A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

Política: o campo de embate dos imaturos?

por Eduarda Kathelen R. Neves[1], Larissa de Araújo[2] e Lorraine F. Bim Silva[3]

O silêncio se tornou violência. As pessoas querem, a todo custo, sinalizar suas virtudes e bondades, na tentativa de angariar para si uma posição de certeza que lhes dê segurança e proteção. O ser humano tem como caminho mais fácil, diz Winnicott, enxergar suas partes desagradáveis somente quando aparecem em outras pessoas, recusando-se a perceber a ambivalência de sua própria personalidade. No âmbito coletivo, isso pode ser visto quando as pessoas, pautadas em uma perspectiva racionalista, colocam a atividade política como a mais segura das atividades humanas e tendem a utilizar suas visões políticas como instrumentos de transferência de suas partes ruins para as outras pessoas.

Como apontado por Oakeshott, em The Claim of Politics (1939), ainda hoje, parece ser conferida uma superioridade ao contexto político – em razão de sua suposta importância prática diante de outras áreas da vida –, sendo que o sujeito que não reconhece seu valor e autoridade é tido como insensível aos interesses de sua comunidade. Dessa forma, cada vez mais artistas, professores, psicólogos, pedagogos, médicos, são “obrigados” a ter alguma atividade política. Mas ao contrário do que dizem, isso ocorre não só para que o senso de dever cívico seja satisfeito, mas também para satisfazer a ilusão de que essas pessoas são virtuosas e seus oponentes políticos são inferiores.

Pareado a isso, o conhecimento sobre a política está cada vez mais restrito ao uso de palavras como opressão, privilégio, racismo, revolucionário, reacionário, conservadorismo, socialismo, entre outras. Por mais que nos sejam familiares, elas parecem significar coisas completamente diferentes para pessoas diferentes. Existem lacunas dentro da linguagem, e os termos estão sendo esvaziados de seus significados clássicos e, consequentemente, quanto menos nos falamos, mais as diferenças se cristalizam. Isso é reflexo do individualismo e do narcisismo do nosso tempo, em que as pessoas buscam apenas o seu eco, não o diálogo.

Com isso, abre-se espaço para que o poder seja transferido para a linguagem, tendo como referência os sentimentos de uma minoria. Um exemplo disso é a alegação de que o racismo está presente em toda parte, inclusive em palavras supostamente ofensivas, e que negar isso seria demonstração do racismo estrutural. Dessa forma, a pessoa deixa de ser julgada pelo conteúdo do seu caráter e passa a ser julgada tão somente pela cor de sua pele, o que também pode ser considerado racismo. Talvez a maior inconsistência ao ir por esse caminho seja o estabelecimento da verdade segundo a justiça social, que não pode ser questionada sob nenhuma circunstância.

Assim, o domínio de uma ideia supostamente boa é estabelecido sobre uma ideia má, e o privilégio de definir as qualidades das ideias é dado à ideologia defendida. Em contrapartida, Winnicott afirma que o comportamento total humano inclui a responsabilidade histórica e leva em consideração a identificação inconsciente que um indivíduo possui com seus inimigos, reconhecendo sua própria crueldade e avidez. Entretanto, não é tão simples, visto que o sujeito precisaria perceber que a cobiça e a agressão, que tanto critica, podem ter sido sua responsabilidade, já que as partes desagradáveis que aparecem em outras pessoas também existem nele próprio.

Em questões sociais, esse comportamento pode se manifestar quando qualquer fala politicamente incorreta, considerada ofensiva aos sentimentos de uma minoria, é convertida em instrumento de assassinato de reputação, ocorrendo o que é conhecido hoje como “cancelamento”. Isso é verdade inclusive no cenário educacional, em que muitos alunos e professores, ávidos por justiça social, buscam apenas as disposições políticas dos autores, ‘cancelando’ os que não lhes convém. Corre-se o risco, a partir disso, de uma perda de todo o pensamento filosófico, em virtude de suposições empobrecidas. Um exemplo foi o fato ocorrido na Universidade de Edimburgo, na Escócia, em que o filósofo David Hume foi considerado racista em função de um infeliz recorte de sua teoria – como se todas as suas contribuições pudessem ser reduzidas a um rótulo ideológico. Os exemplos dos detentores da justiça se estendem também para a negação do pensamento binário, visto que afirmar que há dois gêneros biológicos pode ser ofensivo a ponto de ser necessário alterar a norma gramatical, sendo preferível colocar ‘x’ ou ‘e’ no fim de certas palavras.

Conforme exposto por Oakeshott, aparentemente, tem se tornado mais relevante para a sociedade a elevação das causas ideológicas do que a experiência de aprendizagem, considerando-se as razões políticas superiores às razões pedagógicas. Todavia, colocar a atividade política acima de outras questões humanas pode conduzir a sociedade a utopias. Essa é uma característica central dos racionalistas políticos que, ao se depararem com as diferenças entre a realidade concreta e o objetivo racional que estabeleceram baseados em sua ideologia, preferem destruir o real que não se adequa à sua visão abstrata e utópica.

As pessoas tendem a preferir a atividade política porque ela aparenta proporcionar um grande alívio ao homem – pois a única coisa que exige é o culto a alguma autoridade ou ideia –, levando as pessoas à incapacidade de atribuírem a si mesmas o mérito pelo sucesso ou a responsabilidade pelo fracasso. Em suma, o sujeito permanece na dependência, sem assumir plena responsabilidade por suas ações, pensamentos, medos e agressividade.

Por sua vez, Oakeshott afirma que um bom funcionamento da sociedade pressupõe indivíduos capazes de assumir a liberdade e os riscos a ela inerentes, bem como a responsabilidade por suas atitudes. Assim como para Winnicott, renunciar à liberdade e transferir a responsabilidade de sua própria vida para um líder idealizado ou para um princípio abstrato seria o caminho para a pobreza de personalidade.

Raros são os indivíduos que conseguem sustentar a experiência da liberdade, posto que, apesar de admirarmos a ideia de ser livre, isso exige o reconhecimento de que a vida se caracteriza por medos, conflitos e frustrações, tanto quanto pelos sucessos e conquistas de cada pessoa. Essa é uma experiência cansativa, porque é difícil assumir plena responsabilidade por si mesmo sem se frustrar em excesso e o sujeito livre não possui quem o desculpe de seus sentimentos agressivos – pois ele é o único responsável por suas ações e inações. Uma sociedade constituída de indivíduos livres não tem o objetivo de dizer às pessoas como devem viver, mas sim de manter a abertura para as possibilidades que seres humanos maduros podem produzir.     

Referências

WILLIAMS, Joanna. How the wokeness conquered the academy. Spiked online, out, 2020. Disponível em:
<https://www.spiked-online.com/2020/08/28/how-wokeness-conquered-the-academy//>.

OAKESHOTT, Michael. Rational conduct. In: Rationalism in politics. 1 ed, London, 1962, p. 111-136.

OAKESHOTT, Michael Joseph. The Claims of Politics. In: Religion, Politics and the Moral Life. New Haven and London: Yale Univ. Press, 1993.

WINNICOTT, Donald W. (1940) Discussão dos objetivos da guerra. In: Tudo começa em casa. Tradução de Paulo Sandler. 3 ed., cap. 21, p. 215-227. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Imagem: intervenção sobre foto de Stinglehammer/Wikimedia Commons


Sobre o autor

Eduarda Kathelen R. Neves

Pesquisadora do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.

Sobre o autor

Larissa de Araújo

Graduanda em Psicologia da Universidade de Taubaté. Pesquisadora do Núcleo de Filosofia Política e do grupo de pesquisa sobre A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.

Sobre o autor

Lorraine Bim

Mestranda em Psicologia Clínica pela PUC/SP; psicóloga pela Universidade de Taubaté e pesquisadora do Núcleo de Filosofia Política e do Grupo de Pesquisa A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ