Estudos Agostinianos

Eclipse da pessoa

No que se refere ao Ocidente, podemos dizer que ser pessoa talvez seja a última e maior superstição combatida pelo saber científico e, por que não dizer, filosófico nos últimos tempos. A maior porque as outras são direta ou indiretamente derivações dela; a última porque implica a abolição do humano no modo em que o concebemos. Apesar de sofrer algumas mutações históricas em sua forma de compreender o mundo, esse tipo de antropologia da pessoalidade reflete a weltanschauung (cosmovisão) de uma dada religião. Sendo mais específico, como bem assentou o filósofo Julián Marías (2000, p. 111), “o cristianismo consiste na visão do homem como pessoa”. Com efeito, em prestígio à coerência, acreditar em pessoas finitas era e continua sendo decorrência de se crer num Ser Absoluto Pessoal.

Acontece que esse Deus já estava meio morto há alguns séculos, enquanto sua psedoimagem terrena ainda resistia. Não por muito tempo. O homem passaria de imago Dei a imago Naturae, de filho de um Deus Pessoal a resultado não intencional de uma Natureza-Objeto. Não sendo um ser autorreferente (portador de uma consciência identitária de tipo matrioska), e uma vez tendo deixado de encontrar o Referente de seu significado no espelho do Céu, o homem passou a investigar o sentido de sua origem nos escombros de uma grande explosão ou qualquer outro análogo sem propósito. Bem ou mal, um dos que serviram de ponte filosófica para essa queda gradativa do homem no reino fechado do impessoal acabou sendo Espinoza, mediante a indiferenciação Deus sive Natura, numa modernização do determinismo estoico.

Antes mesmo de uma pretendida consumação do Teocídio, quando o Transcendente seria de todo emparedado pelo regime fechado da imanência, vozes proféticas como de Julien Offray La Mettrie já proclamavam uma forma de antropocídio pela chegada do autômato, o “homem-máquina”. Como se poderia antever, “ao negar a Deus a humanidade perdeu a noção de pessoa” (TOURNIER, 2002, p. 44). Esse é o ponto de fuga em que hora estamos e que harmoniza as mais diferentes linhas no quadro de uma mesma perspectiva. Pelo andar da carruagem, por mais que isso ainda ofenda o desejo de autonomia e senso de importância de alguns, cedo ou tarde haveremos de admitir que somos todos títeres de alguma “coisa”, que não há cavaleiro algum sobranceiro ao chão da marcha, em que pese o apelo emocional das aparências pessoais. Está certo que nosso destino não está nas mãos das moiras cegas, como imaginavam os gregos, mas dizem que imagens computadorizadas passaram a demonstrar com exatidão cada vez maior que são os neurônios que regem tudo aquilo que pensamos, decidimos, queremos, sentimos e fazemos, dando-nos, ainda, uma “ilusão de eu”. O impulso elétrico é o novo arché da sociedade neurocêntrica em que tudo passa a ser epifenômeno do cérebro.

Embora nem sempre seja fácil de enxergar o trespasse do pessoal ao impessoal estando entranhado no processo, o fato histórico incontornável é que estamos no meio, ou melhor, do meio para frente de uma revolução paradigmática que tem como resultado prático o fato enigmático de que “ninguém” escreveu este texto apesar de eu achar que fui eu. Nosso arco civilizacional dos últimos quinhentos anos poderia, assim, ser percorrido numa inversão protagórica: de “o homem é a medida de todas as coisas” para “a coisa é a medida de todos os homens”. De realidade primeira e irredutível, com a superação do mito criacional judaico-cristão (de tipo religioso-poético) a pessoa (de “prósopon”, máscara) passa a ser nada mais que uma máscara que veste epidérmica e eufemísticamente o objeto, inclusive nós e aqueles que amamos. Nesse passo, não seria errado dizer que a heresia cristã do humanismo começa com o otimismo do homem criador de si mesmo, e em constante autopoiesi, para mais adiante anunciar um outro evangelho: na realidade não existem pessoas no mundo (nem fora dele), só há objetos de carbono com orifícios falantes.

Seria de se propor, portanto, alguma nova definição de pessoa, melhor afivelada ao cinturão da época: objeto com capacidade de autoilusão, um animal que encontrou no delírio da autoconsciência sua vantagem adaptativa etc. Talvez não esteja sendo fácil acordar de nosso sonho de “pessoa” humana e admitir a realidade última e zoomórfica que nos encerra abaixo da cintura do Minotauro. Depois que embarcamos no Beagle e viramos tataranetos de protozoário, até a noção de verdade se tornou pragmático-adaptativa, na qual o sobreviver expansivo do “eubjeto” funciona como contorno epistêmico de possibilidade e critério de validade do conhecimento. O problema é que, à falta de um Absoluto Pessoal de ancoragem, um “saber é poder” que outrora encontrou ocasião no Estado laico pode degenerar num “poder é saber” que reengendre as formas de um Estado lacaio. Com efeito, o eclipse da pessoa faz naufragar as diferenças entre os entes, que se tornam meramente quantitativas, sem solução de continuidade ontológica entre nós e um inseto (A Metamorfose de Kafka) ou entre nós e uma galinha (senscientismo de Peter Singer) ou entre Bacon e bacon. Como representado na shadow art, a pessoa flagrada em segundo plano não passa de uma sombra de objeto na parede. Em sentido radical, só existem então interações de tipo isso-isso, sem paralelo nas categorias relacionais de Martin Buber.

Nas acertadas palavras do rabino Abraham J. Heschel (2010, p. 40), “na Idade Média os pensadores tentavam obter provas da existência de Deus. Hoje procuramos buscar provas da existência do homem”. Pois bem, foi justamente isso que não se logrou provar. A despeito de nossa sensibilidade facilmente impressionável por ficções religiosas, o positivismo do objeto gerou o negativismo da pessoa, segundo o qual nada há que esteja por detrás do “boneco de carne” insculpido no tempo pelas mãos do acaso e animado, por dentro e por fora, pelas cordas de qualquer determinismo reducionista que acachape o ser humano aos diferentes tipos de menoridade pós-iluminista. Pode procurar com as luzes neuroelétricas da razão, não há saída do labirinto coisificante da imanência, a tentativa de dar um salto para um suposto lado de lá da natureza, para buscar se acomodar no colo hiperplástico de um historicismo, também não nos socorre em toda a nossa envergadura. No limite, sem uma Verticalidade suficiente para recepcionar a personalidade em sua integridade, a própria produção científica fica refém do curto-circuito da horizontalidade e acaba se dobrando diante da absolutização de aspectos da experiência espaço-temporal, produzindo seus próprios ídolos deformantes.

A questão com repercussão axiológica fundamental é que combinações aleatórias físico-quimicamente decantadas não podem conferir dignidade intrínseca à fiosionomia alguma, seja a uma estalactite em forma de gente, seja a um espantalho com aptidão para o simbólico, valha-se você do consolo intelectual ou acordo semiótico que quiser. Bastaria dar uma visada no retrovisor da história para que acontecimentos indizíveis acendessem a luz vermelha da nossa imaginação moral diante das cenas que podem se desenrolar na esteira de uma dramaturgia de marionetes. Conquanto não se trate propriamente de uma distopia, mas de uma nova abertura epocal, mais do que nunca, com a derrogação dessa última e maior superstição do ser pessoa – e, com ela, da capacidade de autotrascendência sobrenatural do eu, da liberdade, da responsabilidade, de uma razão capaz de perscrutar o nível ontológico dos entes etc. – ficamos diante de um novo e desafiador horizonte objetal. Sem uma teologia pública da Pessoa para suportar uma antropologia de mesmo corte, resta-nos o paradoxo de tentar manter uma normatividade ético-jurídica de proteção da dignidade da “pessoa” humana num mundo sem pessoa.

Referências Bibliográficas

HESCHEL, Abraham J. Quem é o Homem? 1. ed. São Paulo: Triom, 2010.

MARÍAS, Julián. A Perspectiva Cristã. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. TOURNIER, Paul. Mitos e Neuroses: desarmonia da vida moderna. 1. ed. Viçosa: ABU e Ultimato, 2002.

Imagem: Carina Nebula (Hubble/Nasa)

Sobre o autor

Felipe de Souza Silva

Graduado em Direito e Filosofia. Pesquisador do Núcleo de Estudos Agostinianos do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.