Arte Sacra Contemporânea: Religião e História

A representação da Natividade na arte ao longo dos séculos

Figura 1: Natividade. Detalhe do teto da Igreja de São Martinho. Século XII. Zillis, Suíça
[crédito: Renzo Dionigi]


O tema da Natividade remonta aos primeiros séculos do cristianismo. Segundo São Máximo, o Confessor (580-662), é o centro ao qual convergem todas as linhas do cosmos, por isso, as primeiras imagens da Natividade colocavam em evidência a manjedoura de Jesus.[1] A manjedoura é o lugar para onde os animais voltam sempre para se alimentar. Por isso, Jesus nasce e ali aninhado já antecipa que se dará em alimento no sacramento da Eucaristia.

A Natividade é a cena anunciada pelo Evangelista Lucas (Lc 2, 10), uma grande alegria ao mundo. O nascimento de Jesus aconteceu em uma gruta, na montanha que representa um dos lugares privilegiados das Sagradas Escrituras para as revelações de Deus, porém a gruta é o ponto mais baixo da kenosis divina, pois a escuridão é o símbolo do pecado. Jesus nasce nesse lugar sombrio, aquecido pelos animais, porque veio assumir para si o mal do mundo.[2]

Nas catacumbas, encontramos o afresco considerado, até agora, a mais antiga imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus à frente de Balaão, que aponta ao céu profetizando a vinda do Messias. Esse afresco nos aponta que os primeiros cristãos entendiam que a vinda de Jesus fora prenunciada nos livros sagrados do povo hebreu.

Figura 2: Maria com o Menino e Balaão. Século III. Catacumba de Priscila, Roma
[crédito: ACI Stampa]


A história dos Magos vindos do Oriente encontra uma importante chave de interpretação na antiga narrativa do Balaão[3]. “Eu o vejo, mas não é agora; eu o contemplo, mas não de perto: uma estrela avança de Jacó, um cetro se levanta de Israel” (Num 24, 17).

O vidente pagão é conduzido por Deus a reconhecer o Messias que surgirá de Israel. Mas este reconhecimento não se dá sem acontecimentos traumáticos. É a passagem jocosa da mula de Balaão.

O breve relato tem o encanto de um conto popular. Para lê-lo corretamente é importante observar ou enxergar a ironia da passagem, feita de simetrias e de oposições. O Senhor se irrita com o adivinho, o adivinho com sua jumenta; maneja o bordão na falta de punhal, ao passo que o anjo tem a espada desembainhada; o homem se deixa arrebatar pela paixão, a jumenta procura trazê-lo à razão; o adivinho não percebe a presença sobre-humana, a jumenta a vê e reconhece; o Senhor abre a boca da jumenta e os olhos do adivinho; no final, a humildade tranquila do animal, tratado a pauladas, salva a vida do amo violento.[4]

É possível que Deus queira nos falar quando nossa vida parece “empacada como uma mula”. Para isto é necessário deixar de lado as paixões, ter uma atitude humilde e seguir a estrela mesmo quando ela é incômoda e conduz nossa vida para outros rumos.

Figura 3: Ícone da Natividade. Século XVI. Novgorod. Museu Hermitage. São Petersburgo, Rússia
[crédito: The State Hermitage Museum]


A partir do século VI, progressivamente há uma mudança na composição do quadro, o ícone torna-se decisivamente mariano e a Theotòkos, a Mãe de Deus, passa a ocupar o posto principal, o conteúdo da imagem se amplia e praticamente resume a História da Salvação. Os Reis Magos representam a humanidade em busca do Paraíso; os pastores, representantes do povo eleito, próximo a Deus, ao anúncio dos anjos, vão adorar o Deus que desceu à Terra. No centro está a gruta escura de Belém, que recebe o Menino Jesus que é a Luz do mundo. A Virgem Maria, em destaque próxima ao Menino, é a oferta da humanidade para que Deus realize a obra da Salvação, o envio de seu Filho, Jesus, Deus-Homem. Há muito mais a se falar sobre a rica simbologia desse ícone.

No Primeiro Milênio, os artistas eram artesãos, que trabalhavam para a Igreja e obedeciam, de certa forma, os cânones estabelecidos para realizarem suas obras, a arte era essencialmente simbólica.

Após o Humanismo e o Renascimento italiano, os artistas passaram a assinar suas obras, a pintura, a escultura deixaram de ser “artes mecânicas” para a categoria das “artes liberais”, o artista criava a partir da razão, ou seja, da sua ideia.

A arte da Igreja vai aos poucos deixando de ser simbólica para ser naturalista, os artistas colocam em suas obras todo o seu virtuosismo e expressam suas qualidades individuais e domínio da técnica: nascem os virtuosos das artes.

A Natividade foi retratada por muitos virtuosos, pois o Ocidente era cristão, e a Igreja a grande mecenas das artes. Se quisermos um marco para essa mudança podemos citar Giotto Di Bondone (1266-1337).

Figura 4: Giotto di Bondone. Natividade. 1303-1305. Capela dos Scrovegni. Pádua, Itália
[crédito: Regione del Veneto]


Com o princípio da perspectiva e submetendo as figuras ao espaço, o fundo dourado, que representava o Paraíso onde a luz nunca se apaga e não há sombra, deu lugar às paisagens naturalistas. Os artistas passam a retratar o ambiente quotidiano, o céu agora é azul, como é aqui na terra, os personagens se apresentam segundo os costumes da época. A arte vai deixando de ser litúrgica para se tornar arte com tema religioso.

A arte no Renascimento alcançou o ápice da perfeição estética, isso é inegável. No entanto, temos que lembrar que, liturgicamente falando, essa arte bela e perfeita é mais apropriada para lugares públicos, salões, palácios. A consequência foi o empobrecimento gradativo da visão teológica, litúrgica e de comunhão dos fiéis que se voltavam mais à devoção, aspecto subjetivo religioso.

Figura 5: Piero della Francesca. Natividade. Século XV. National Gallery, Londres
[crédito: The Arts Desk]
Figura 6: Sandro Botticelli. Natividade Mística. 1501. National Gallery, Londres
[crédito: Widipedia]
Figura 7:  Lorenzo Lotto. A Natividade. 1523. National Gallery of Art . Washington, EUA
[crédito: National Gallery of Art]
Figura 8: Jacopo Tintoretto. Natividade. (1550-1570). Museum of Fine Arts. Boston, EUA
[crédito: Wikipedia]
Figura 9:  Michelangelo Caravaggio. Natividade com São Francisco e São Lourenço. 1600. Oratório São Lourenço. Palermo, Itália (parece que atualmente desaparecida)
[crédito: Wikipedia]


A partir dos séculos XIX e XX, artistas modernos vão deixando o naturalismo e trazendo novamente a beleza do simbólico à arte. Podemos citar Paul Gauguin e Marc Chagall. No Brasil, Fulvio Pennacchi e muitos outros.

Figura 10: Paul Gauguin. Be Be (A Natividade). 1896. Museu Hermitage. São Petersburgo, Rússia
[crédito: The State Hermitage Museum]
Figura 11: Marc Chagall. Crucificação Mística. 1950. Hill Museum and Manuscript Library. Minnesota, EUA
[crédito: Russian Art & Culture]


Na arte moderna e naif brasileiras, a representação da Natividade é bela e riquíssima. Artistas como Djanira, Fulvio Pennacchi, Raimundo Nonato de Oliveira e Clóvis Graciano nos apresentam suas obras em explosão de cores que remetem ao nosso Natal tropical.

Figura 12: Djanira da Motta. Natividade. 1968
[crédito: Associação Filatélica e Numismática de Brasília]
Figura 13: Fulvio Penacchi. Natividade. 1947
[crédito: ArtArte]
Figura 14: Raimundo Nonato de Oliveira. Natal brasileiro. 1989
[crédito: Associação Filatélica e Numismática de Brasília]
Figura 15: Clóvis Graciano. Sem título (Natal). 1972
[crédito: Associação Filatélica e Numismática de Brasília]


O Concílio Ecumênico Vaticano II deixa clara uma mudança quando fala da importância das artes como serviço litúrgico, está em documentos da Igreja. Para complementar, temos a “Mensagem aos Artistas” (1965) do Papa Paulo VI e a “Carta aos Artistas” (1999) de São João Paulo II.

Vale lembrar que, quando o cristianismo começou como fenômeno histórico na época do Império Romano, a arte estava na quarta fase do Clássico. A ideia da perfeição era esculpida na pedra. Foi quando nasceram as esculturas de Vênus, Apolo, dentre outras que sobreviveram ao tempo, belas, perfeitas. No entanto, os cristãos não aceitaram essa arte, entenderam que Cristo não é uma ideia, mas uma pessoa, por isso a arte cristã começa nas catacumbas, lugar da morte, porque Cristo venceu a morte. A perfeição não está na ideia humana, mas em Cristo.

O Concílio Vaticano II já comemorou 50 anos e artistas que entenderam seus desígnios, há anos, causaram muito estranhamento ao apresentar suas obras. No Brasil, o artista paulistano Cláudio Pastro (1948-2016), um pioneiro que desde os anos 80, colocou sua arte nas igrejas, inspirando-se nas artes — paleocristã, Bizantina, Românica e na arte Moderna — sem deixar de observar principalmente os documentos conciliares. Seu legado continua nos traços dos muitos discípulos e seguidores que deixou. Sua maior obra foi a parte interna da Basílica do Santuário Nacional de Aparecida de 1999 a 2016.

Na Europa, o padre jesuíta esloveno Marko Ivan Rupnik (1954-) dirige o Centro de Arte Espiritual Aletti (Roma), desde que revestiu as paredes da Capela Redemptoris Mater no Vaticano, a pedido do Papa São João Paulo II, e tem realizado mosaicos em comunhão com outros artistas de várias nacionalidades em igrejas, catedrais e santuários da Europa, Américas e Austrália. No Brasil, seu trabalho pode ser visto na Catedral de Castanhal, no Pará. As quatro fachadas externas do Santuário Nacional de Aparecida serão revestidas pelos mosaicos do Centro Aletti, sob a direção do Pe. Rupnik.

Muitos artistas sacros contemporâneos já aderiram à arte simples, bela e simbólica sugerida pelos documentos conciliares e cartas episcopais. Não posso deixar de falar das muitas Natividades deixadas por Cláudio Pastro e dos mosaicos do Centro Aletti dirigido pelo padre Marko Rupnik. Artistas que se inspiram na arte do Primeiro Milênio, na arte moderna e no Concílio Vaticano II. Apresentam suas Natividades com simplicidade e de forma simbólica. Contemplem.

Figura 16: Cláudio Pastro. Natividade. 1993. Capela do Colégio Nossa Senhora do Rosário. São Paulo/SP
[arquivo pessoal]
Figura 17: Cláudio Pastro. Natividade. 1997. Catedral da Sagrada Família. Campo Limpo/SP
[arquivo pessoal]
Figura 18:  Marko Ivan Rupnik. Natividade. 2015. Santuário Nacional de São João Paulo II. Washington, EUA
[arquivo pessoal]
Figura 19: Marko Ivan Rupnik. Natividade. 2007. Capela das Irmãs Adoradoras do Santíssimo Sacramento. Lenno, Itália
[crédito: Camminava con loro]
Figura 20:  Marko Ivan Rupnik. Igreja Inferior de São Pio de Pietrelcina. 2009-2013. San Giovanni Rotondo, Itália
[arquivo pessoal]
Figura 21: Marko Ivan Rupnik. Natividade. 2011. Batistério da Catedral de São Sebastião. Bratislava, Eslováquia
[arquivo San Paolo Store]

Bibliografia

Marko I RUPNIK; Maria CAMPATELLI; Sebastian BROCK. Mosaici della Madre di Dio: dell’Atelier del Centro Aletti. Roma; Edizione Lipa, 2009.

Tomás SPIDLIK; Marko Ivan RUPNIK. La fede secondo le ícone. Roma; Edizione Lipa, 2017.

[1] Cf. Tomás SPIDLIK; Marko Ivan RUPNIK. La fede secondo le ícone. Roma; Edizione Lipa, 2017. 3ª Ed. p.35.

[2] Cf. Marko I RUPNIK; Maria CAMPATELLI; Sebastian BROCK. Mosaici della Madre di Dio: dell’Atelier del Centro Aletti. Roma; Edizione Lipa, 2009. p. 26.

[3] Balaão foi um adivinho contratado pelo rei Balaque para amaldiçoar Israel, mas que acabou por abençoar o povo.

[4] Padre Luis Alonso Schöckel, Notas à Bíblia do peregrino, Números 22,21, Paulus, 1997.

Sobre o autor

Wilma Steagall De Tommaso

Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora no Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS SP). Membro Pesquisadora da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião (SOTER). Coordenadora do grupo de pesquisa Arte Sacra Contemporânea: Religião e História, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.