Sala Michael Oakeshott

Notas sobre “The Claims of Politics”, de Michael Oakeshott (1939)

Se hoje o debate político é tido como tema visceral por todo cidadão que teve sua participação ampliada pela inclusão digital, essa participação por vezes parece não ter sido apenas possibilitada, mas também impelida. A identidade que o sujeito constrói comumente pede o enquadramento em alguma categoria estipulada pela teoria política, e a partir daí o embate entre cada um desses modelos recorre a algum juízo de valor que acena para uma moralidade, que por sua vez se legitimaria à medida em que culmina em posicionamento com contornos de ação, podendo ir do discurso até a militância ou candidatura. A obrigatoriedade de o cidadão comum agir na esfera política para além do voto secreto parece, para quem se apaixona pela questão, estar implícita nessa demanda da moralidade, de modo que não agir politicamente significaria ser “isentão”, “alienado” ou “egoísta”, enquanto não se declarar de um lado significaria necessariamente estar do outro, mas com vergonha de assim se assumir. Enquanto, para pesquisadores do século XIX, a cultura substituiu a religião como alicerce para a psique contemporânea, para alguns pensadores mais recentes, o novo alicerce é a política. Embora as redes sociais tenham tornado clara essa reivindicação da política como um pressuposto implícito no debate, é um incômodo que Michael Oakeshott já havia questionado em 1939, em seu ensaio “The Claims of Politics”. Para o filósofo britânico, tal obrigatoriedade só poderia ser considerada universal se a atividade política fosse a única ou a melhor expressão adequada da sensibilidade pelos interesses comunitários da sociedade ou da humanidade – e não é nenhuma das duas.

Considerando “política” em sua dimensão institucional e participativa, com os poderes e mecanismos já estabelecidos, a primeira hipótese assume a ideia de que a vida política está separada da vida comunitária, e de que há uma espécie de monopólio, conferido aos politicamente ativos, quanto às medidas públicas de interesse daquela sociedade. Para Oakeshott, entretanto, nada está desconectado da vida comunitária: o trabalho de um funcionário público e o de um músico de palco incidem, mesmo que de formas diferentes, na mesma comunidade, e, portanto, a expectativa moral de zelar pelo seu bem e agir em favor desta comunidade não exige necessariamente um vínculo com instrumentos ou instituições políticas. As ideias de teias de interdependência e sociedade dos indivíduos de Norbert Elias cabem bem aqui. A política não é o centro de nossa vida, mas só uma profissão necessária, dentre tantas outras atividades cujos efeitos propagam para o público, mesmo que partam do privado ou do apolítico.

Já na segunda hipótese, quando se assume que a ação política é a melhor (“mais importante” e “mais eficaz”) expressão dos interesses comuns da sociedade, está se vendo profundidade na complexidade de uma prática que, no fundo, por mais complexa que seja, é superficial, com finalidade operacional e não criativa ou valorativa. Insistir nessa reivindicação seria como insistir que o que determina a obra de arte é o pincel, sem o qual o artista nada pinta, mas que não basta a um indivíduo qualquer para produzir uma obra de arte. A política é mais forma que conteúdo; não é premissa ética, é um instrumento, uma forma de atividade comunitária altamente especializada e cheia de abstrações; não produz os conteúdos adequados àquela sociedade (tanto porque seu próprio funcionamento exige certa inflexibilidade e insensibilidade para operar), mas apenas administra, dentro do aparato institucional, os conteúdos legados. Sua função é de proteção ou ocasional modificação de uma ordem legal e social reconhecida, e não de criação e recriação de valores – que é, esta sim, a atividade mais importante para a vida de uma sociedade.

Isso não é dizer que Oakeshott considera a ação política obsoleta, apenas que ela tem seu lugar e sua função muito bem localizadas, e que, portanto, não pode ser entendida como a única e melhor forma de agir pela comunidade – e que, consequentemente, a participação nela não é requisito para um cidadão poder ser considerado com caráter e sensibilidade social. Algumas vezes, inclusive, se isentar da política é o próprio requisito. Enquanto são os politicamente ativos que protegem os valores da comunidade, nem sempre estes acabam protegidos, e aí o que sua sobrevivência exigirá é que a própria comunidade se torne consciente e crítica de si mesma, podendo, assim, com consciência recriada, erguer uma nova estrutura que servirá como medula para substituir aquela que ruiu, renovando a vida em sociedade. Assim como em linhas hegelianas, proporcionar este movimento é papel do poeta, do artista e, em menor alcance, do filósofo – e o requisito para a colaboração deles é justamente estarem “fora” da política, não apenas por isso conferir-lhes melhor perspectiva, mas também para poderem dedicar seu talento exclusivamente a essa função criativa, que é mais vital que a protetora, e ação em uma esfera diferente e mais profunda da consciência comunitária. Segundo Oakeshott, a política tem que garantir o nomos, não o telos, pois quem diz como a sociedade deve ser é a própria sociedade. Quando tratam a política, para além de sua legítima função gerencial e especializada, também como atividade criativa, e como dever civil acima dos outros papéis sociais, abrem-se caminhos para que a consciência daquela sociedade seja corrompida.

Imagem: Michael Oakeshott (autor não identificado)


Sobre o autor

José Altran

Doutorando em Filosofia pela USP, mestre em Ciência da Religião pela PUCSP e licenciado em Filosofia pela UCB. Pesquisador do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.