Estudos Agostinianos

Nietzsche e Agostinho dominados pelo Eros

Pênia [Carência], então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Poros [Recurso], deita-se ao seu lado e pronto concebe o Eros (Amor)” (Platão, Banquete 203 b.)

A icônica passagem que abre este texto é de um clássico da filosofia, consistindo em uma tentativa de explicar um dos sentimentos mais fundamentais da vida humana: o amor. E é também uma clarificação do conceito de filósofo, pois ser filósofo é como ser o Eros para Platão, é estar entre o sábio (deuses) e os ignorantes (homens). O amor tem essa função por estar entre a completa realização de sua pulsão e a falta constante, ou seja, o amor erótico implica vontade e prazer. Disso, Agostinho (354-430) e Nietzsche (1844-1900) entendiam bem!

Nietzsche, o filósofo alemão que deseja esta vida e seus prazeres, despreza Sócrates e Platão, culpando-os por todos os males do mundo, pois os dois sofriam da mesma doença: estarem fartos da vida.[1] Os prazeres são justamente esses impulsos de vida, antitéticos à filosofia de Platão, que projeta outro mundo, sendo este apenas uma cópia de um outro mundo – por sua vez, real, verdadeiro e de Sumo bem[2].

A negação da vida feita por Platão é, na visão de Nietzsche, um dos grandes males da humanidade. É ela que faz os fracos se unirem, e, pior, reprime os que nasceram fortes. Estes não têm medo de viver, não criam uma moral e vencem pelo ressentimento, vivem na Vontade de Poder, isto é, apenas vivem, pois “o ser não temos nenhuma outra representação disso, a não ser ‘viver’”[3]. Eles vivem em contrapartida àquela Negação da Vontade de Viver de Schopenhauer, que prezava, como a única saída, a melancolia da vida, representada na carência eterna, na falta de realização completa, na negação dos santos. Para Schopenhauer, já que não podemos ficar satisfeitos, não devemos nem ter vontade. Dessa forma, não ficaríamos infelizes. Em uma metáfora, devemos negar a fome ao invés de comer. Nietzsche diagnostica isso como uma doença: “se não vamos ficar satisfeitos ao comer, que comamos sem parar”.

O corpo e os prazeres, que nada mais são do que as impressões que o corpo sofre e que subjetivamente validamos como positivas, são fundamentais aqui. Essa doença de negar a vida “terrena” tem a sua origem no platonismo. Para esta corrente, o corpo seria como um “cárcere da alma”. Em Crátilo e Fédon[4], vemos que a palavra grega soma (σομα), ou seja, corpo, tem uma conotação puramente pejorativa.

Ora, Nietzsche observa que essa posição dominou todo o ocidente, principalmente por causa do cristianismo. Para ele, o cristianismo seria apenas um platonismo para o povo[5]. Agostinho, para Nietzsche, seria o maior divulgador cristão dessa doença de negação da Vida e do prazer[6]; sendo Pascal apenas um sintoma. O cristão, por ter se prendido ao conceito de pecado, fez do mundo um lugar “repleto de coisas odiosas e do que se deve combater eternamente[7], negando a vida e impedindo todos de viverem, sendo um ressentido e covarde, pois quer fazer aquilo que nega, mas é fraco para agir, e, pior, impede os outros de consumarem a vida.

Mas será que Agostinho é tão platônico e contra o prazer assim? Vejamos.

Agostinho de Hipona, Santo Agostinho, ou Bispo de Hipona, é uma das personalidades cristãs mais influentes da história; mesmo para aqueles não cristãos. É possível afirmar que nenhuma outra personalidade amou tanto a vida carnal quanto ele – nem Francisco de Assis antes de sua conversão. Agostinho chegou a ter uma crença, o maniqueísmo, que justificava a sua culpa, pois essa crença estabelecia que “não éramos nós que pecávamos, mas alguma natureza estabelecida em nós – matéria que era oriunda de um deus mau. O fato de estar sem culpa e de não dever confessar o mal após tê-lo cometido satisfazia meu orgulho”.

Ou seja, ao invés de se culpar e curar, ele se desculpava (Confissões, V, 18). Agostinho também chegou a roubar “não para desfrutar do que roubava, mas pelo gosto de roubar, pelo pecado em si.” (Ibidem, II, 9). Desse modo, Agostinho, mais do que qualquer outro, é a prova do seu desejo de viver emoções, prazeres, paixões. Até que, nas andanças de sua vida, converte-se e chega à conclusão de que todos esses desejos insaciáveis são, na verdade, formas de buscar a Deus de modo invertido (Ibidem, II, 14), sendo Deus infinito o único que pode saciar a vontade infinita. Assim, vemos como a vontade e o prazer são preponderantes ao Santo de Hipona. Mas haveria algo mais? Teria esse santo se contaminado com a doença do platonismo?

É verdade que Agostinho, nos primeiros textos platônicos, como Contra os Acadêmicos, chama o corpo de “cárcere tenebroso” no qual a alma reside.[8] Não obstante, o que Agostinho descreve dessa forma não o é corpo, mas a sua corrupção pelo pecado original, do qual o Batismo e Cristo Jesus libertam os homens;[9] e não poderia ser diferente. Deus, sendo bom, não poderia criar algo mau, mas apenas algo bom. O mal não seria uma substância, ou seja, algo por si e em si, mas apenas o relativo negativo a algo bom[10]. Isso faz da morte, da corrupção ou da maldade apenas uma diminuição ou privação de um bem maior. Por exemplo, ter 10 ou 1000 reais será mau dependendo das circunstâncias, mas em si nenhum dos dois são maus. Desse modo, Agostinho não é tão pessimista com esse corpo e a matéria quanto os platônicos, pois Deus é bom e, na constituição ontológica, o Bem é o fundamento.

Como fica então a posição do corpo e da matéria? Agostinho parece ter aquela visão que chama o homem de homo totus, isto é, “compostos de duas partes, a alma e o corpo. A melhor é a alma, e a menos boa, o corpo”.[11] A razão dessa menor bondade do corpo é a queda, que, aliás, está enraizada na alma, pois ela é o princípio ativo de ação e por isso faz da passividade do corpo sua vítima.[12] Essa mácula na alma traz ao corpo, portanto, duas conclusões:

(1) Os seus prazeres seriam maiores se não estivessem decaídos, pois a queda é uma degradação do bem e do prazer, que é um bem. É possível, assim, dar-lhe uma função escatológica: todos os prazeres bons que sentimos aqui seriam um prelúdio dos prazeres que estão no último grau da atividade da alma.[13] É por ambicionar esse prazer máximo que vale a vida cristã.

(2) A ressurreição do corpo é a libertação total – corpo e alma – do homem por Deus, já que o corpo é o esposo da alma.[14]

Assim, Agostinho é um voluntarioso de mão cheia, um cristão dominado pelo Eros do sentir, um cristão que busca a beatitude, que é a máxima felicidade em qualquer sentido, não negando este mundo, mas dizendo “se achas aqui prazeroso, é porque não vistes aquilo!” Vendo este mundo em prol daquele outro, o Santo abraça mais possibilidades de prazer e felicidades do que Nietzsche, que é sempre carestia, necessidade, vontade, e nunca saciedade e gozo.


Notas

[1] Crepúsculo dos Ídolos, §II, 12.

[2] Ideias expressas reiteradamente em: Timeu 51-52 b; Fedro 247 c- 248; República VII 508b-509c.

[3] Nietzsche, em Vontade de Poder, §582.

[4] Especificamente Crátilo 400c e Fédon 62b.

[5] Ver o Além do Bem e do Ma §1.

[6] Vontade de Pode§24.

[7] ibidem § 351.

[8] Contra os Acadêmicos 3,9.

[9] Agostinho Salmos 141,18.

[10] Confissões, VII, 18.

[11] Solilóquios, II,21.

[12] Cidade de Deus, XIV,3.

[13] A Grandeza da Alma.

[14] Sermões, 155,13-15.

Imagem: montagem/divulgação

Sobre o autor

Willian Cardoso

Bacharel e pós-graduando em filosofia pela Faculdade de Teologia e Filosofia Paulo VI. Pesquisador do Núcleo de Estudos Agostinianos do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.