
Durante o meu mestrado, pude estudar as influências que a Rússia de Dostoiévski – com seu contexto social e seus intelectuais – tiveram sobre a obra do autor de Memórias do Subsolo. Naquele momento, percebi o quanto a escrita de Dostoiévski se mesclava com intensos debates de ideias e valores. Percebi que, quando aprendi psicanálise, durante minha graduação, pouco mergulhei no contexto de discussão das obras dos diversos autores que compõem esse campo de pensamento e o possível diálogo decorrente desta aproximação.
Pensando nessa possibilidade de interlocução, este texto tem a proposta de colocar em diálogo a postura do psicanalista inglês Donald Winnicott (1999), descrita em seu texto Discussão dos objetivos da guerra, escrito em 1969, publicado no livro Tudo começa em Casa, com as discussões sobre liberdade realizadas pelo filósofo político Isaiah Berlin (1981), sobretudo as noções de liberdade negativa e positiva descritas em sua aula Dois conceitos de liberdade, realizada em 1958. Não tenho a pretensão de traçar em pormenores essa relação, mas indicar uma ponte entre esses dois autores que viveram a metade do século XX em terras inglesas e descreveram uma posição paradoxal, e à revelia de uma postura utópica, acerca da liberdade.
No texto Discussão sobre os objetivos da guerra, Winnicott (1999) discute a postura em relação a alguns líderes autoritários da época, como Hitler e Mussolini, ressaltando o comportamento infantilizado demandado pela adoração e confiança plena em uma única figura que esses regimes propõem. E é justamente nesse contexto que se insere sua observação sobre a liberdade. Winnicott descreve que, ainda que muitos defendam aos quatro cantos a liberdade, na realidade, eles não a querem tanto assim.
Aberto ao paradoxo, Winnicott (1999) afirma que a experiência de uma liberdade total é terrivelmente angustiante, e, em alguns momentos, entregar a própria liberdade na mão de uma outra pessoa é um grande alívio. Seria próprio da experiência do amadurecimento a possibilidade de encarar a liberdade como esta experiência ambígua, que ora é necessária, ora se deixa escapar. Diferente disso, defesas radicais e polarizadas, tanto da privação quanto da idealização da liberdade, culminariam em visões que impediriam este aspecto maleável da experiência de ser livre.
Após essa leitura, dias depois, deparei-me com uma aula sobre Isaiah Berlin (promovida pelo LABÔ e ministrada por Leandro Bachega e Jonathan Goudinho). Fiquei impressionado com a proximidade e complementaridade do debate sobre a liberdade em ambos os autores. Suas posturas coadunam-se naquilo que Berlin (2019) chama de pluralismo – a realidade de os seres humanos terem valores diferentes, os quais podem ser incompatíveis entre si.
Berlin (2019) entendia que a incompatibilidade entre valores, em diferentes culturas e pessoas, não impedia que elas se colocassem em diálogo e dispostas à compreensão das verdades alheias. Entretanto, para isso, seria necessário considerar a questão da tolerância. Negar a liberdade do outro de possuir crenças diferentes das minhas seria privá-lo de sua possibilidade de ser diferente, de escolher outros caminhos para sua vida e, mesmo, desejar outros rumos para a humanidade.
Em sua aula Dois conceitos sobre liberdade, transcrita na obra Quatro ensaios sobre a liberdade (1981), Berlin destaca duas formas de liberdade. A primeira é a liberdade positiva, que designa a capacidade de renunciar a situações imediatas em prol de um benefício comum. A segunda é a liberdade negativa, em que o filósofo analisa a possibilidade de sermos livres diante das limitações que um Estado nos impõe. Ambas possuem riscos, uma vez que tanto é possível que um governo cometa violências em um nome de um “bem maior”, quanto ele pode criar leis que cerceiam os direitos de expressão.
Atualmente, podemos considerar que a liberdade positiva está em jogo quando percebemos explicações totalitárias de nossa realidade, que buscam excluir as diferentes possibilidades de compreender valores e estabelecer diálogos a partir disso. A própria polarização política que vivemos nos últimos anos, leva-nos a perceber posições que negam a liberdade alheia a partir de concepções pessoais que se expressam como um imperativo universal. Afirmações como “pobre de direita é burrice” ou a solicitação de “intervenção militar já” expressam nossa dificuldade em aceitar o pluralismo e buscar impor nossas verdades àqueles que pensam diferente.
Uma outra forma de buscar impor uma normativa de valores é a partir de um discurso travestido de soberania científica para escamotear a divergência de perspectivas, como na alegação de que “tal político deve ser tirado do cargo porque tem traços de psicopatia” (quando o que se identifica são opiniões diferentes e não um diagnóstico médico). Um outro inglês, o médico e cronista Theodore Dalrymple (2017), nos alerta em seu livro Evasivas admiráveis – como a psicologia subverte a moralidade, a respeito de como as áreas “psi” são facilmente manipuláveis para dizermos aquilo que queremos ao abrigo da robustez de conceitos, experimentos e interpretações enviesadas sob determinados valores conforme as demandas de uma época.
Dessa forma, tal como Winnicott, Berlin percebe que a liberdade, segundo determinados discursos, também pode ser traiçoeira e ambígua e que, inevitavelmente, traz riscos em seu exercício. Um outro risco, de acordo com Berlin (1981), ocorreria diante da possibilidade da entrega da liberdade individual de uma pessoa nas mãos de um terceiro, como acontece nos regimes e governos autoritários. Nesse caso, seria a liberdade negativa que estaria em jogo, pois, ao reduzir formas de expressão, busca-se garantir uma segurança utópica por meio de medidas restritivas sob a tutela de uma ordem política.
Assim, tal como Winnicott pontuou, a liberdade como projeto idealizado não nos permite encará-la em seu caráter paradoxal, necessário para a reflexão sobre nossas ações e os caminhos que a humanidade percorre. Berlin parece acompanhar esse posicionamento, contribuindo com uma discussão que distingue duas formas de liberdade, e apontando que a utopia de uma liberdade harmoniosa parece ser mais um sonho do que uma realidade possível.
Nesse sentido, abrigar o paradoxo da liberdade defendido por ambos os autores como parte da condição humana é estar aberto para as diferentes verdades que podem orientar a vida das pessoas e, simultaneamente, poder encarar a partir da responsabilidade e da coragem as incertezas que cercam nossas apostas naquilo em que acreditamos. O pensamento de ambos nos mostra que agarrar-se a certezas pode ser uma forma de minar a própria liberdade, mas correr esse risco é experimentar a pluralidade humana em sua plenitude.
Bibliografia
BERLIN, Isaiah. Uma mensagem para o século XXI. Âyiné: Belo Horizonte, 2019.
___________. Quatro ensaios sobre a liberdade. Universidade de Brasília: Brasília, 1981.
DALRYMPLE, Theodore. Evasivas admiráveis – como a psicologia subverte a moralidade. É Realizações: São Paulo, 2017.
WINNICOTT, Donald. Tudo começa em casa. Martins Fontes: São Paulo, 1999.
Imagem: colagem/divulgação