Núcleo de Filosofia Política

Profetas da catástrofe: os ungidos da direita

É comum encontrar na extremidade esquerda do espectro político profecias sociais catastróficas – tais como as narrativas apocalípticas de destruição do meio ambiente ou as de aumento da desigualdade e pobreza graças aos capitalistas gananciosos –, e soluções políticas categóricas para esses problemas – como o Green New Deal americano ou a taxação de grandes fortunas. Essa encerrada visão de mundo atrai defensores convictos ocidente afora e abundam trabalhos de qualidade que visam dissecar essa visão isoladamente.

O mesmo, porém, parece não se verificar para a visão diametralmente oposta, qual seja, a dos profetas da catástrofe social do outro lado do espectro político, que denominaremos pseudo conservadores ungidos – um subgrupo de uma categoria mais ampla comumente chamada de “reacionários”. É esse grupo que pretendo analisar. A visão canhota servirá para fins comparativos, elucidando as diferenças e semelhanças encontradas nos dois extremos, e para termos em perspectiva o quadro mais amplo das manifestações do catastrofismo social nessas duas extremidades.

Antes de começarmos, convém explicar a escolha do prefixo “pseudo” na denominação do nosso objeto de análise: ele se faz necessário para deixar claro que não se trata de adeptos do conservadorismo como este é entendido na rica tradição intelectual inglesa – e isso ficará claro adiante. Apesar de frequentemente se identificarem como conservadores em discussões políticas, trata-se, muitas vezes, de impostores geralmente inconscientes de sua própria condição. E isso fica claro porque, diferentemente dos conservadores políticos, eles costumam ser “tão radicais quanto os revolucionários e não menos firmemente presos nas garras da imaginação histórica”[1], como explica o cientista político e historiador de ideias Mark Lilla, ao se referir à categoria mais ampla dos reacionários. Para o autor, o fato de que eles não são conservadores “é a primeira coisa que se deve entender a seu respeito”.

O que define então a figura do pseudo conservador ungido? Podemos começar por um de seus traços mais característicos, que ele compartilha com o progressista ungido, sua contraparte à esquerda: a convicção excessiva em sua capacidade de compreender os fenômenos sociais. Ele acredita ter encontrado todas as respostas para os problemas sociais mais fundamentais, ou ao menos as melhores respostas existentes no mundo conhecido ou mesmo no mundo potencial. Enquanto para o progressista ungido a solução para os problemas do mundo está no avanço deliberado em direção a um estado futuro utópico que será artificialmente construído pelo planejamento humano consciente, para o pseudo conservador ungido, a solução está no regresso a um estado anterior idealizado, mais real na mente dele do que na história observada. Para ambos, chegar em tal estado exige o sacrifício das instituições existentes – as corruptoras da ordem social – e a virtual eliminação da corrente política opositora, diagnosticada como a fonte de todo mal, genitora das mazelas sociais mais agudas.

Ambos acreditam que dominam as melhores ferramentas disponíveis necessárias para apreender e analisar os fenômenos sociais e processar com perfeição as informações pertinentes, convertendo-as em conhecimento e chegando a conclusões certeiras e elementares, mesmo sobre os eventos mais complexos. Suas vastas convicções e certezas, portanto, são característica distintiva inerente a ambos os pensamentos.

Ademais, as duas figuras, quando entram em algum debate relativo às suas crenças, fazem-no exclusivamente para evangelizar. São apologistas que, em verdade, não têm interesse nenhum em discutir ideias que se desviem minimamente das suas, pois não acreditam ser possível aprender algo debatendo com alguém de visão oposta – e muitas vezes nem com alguém de visão semelhante, mas não idêntica.

Diferentemente de conservadores políticos, o pseudo conservador ungido é dogmático e abraça o conservadorismo como uma ideologia, não percebendo a evidente contradição em sua resolução, visto que a aversão às ideologias – por suas limitações intrínsecas e seu encerramento característico – é justamente um dos alicerces da filosofia política conservadora, cética até os ossos. Ele é verdadeiramente incapaz de enxergar qualquer fenômeno social por uma perspectiva diferente da sua – aquilo que Ortega y Gasset brilhantemente cunhou de hemiplegia moral,[2] a paralisia parcial de nossas capacidades morais. Aqui, mais uma vez, o mesmo é verdade para a sua contraparte à esquerda.

Essa moralidade aleijada leva o pseudo conservador ungido a enxergar a guerra política como prática capital. Suas estratégias são mandamentos, sua aplicação, um imperativo moral. Ela é o guia que orienta seu comportamento em sociedade. Se seus estratagemas lhe orientam que minta (pois o inimigo mente, e isso o colocaria em vantagem), ele mentirá; se lhe sugerem que ofenda, ele ofenderá; se lhe exigirem que persiga, que difame, que agrida, assim o fará, mesmo que isso signifique desobedecer a regras, princípios e mandamentos que lhe são supostamente caros e sem os quais, segundo ele próprio, a sociedade não poderia sobreviver. Nesse aspecto, mais uma vez ele se iguala ao seu opositor radical, ao justificar os meios pelos fins e sacrificar a verdade em nome do pragmatismo cego, confirmando a máxima schumpeteriana segundo a qual “a primeira coisa que um homem fará pelos seus ideais é mentir”. E aqui cabe observar com máxima ênfase: é difícil imaginar algo mais contrário à conduta conservadora (em sentido amplo) do que essa renúncia deliberada da própria verdade, elemento central, por exemplo, da teologia cristã – supostamente tão cara a tantos desses impostores –, pela crença no expediente da mentira como estrategicamente mais vantajosa.

Sob o primado da guerra política, todos os membros da sociedade são categorizados como aliados ou inimigos. Não há espaço para temperança, ponderação, autocrítica ou debate. Não há espaço para qualquer visão complexa dos fenômenos sociais e políticos, apenas para uma visão míope, vulgar e primitiva: nós somos os anjos; todos os outros são demônios. Michael Oakeshott nos ajudou a entender esse problema, lançando mão de uma brilhante metáfora, quando escreveu que “assim como aqueles que perseguem o cálido verão pensando somente que estão escapando do inverno, e esquecem que também estão perdendo as outras estações, quem abraça o extremo na política acaba compreendendo apenas a política dos extremos.”[3] É uma atitude diametralmente oposta àquela que propiciou o avanço humano em termos de desenvolvimento econômico e social no ocidente democrático, qual seja, a de que o conhecimento e a melhoria só são alcançáveis por sociedades tolerantes e dinâmicas que fomentam o debate aberto de ideias, com o objetivo de avançá-las e não de encerrá-las.

Esse fanatismo político alimenta um padrão de comportamento tribal e irracional: preocupado em estabelecer um grupo homogêneo e coeso, o pseudo conservador ungido se concentra na preservação e proteção da tribo; não da razão, da busca pela verdade ou da soberania do indivíduo diante da opressão coletiva. Ele se torna presa fácil do encanto de figuras políticas que incorporem seu ódio ao inimigo e sua paixão e cegueira ideológicas. Ele acredita estar do lado do bem, enquanto todo o resto é o mal encarnado; ele e seus pares são os únicos seres morais: todos os demais são inferiores e não merecedores de qualquer respeito, apenas hostilidade, zombaria e exclusão.

Sua tendência ao obscurantismo, ao apego a um conjunto estático de tradições e costumes e à dependência absoluta de uma grande narrativa única pela qual enxergar os tempos e a própria existência resulta em uma interpretação rasa e monocromática da história (bem como um pendor ao revisionismo histórico tendencioso) e em uma visão plana do ser humano como espécie – o que ajuda a explicar sua aversão ao pensamento científico e sua dificuldade em compreender a ideia de evolução.

Sua contrapartida canhota secular e herdeira do racionalismo e do cientificismo, por outro lado, é cega aos limites do conhecimento individual, apressando-se em descartar o conhecimento acumulado dos seus antepassados, transmitido através de costumes, tradições e instituições sociais e gestado através dos milênios por processos de tentativa e erro de diversas gerações no laboratório da história. Ela é incapaz, portanto, de entender os processos que originaram as estruturas fundamentais que ordenam e dão sentido à nossa vida em sociedade – estado de direito, economia de mercado, princípios morais, linguagem, arte etc –, preferindo a implementação de algum modelo de organização social deliberadamente projetado. A história lhe é, nesse sentido (experiência dos antepassados), quase descartável ou, em certos casos, usada de maneira instrumental para avançar uma narrativa política teleológica. Sua visão da natureza humana é o extremo oposto da visão estacionária do seu antagonista: o homem é facilmente moldável e perfectível, basta que se mudem deliberadamente as estruturas sociais, econômicas e políticas.

Enquanto o pseudo conservador ungido é incapaz de orbitar o mundo contemporâneo porque acredita que forças modernas malignas e possivelmente diabólicas nos desviaram de um estado ideal passado, em que ele fantasia viver e busca reconstruir no presente, o progressista ungido é incapaz de orbitá-lo porque crê que certas forças maquiavélicas e arcaicas que habitam o mundo desde sempre nos impedem de criar a sociedade ideal, em que ele fantasia viver e busca construir no futuro.

Ambos enxergam o mundo através de uma lente ideológica que projeta uma falsa dicotomia, quando a realidade é infinitamente mais complexa, formada por fenômenos sociais multifacetados. Ambos caem em um tipo de armadilha coletivista, incapacitando-os de enxergar os indivíduos, únicos e insubstituíveis, existentes dentro de cada corpo humano. E ambos devem ser reconhecidos em nossa seara política e estudados para que saibamos reconhecer as ameaças que se precipitam sobre as sociedades democráticas livres vindas de diferentes direções.

Referências bibliográficas

LILLA, Mark. A Mente Naufragada – Sobre o Espírito Reacionário, Rio de Janeiro: Record, Tradução: Clóvis Marques, 2018.

ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Vide Editorial, Tradução: Felipe Denardi, 2016.

OAKESHOTT, Michael. A Política da Fé e a Política do Ceticismo. São Paulo: É Realizações, Tradução: Daniel Lena Marchiori Neto, 2018.

[1] LILLA, 2018, p. 11.

[2] ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 61.

[3] OAKESHOTT, 2018, p. 43.

Imagem: montagem / iStockphoto e Corel

Sobre o autor

Lucas Corrêa

Graduado em Comunicação Social pela PUC-RS. Pesquisador do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.