organizarem na lógica do consumo, deixam implícita ou explícita a ideia do corpo vendável, adquirir status social se torna uma premissa inegociável.
Diante disso, a construção da subjetividade das pessoas, na sociedade dos consumidores, segue por um caminho que acaba por desalinhar a sua personalidade, o “ser” se confunde com o “ter” e vice-versa. O “ser”, como dimensão explicativa da personalidade dos indivíduos, suas individualidades, características e singularidades – que “reafirma a nossa identidade e molda o caráter com o qual nos relacionamos com o outro no âmbito social e afetivo” –, confunde-se com o “ter”, também explicativo da realidade social, mas que vê na posse e no mérito um caminho para o desenvolvimento pessoal e social – que, no fim, acaba “por despertar e fomentar o egoísmo e a falta de altruísmo nas relações interpessoais.” (SILVA, 2014, s.p.).
Direcionados pela lógica do “ter”, como meio para a satisfação dos desejos e ansiedades, os indivíduos são levados a acreditar que, em sociedade, “o ter vale muito mais que o ser”, nas palavras de Ana Beatriz B. Silva (2014, s.p.) “um jogo manipulador e perverso que torna o ter sinônimo do ser. Julgam sua identidade e seus afetos pelo que podem adquirir e oferecer aos demais e, assim, vivem numa espiral de angústia e insatisfação [..].”
Na sociedade dos consumidores, a compulsão por compras como forma de suprir as insatisfações e combater as crises de ansiedade se torna um hábito por vezes incontrolável. Em uma sociedade cada vez mais acelerada, procuram-se respostas instantâneas, como forma de lidar com os desapontamentos do dia a dia, de tal forma que consumir se torna uma saída prazerosa. O termo “oneomania”, comumente conhecido como “doença do consumo compulsivo”, atinge um número significativo de pessoas que, com ou sem dinheiro, se sentem impulsionadas a comprar um objeto qualquer, mesmo sem necessidade. Alguns dos sintomas advindos dessas compras compulsivas são a culpa e o arrependimento, quando não a vergonha.
Como bem diz Silva (2014, s.p), “consumir é preciso para viver, mas viver para consumir pode ser uma das maneiras mais eficazes de transformar a vida em uma morte existencial”. Consumo consciente, consumo eticamente correto, autoeducação são alternativas para fugirmos das armadilhas do consumismo, mas será que estamos preparados para isso? Infelizmente, “em nossos tempos, existem milhares de pessoas que acreditam, verdadeiramente, que o ter vale muito mais que o ser, e […] essa talvez seja uma das maiores tragédias da história coletiva da humanidade.”[1]
Quando nos referimos a tragédia, estamos levando em consideração um pensamento fortemente enraizado na sociedade, que acaba por valorizar muito mais as posses de bens materiais que o desenvolvimento e a emancipação dos indivíduos. Os padrões de consumo na atualidade têm levado a sociedade a um processo lento de “degradação global do meio ambiente e instabilidade do processo de desenvolvimento”. (COUTINHO et al., 2020, s.p.). Para além disso, os padrões de consumo impuseram uma lógica de desenvolvimento desigual mundo afora, com destaque para uma minoria de países que consomem a maior parte dos recursos, enquanto um número muito grande de pessoas, vivendo em países de terceiro mundo, lutam para sobreviver com o mínimo possível.
O modelo que possibilitou o nosso desenvolvimento nos trouxe muitos benefícios, principalmente a curto prazo. No entanto, “acabaram por impor em um prazo mais longo altos custos ao meio ambiente e às sociedades” (COUTINHO et al., 2020, s.p.), tudo isso patrocinado por uma lógica de consumo altamente veloz e voraz. Nos últimos meses, fomos obrigados a pisar no freio e reduzir a velocidade, mas não por vontade própria, e sim por conta de um vírus.
A pandemia de COVID-19 nos levou a repensar nossos hábitos de consumo e a importância da necessidade de revermos o nosso “mal gerenciamento do meio ambiente”. Alguns estudos indicam mudanças nos hábitos, mesmo que parciais, já que lidar com hábitos já consolidados, como no caso dos hábitos de consumo, demanda tempo e autoeducação.
Em meio à pandemia, as formas tradicionais de consumo, de certa forma, passaram a ser questionadas. Um movimento interessante foi o do “compre do pequeno”, uma organização que durante alguns dias incentivou as pessoas a comprarem seus produtos nos “mercadinhos de bairros” – ao invés de circularem nas grandes redes de mercados –, e acabou por resgatar um senso de comunidade, mesmo que de forma passageira. Outra iniciativa foi a de consumir de acordo com as necessidades do coletivo, comprando só os alimentos necessários, para que não faltasse aos outros. Esses exemplos são significativos, pois, como mudança de padrões de consumo, com a mesma rapidez que surgiram, também desapareceram.
Ainda é incerto se seremos capazes de “mudar nossos velhos hábitos de consumo”. No entanto, a reflexão que fica é, se não formos capazes de revermos o nosso modo de viver em sociedade, seremos, literalmente, consumidos por nossos hábitos!
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Consumismo versus consumo. In: ___________ Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
COUTINHO, Sonia Maria V. Et al. Irá a pandemia alterar velhos hábitos de consumo? Jornal da USP, 2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/ira-a-pandemia-alterar-velhos-habitos-de-consumo/. Acesso em: 11 de jul. 2020.
[1] SILVIA, Ana Beatriz B. Mentes consumistas: do consumismo à compulsão por compras. 1. Ed. São Paulo: Globo, 2014.
Imagem: montagem sobre reprodução/Campbells Soup Cans (Andy Warhol – 1962)