O não reconhecimento do chamado da política em nossa sociedade é tido por muitos como um indicativo de falta de sensibilidade ou de senso público. Somos, desse modo, e muitas vezes, impelidos a tomar partido nos temas políticos diários, mesmo quando esses não nos interessam, por sermos diretamente ou indiretamente afetados por eles. Assim, surge a ideia de que é dever de todos participar ativamente da política, e o momento atual de polarização política em nosso país favorece a manutenção dessa concepção.
Decorre também desta equivocada ideia o uso pejorativo dos termos isento ou, em maior grau, o “isentão”, agora muito utilizado nas redes sociais para se referir a quem não se posiciona politicamente, ou ao indiferente, aos sem opinião, ou àqueles situados no centro do espectro político. Para muitos, um claro indicativo de falta de senso público, pois uma menor participação na vida política – ou mesmo a ausência de participação – é punida atualmente com uma mancha indelével no currículo social, e é entendida como uma grave falha na prestação de um suposto “serviço social”, como hoje é compreendida a atividade ou militância política.
O tema me fez lembrar da entrevista de Michel Houellebecq, concedida para o Fronteiras do Pensamento, na qual o escritor francês descreveu, de modo sucinto e com perfeição, o personagem principal do seu livro Submissão [1], um professor universitário dedicado à literatura e especialista no autor Joris-Karl Huysmans, conforme trecho da entrevista:
Entrevistador – “De todo jeito, é um personagem que não tem muito prazer. Um pouco indiferente ao que acontece à volta dele.”
Michel Houellebecq – “Ah sim, ele não quer saber de política. Nada. Tem muita gente que é assim. Para ele, tanto faz. O que acontece é que a política se interessa por ele. Quer dizer, acontecimentos históricos reais terão um impacto na vida dele. Mas a primeira reação dele é ficar estupefato, indignado que a história possa influenciar a vida dele.”
O referido personagem, François, mesmo não se importando com a forte atividade política na França atual, é conduzido pelos acontecimentos e acaba por atender os clamores da política de seu país, que afetaram sobremaneira a sua vida, até então tranquila.
O breve artigo do filósofo político inglês Michael Oakeshott, denominado “As reivindicações da Política” [2], datado de 1939, que faz parte do livro “Religion, Politics and the Moral Life”, toca nesse e em outros temas sensíveis, que devem integrar os estudos políticos no Brasil. Temos o dever de participar ativamente da vida política de nosso país? Qual é o lugar da política em nossa vida em sociedade? Existem atividades de impacto social totalmente desvinculadas da política? Essas atividades são meios mais importantes e mais eficazes de expressão da sensibilidade para os interesses comuns da sociedade? É função da política determinar valores sociais? Esses são os principais problemas enfrentados pelo referido artigo.
Ter pouca afeição aos assuntos políticos – ou permanecer completamente afastado dos assuntos públicos e da política propriamente dita –, pode provocar a sensação de falha no desempenho dos nossos deveres como cidadãos, e esse distanciamento pode ser entendido como espécie de alienação, a chamada alienação política. Esta ideia de participação política ativa, como uma obrigação, um dever, mantém íntima relação com a noção de cidadania, compreendida em suas três dimensões interdependentes: a civil, a política e a social – e que conceitualmente nada mais é do que o próprio exercício de direitos historicamente conquistados e da realização dos deveres constitucionais. A ideia de cidadania política compreende, portanto, o direito de participar do poder político diretamente, através do governo, e também indiretamente, através do voto.
Segundo Oakeshott, se considerarmos que a política é a única expressão adequada, ou a mais importante e mais eficaz “expressão de sensibilidade para os interesses comuns” de uma sociedade, então, essa falsa concepção poderá nos conduzir por um caminho obscuro e nos levar a acreditar que existe sim um dever universal de participar ativamente da vida política.
Mas por que é equivocada a referida ideia de que existe um dever universal de participar ativamente da política? Porque, na realidade, nenhuma atividade está completamente desconectada da vida comunitária em sociedade, e a atividade política não é a única expressão adequada de sensibilidade com os interesses comuns – tampouco é a mais importante, ou a mais eficaz expressão dessa sensibilidade pública.
Michael Oakeshott não faz escolhas entre uma vida exclusivamente dedicada a interesses privados e uma outra vida pública – onde os interesses comuns são compartilhados em sociedade –, nem entre o individual e o coletivo, escolhendo o caminho do meio, o caminho mais acertado, o caminho do equilíbrio entre as duas importantes atividades. A atividade política não é, de modo algum, a única expressão do que podemos chamar de “espírito público” ou de caráter público: é apenas uma das formas de atividade comunitária. Portanto, outras formas de participação para o bem comum, não menos importantes para a sociedade, não podem ser menosprezadas pela atividade política.
O filósofo inglês, em seu citado artigo, defende a ideia de que a política deve ser conduzida na superfície da vida em sociedade, mantendo assim a atividade de governar uma ordem superficial, através de seu estreito campo de atividade. Essa tese é melhor desenvolvida em seu livro “A Política da Fé e a Política do Ceticismo”. A atividade política certamente causa grandes impactos na sociedade – para o bem e para o mal –, e suas repercussões funestas são mais evidentes quando da sua atuação sem limites e no contexto de intervenções minuciosas na vida comunitária. Presenciamos esses efeitos durante a pandemia de Covid-19, em 2020, quando decisões políticas e leis transitórias aprovadas pelo Congresso – todas atinentes à pandemia –, causaram graves impactos na esfera individual, diante da ingerência do Estado na economia e na vida privada, com sérias limitações à liberdade individual.
Vale registrar, ainda, a existência em nosso país de uma diversidade de projetos de lei sem qualquer importância para a sociedade – muitas vezes carregados de inconstitucionalidade – que decorrem exatamente de uma mentalidade que envolve a atividade política sem limites, descompromissada com o interesse público, digna de todo descrédito e reprovação, denotando que a política brasileira é conduzida com distanciamento dos reais anseios e interesses da sociedade.
Importante ressaltar que, no referido artigo de 1939, ao afirmar que o sistema político tem a finalidade principal de proteção e modificação ocasional da ordem legal e social já estabelecida, Oakeshott mantém-se em consonância com o pensamento do economista austríaco Ludwig Von Mises. Em seu livro fundamental “As Seis Lições” [3], datado de 1958, Von Mises defende exatamente a mesma ideia de limitação das funções do Estado, afirmando que a única função legítima do governo é, precisamente, produzir segurança, e o Estado teria, assim, a função primordial de proteção externa e interna da sociedade e a manutenção da lei e da ordem. Nas palavras do economista liberal, seriam essas as funções do governo, num sistema de economia de mercado. Michael Oakeshott retorna a esse tema em seu livro “A Política da Fé e a Política do Ceticismo” [4], de 1952, ao tratar da “compreensão cética de governar”, que, para o autor, envolve economia no uso do poder – no sentido de utilização apenas dos recursos necessários para a preservação da ordem.
Essa mesma ordem social, na qual está inserida a política de um país, já está determinada anteriormente pela lei, pelos costumes e pela tradição, que não são criações da atividade política. Nesse trecho, o autor reafirma, então, a sua “disposição conservadora”, ao conferir importância maior à lei, aos costumes e à tradição na escala de valores sociais e na condução prudente da vida em sociedade. Portanto, entendemos que não é função do Estado, nem mesmo da atividade política, determinar ou criar valores sociais.
Pode parecer contraditória a afirmação de Michael Oakeshott no seu texto, de que a lei não é criação da atividade política – ainda mais quando consideramos, no nosso sistema de tripartição de poderes estatais, a função de elaboração de leis, que é própria do Poder Legislativo, e que exerce sim a atividade política. No entanto, o filósofo refere-se tão somente ao conteúdo dessas leis, que é proveniente de acordos sociais e que muitas vezes decorre de necessidades prementes da sociedade já anteriormente vivenciadas, antes do processo legislativo em si. A atividade política nos dá a lei em sentido formal, materializada em textos escritos, mas não é responsável pela causa remota ou imediata desta mesma lei.
Oakeshott nos conduz à conclusão de que a limitação de visão de mundo é inerente à atividade política, posto que atua sob uma falsa simplificação da vida humana, que muitas vezes está afastada dos legítimos anseios sociais e completamente distanciada da realidade. Esse distanciamento da realidade e essa insensibilidade para a promoção dos reais interesses públicos são próprios da política, segundo o autor. Em tempos de pandemia de coronavírus, de conflitos entre os três poderes estabelecidos constitucionalmente e de subversão dos valores mais caros à sociedade ocidental – como o que estamos vivenciando em nosso país atualmente –, a sociedade concede, naturalmente, uma relevância maior à atividade política do que ela teria em tempos de normalidade.
Estaria Oakeshott, então, defendendo em seu artigo o absenteísmo político? Não. O filósofo apenas demonstra que existem outras formas mais importantes de promoção dos interesses comunitários e de verdadeiro interesse pelas coisas comuns em sociedade – tais como as atividades literárias, artísticas e filosóficas, que, no entender do autor, são inconciliáveis, ou deveriam ser, com a atividade política, dada a sua natureza insensível. Oakeshott refere-se a essas atividades em seu sentido mais amplo, universal, pois sabemos que, em sentido restrito, a literatura, a arte e a filosofia estiveram muitas vezes ligadas à atividade política, em determinados movimentos e períodos históricos. Essas atividades, segundo o filósofo político, nos protegem do mal maior, que é a corrupção da nossa consciência, e somente essas atividades podem tornar a sociedade crítica de si mesma. É preciso, portanto, que a sociedade conheça a si mesma, principalmente a sua história, a sua cultura, e trabalhe incessantemente na restauração dos seus valores fundamentais.
Como exemplos de outras atividades desvinculadas da política, e de grande importância para a promoção do serviço social e do desenvolvimento pleno da vida comunitária, podemos citar o papel realizado pelas Santas Casas em todo o mundo, e, ainda, as atividades sociais desempenhadas pelas ordens religiosas, com atuação em diversos campos de interesses públicos.
O artigo do grande teórico político inglês deve ser entendido, sobretudo, como uma verdadeira denúncia à atividade política pura, que atua na perversão de valores sociais maiores, com a deslealdade que é própria da sua atividade, desprovida de credibilidade, e afastada da realidade social. Então, qual o lugar da política em nossa vida ?
Na escala de valores da sociedade ocidental, a política é apenas um deles, e, certamente, não está entre os mais importantes. As atividades literária, artística e filosófica detêm um grau muito maior de relevância para a promoção dos valores, dos interesses sociais, e do bem comum. Assim, concluímos que não devemos alimentar, em hipótese alguma, a ideia equivocada de obrigatoriedade de participação ativa na vida política, tampouco devemos alçar a política ao centro de importância social, porquanto existem outras atividades de impacto social desvinculadas da política, e essas atividades são meios mais importantes e mais eficazes de expressão da sensibilidade para os interesses comuns da sociedade, e que devem ser estimuladas, para a conservação dos nossos maiores valores.
Referências
[1] HOUELLEBECQ, Michel. Submissão. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. 1ª. edição, Rio de Janeiro, Objetiva, 2015. [2] OAKESHOTT, Michael Joseph. The Claims of Politics. In: Religion, Politics and the Moral Life. New Haven and London: Yale Univ. Press, 1993. [3] MISES, Ludwig Von. As Seis Lições. Tradução de Maria Luiza Borges. 7ª.edição, Cap. III, pág. 47, São Paulo, Instituto Liberal, 2009. [4] OAKESHOTT, Michael Joseph. A Política da Fé e a Política do Ceticismo. Tradução de Daniel Lena Marchiori Neto. 1ª. edição, pág. 67-77, São Paulo, É Realizações, 2018. Imagem: montagem sobre foto de Rodrigo Gavini/iStockPhoto