As mortes e as perdas são intrínsecas ao desenvolvimento humano, desde o nascimento até o fim da vida. Sabemos que a morte é sim um fato irrefutável, universal, ubíquo, inexorável e democrático; e que a vivência desse processo é sempre individual, nova e única. A temática da morte carrega os mistérios da finitude, nos provoca dúvidas, angústia, medo, curiosidade, desconforto e questionamentos existenciais. A morte está presente e sempre esteve em toda a parte, a natureza demonstra e traz a ideia de que tudo morre, mas também renasce.
Sendo assim, buscaremos nos orientar por um mito grego. Considerando que os mitos carregam verdades eternas sobre a natureza humana, dialogar com os seus símbolos é investigar o sentido da vida, de quem somos nós. De acordo com Jung (2013), a mitologia é a expressão do inconsciente coletivo. As histórias dos mitos tratam de princípios da psique que valem para qualquer época e qualquer lugar; são imagens primordiais do inconsciente coletivo comuns a toda a humanidade, desde os tempos mais remotos. Jung chamou estes princípios de arquétipos.
Escolhemos o mito de Perséfone e Deméter e contribuições da psicologia analítica de Jung como apoio para a reflexão sobre a inexorabilidade dos ciclos da natureza, considerando o processo vida, morte e renascimento – tendo em mente que toda a natureza se expressa em movimentos cíclicos no micro e no macrocosmos, ou seja, são fenômenos que se renovam de maneira constante. Como por exemplo: movimento do sol, ciclo das plantas, ciclo da lua e das marés, ciclo do relógio biológico, renovação celular, ciclo das ondas cerebrais, ciclo menstrual, ciclo da vida humana, ciclo astrológico, ciclo da água, do carbono, cadeia alimentar, ciclo do tempo.
Este mito nos convida a nos aproximar e apropriar desse movimento de peridiocidade relacionado às questões de vida e morte, as quais são também fenômenos da natureza. Quando falamos de morte, não podemos compreendê-la apenas de forma literal e concreta, mas também como mortes simbólicas, que abrangem aspectos mais amplos do fenômeno da perda, luto e transformação.
Sabemos que o homem está cada vez mais distante da natureza, afastando-se da vivência de seus próprios ciclos. Tendemos a distanciar nossa consciência dessa referência, não nos atentando a essa dinâmica permanente, a qual se faz sempre presente, querendo ou não, já que os ciclos são fenômenos que se renovam de maneira constante.
O ciclo da natureza e o mito de Deméter discutem como nos desenvolvemos e nos renovamos a partir das perdas e mortes (simbólicas ou concretas). A vida se desenvolve por meio de uma reciclagem constante: nascimento, morte, destruição, decomposição e possibilidades de novas estruturações. Às vezes, os processos de renovação podem ser vividos de maneira mais suave e gradual, como por exemplo o processo de renovação celular da pele, que a cada 28 dias se degrada e renasce de maneira imperceptível; o ciclo do dia, das estações do ano, entre outras. Outros são vividos de forma mais destrutiva e violenta; como, por exemplo um rompimento de vínculo significativo, o rapto de Perséfone e outros. Nossa vivência de morte e vida, o tempo de descoberta, de consciência de reconstrução são sempre únicos. Temos aspectos que crescem e se desenvolvem rápido, mas também aspectos que se desenvolvem de forma lenta e outros que nunca crescerão.
Antes de contar o mito, queremos apresentar, brevemente, Deméter.
Quem é Deméter?
Filha de Cronos e Réia, também conhecida como Ceres na mitologia romana, foi descrita no “Hino à Deméter”, de Homero. É a deusa da agricultura, fertilidade da terra, vegetação, regeneração e da colheita. Presenteou o homem com a arte de plantar, arar, colher, moer o trigo e fazer o pão. Rege os ciclos da natureza e de todas as coisas vivas. Relaciona-se, simbolicamente, à maternidade, isto é, a tudo que envolve o alimentar, plantio, cuidar, nutrir, fertilizar, desenvolver, crescer, assim como o destruir, morrer, colher e transformar. Ela é considerada uma deusa representante da Grande Mãe, que detém os ciclos de vida e morte, regendo as formas de reprodução e renovação da vida. Também é relacionada aos lugares do repouso de tudo o que morre, chamado “povo de Deméter”. (BRANDÃO, 1986; BOLEN, 1990; BARCELLOS, 2019)
Deméter é capaz de gerar e destruir, portanto, é simultaneamente uma deusa da vida e uma deusa da morte. Ela “Doa a vida e doa a morte, ao mesmo tempo” (BARCELLOS, 2019, p. 269.)
O MITO – de forma resumida
Perséfone estava colhendo flores no prado, quando foi atraída por um narciso surpreendentemente bonito. Ao estender a mão para pegá-lo, o solo fendeu-se diante dela. Das profundezas da terra, emergiu Hades, em sua carruagem de ouro puxada por cavalos pretos. Apoderou-se dela e afundou de volta para o abismo de forma tão rápida quanto tinha vindo. Perséfone lutou e gritou pela ajuda de Zeus, mas não veio nenhum auxílio.
Deméter ouviu o eco dos gritos de Perséfone e apressou-se por encontrá-la. Procurou sua filha raptada nove dias e nove noites, por terra e por mar. Em sua busca frenética, não parou para comer, dormir ou banhar-se.
Ao raiar do décimo dia, Deméter encontrou Hécate, deusa da lua escura e das encruzilhadas, que lhe sugeriu que poderiam ir juntas a Hélio, deus do sol. Hélio contou-lhes que Hades havia raptado Perséfone e a levara ao mundo das trevas para ser sua noiva, contra a sua vontade. Além disso, disse que o rapto e a violação de Perséfone tinham sido aprovados por Zeus. Falou à Deméter que parasse de chorar e aceitasse o que tinha acontecido; Hades, afinal de contas, “não era um genro sem valor”.
Deméter recusou o conselho. Ela agora sentia o ultraje e a traição de Zeus, como também mágoa. Retirou-se do monte Olimpo, disfarçou-se de mulher velha e vagou sem ser reconhecida pelas cidades e campos. Um dia, ela aproximou-se de Elêusis e encontrou um trabalho como babá do filho de Metanira, chamado Demafonte. Sob os cuidados de Deméter, Demafonte cresceu como deus. A deusa tentou torná-lo imortal, alimentando-o com ambrosia e colocando-o secretamente no fogo, até Metanira descobrir e impedir. Deméter reagiu com fúria, censurou Metanira por sua estupidez, e revelou sua verdadeira identidade divina.
Imediatamente, Deméter ordenou que fosse construído um templo em sua honra. Lá, ela se instalou e permaneceu sozinha, inativa com seu pesar por sua filha raptada. Triste e irada, recusou-se a entrar em ação. Como consequência, nada podia nascer. A carestia ameaçou destruir a raça humana, destituindo os deuses e as deusas olímpicos de suas ofertas e sacrifícios.
Finalmente Zeus ficou sabendo. Primeiramente enviou sua mensageira Íris, para implorar a Deméter que voltasse. Depois, tendo em vista que Deméter permanecia impassível, cada divindade olímpica veio por sua vez, trazendo dádivas e honras. A cada uma, a furiosa Deméter fez saber que não poria os pés no monte Olimpo, nem permitiria que nada crescesse, até que Perséfone fosse devolvida a ela.
Enfim Zeus ordenou que Perséfone voltasse, para que sua mãe abandonasse sua raiva.
Ao ouvir que estava livre para partir, Perséfone alegrou-se, mas, primeiro, Hades lhe deu algumas doces sementes de romã, e ela comeu.
Perséfone parte do mundo das trevas para o mundo superior, parando em frente ao templo onde Deméter esperava. Ao se reencontrarem, se abraçam com alegria. Então, Deméter ansiosamente quis saber se Perséfone tinha comido alguma coisa no mundo das trevas. Caso não tivesse, Perséfone teria sido completamente devolvida a ela. Contudo, porque tinha comido as sementes de romã, passaria dois terços do ano com Deméter e o restante do ano no mundo das trevas com Hades.
Depois que mãe e a filha se reuniram, Deméter devolveu a fertilidade e o crescimento à terra. Proporcionou então os Mistérios Eleusianos. Essas eram cerimônias religiosas impressionantes, que os iniciados eram proibidos de revelar. Através dos mistérios, as pessoas encontravam uma razão para viver com alegria e morrer sem ter medo da morte. Fonte: (BOLEN, 1990).
O mito pode ser explorado e amplificado em vários âmbitos: maternidade, desenvolvimento do feminino, relação mãe e filha, simbiose e separação e outros. Porém, iremos direcionar para as questões referentes à morte, luto e renovação, destacando algumas passagens do mito.
Morte e atravessamento do luto
Quando Deméter perde a filha, ela claramente enluta-se, entra em desespero, sai em sua busca, expressa desinteresse pelas atividades do cotidiano, perda do apetite, libido, falta de cuidado consigo, desvitaliza-se, busca substitutos, entristece-se, enraivece-se e revolta-se.
Queremos destacar o despertar de sua ira como possibilidade de ação no mundo semelhante a de Hades, Senhor dos mortos e do submundo: ao abdicar de suas funções divinas, exigindo o retorno de sua filha, provoca a infertilidade da terra, isto é, a morte, tendo consequências destruidoras no reino vegetal, animal e divino. (BARCELLOS, 2019)
Ao prantear a perda da filha, ela compartilha com a humanidade a experiência de perder a fecundidade e a amplia, projetando-a sobre a terra inteira para que seja sentida por todos como uma esterilidade universal. (WOOLGER e WOOLGER, 1997)
No mito, fica clara a possibilidade de Deméter assumir os traços construtivos – amorosa, generosa, nutridora – e também os destrutivos – ausentar-se dos cuidados e do sustento, não proporcionar as condições de crescimento, levar à infertilidade, negar o que o outro necessita. E foram estes aspectos destrutivos do luto de Deméter que deixaram a humanidade, a natureza e os deuses ameaçados.
O mito dialoga com essa polaridade de Deméter, enquanto Senhora dos vivos e Senhora dos mortos, em que ambos os aspectos, vida e morte, relacionam-se simultaneamente.
Como uma manifestação desse aspecto enquanto deusa da morte, ela tem a força de banir os grãos da terra, tornando-a infértil, ou seja, destruindo. E também em outro ângulo, ainda como deusa da morte, tem o poder de transformar o grão, pois este tem de morrer duas vezes para virar alimento: o grão morre primeiro na terra, mas, para ser alimento, tem que morrer de novo no fogo. Portanto, a vida depende da morte, só se o grão morrer é que posso ter a vida que ele me dá; ambas são indissociáveis, estão misteriosamente ligadas. Brandão (2015) aponta Deméter como a grande deusa das alternâncias da vida e da morte, responsável por regularizar o ciclo da vegetação e de toda a existência.
A ira de Deméter instaura uma crise cósmica, pois altera a ordem das coisas, rompe com o equilíbrio existente e impõe uma reversão do jogo, visto que Zeus, representante da ordem do cosmos, tem que voltar atrás e recuar, devolvendo Perséfone à Deméter. Ela consegue puxar para sua dor o Céu, o Olimpo, a Terra, o Mundo das Trevas, O Hades, os homens, os mortos e os deuses, isto é, é a força capaz de mexer com todos os níveis de existência. (BARCELLOS, 2019)
Do mesmo jeito que Core desce para as profundezas, Deméter também faz um movimento descendente de um lugar superior (Olimpo) para a terra. Assim, podemos pensar que o rompimento de vínculo a leva a experimentar um novo lugar, menos idealizado e mais humanizado. Assim como popularmente falamos: “Sai do Olimpo, volta pra Terra”.
Se faz importante colocar que o processo de luto não segue uma ordem fixa, oscilando entre movimentos orientados para a perda e para a reconstrução. No mito, podemos observar a orientação para perda quando há, por exemplo, momentos de tristeza, desânimo, abandono de investimento em si e nos outros, não permitindo que nada mais floresça, se desenvolva ou cresça; e a orientação para a reconstrução quando ela, por exemplo, envolve-se com Demafonte e desenvolve os Mistérios de Elêusis. O movimento dinâmico e oscilatório é saudável, permitindo assim a construção de significado às perdas e o processo de elaboração do luto. O luto não é algo que se supera, cabe pensar se ele tem um fim. Assim como o mito retrata, o processo de luto não é ascendente, passando por estágios em que vamos superando, mas sim um movimento oscilatório que perpassa simbolicamente pelas estações do ano, de forma dinâmica e constante.
O período do ano em que Perséfone permanecia com Hades no submundo representava o período improdutivo, e sua reaproximação à Deméter representava o renascimento, a primavera. (NEUMANN, 1999; BRANDÃO, 2015). A primavera é tudo aquilo que volta a nascer, germinar. As seivas voltam a correr nas plantas, levando ao amadurecimento e atingindo a plenitude vegetativa no verão. No outono e inverno, há o regresso de Perséfone para o submundo, a natureza adormece, morre para que depois possa se transformar e renascer. As estações são mais frias, secas e marcam a desolação de Deméter: a terra seca, as folhas murcham e caem, as árvores não dão mais fruto, as flores somem.
Numa outra compreensão, a reconexão de mãe e filha mostra a indissolubilidade deste laço. Mesmo com a morte, o processo de luto também nos mostra que o vínculo é eterno, a conexão afetiva não se desliga.
Vida/renascimento
Falar do mito de Deméter é falar de Hades, pois não é possível falar de vida sem falar de morte. A separação de Perséfone de sua mãe e sua ida ao submundo representam sua morte simbólica. A morte simbólica de Perséfone significa também a morte da semente do trigo. “Perséfone é o grão que morre, para renascer mais jovem, forte e belo e, por isso mesmo, ela é Core, a Jovem.” (BRANDÃO, 2015, p. 322). Há um término de um tipo de relação, o encerramento de um ciclo e o início de outro. Agora a filha sai do reino da mãe e passa a conhecer o mundo que existe para além disso. A morte foi uma passagem de um estado de consciência para outro, neste sentido, vista como transformadora – algo morre para que um novo possa começar.
O mito traz que a transformação de Deméter é lenta, dolorosa, carregada de tristeza e raiva, podendo mostrar certa arrogância ao querer que tudo saia conforme seu desejo, e que as coisas retomem seu lugar de origem, em que ela tinha um aparente controle. Já a transformação da filha é violenta e súbita. Core é raptada, abre-se uma fenda no chão e ela desaparece, é tomada pelo masculino e levada a entrar em contato com um outro mundo, o desconhecido. Numa metáfora psicológica, ser raptado pelo inconsciente é uma vivência violenta, trevosa e arrebatadora, como se não fosse consentido.
Deméter também sofre transformações após essa experiência, e o mito retrata a possibilidade arquetípica de se enfrentar o período de grande sofrimento e ser capaz de crescer, retornando com mais sabedoria e compreensão espiritual – visto que só após isto, proporcionou os Mistérios Eleusianos aos humanos. Esses Mistérios eram os rituais sagrados mais prestigiados da Grécia antiga, nos quais as pessoas eram iniciadas nos mistérios da vida e da morte. Tudo o que se passava lá era segredo e nada podia ser compartilhado para fora. (BRANDÃO, 2015). Afinal, os grandes mistérios devem ser vividos e não explicados e ensinados.
O culto de Elêusis, então, celebra o retorno da filha, simbolizando também, como consequência, o regresso da vida do reino vegetal. Simbolicamente, é o retorno de uma nova vida, de energia criativa e construtiva.
[…] esse culto evoluiu para significações mais profundas, ligadas ao ciclo da vida e da morte, dentro de uma interação entre homens e vegetais. A terra alimenta o grão, que alimenta o homem, que, ao ser enterrado após a morte, alimenta o grão, que alimenta outro homem, num ciclo ininterrupto. Nada morre, ‘mas tudo renasce, através da terra’ (CIVITA, 1973, p. 83)
Os Mistérios de Elêusis consagram a transformação de Deméter e Perséfone, ou seja, o processo de vida, morte e renascimento. Este mito tem uma conexão profunda com a natureza e seus ciclos, trazendo a conexão e alternância entre a vida e a morte, permitindo refletir sobre a renovação, isto é, a morte que não será tida como fim, mas como início de um novo ciclo, como fonte de vida. Assim, o pão sempre vem do lugar onde estão os mortos para manter a vida.
Gilberto Gil, numa profunda sutileza, em sua música Drão, consegue expressar esse complexo drama em poesia, nos convidando a sentir e refletir a respeito de forma intensa e bela:
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar ‘nalgum lugar
Ressuscitar no chão
Nossa semeadura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela noite escura
[…]
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Se o amor é como um grão
Morre e nasce trigo
Vive e morre pão
(trechos da música)
Referências
BARCELLOS, G. Mitologias Arquetípicas: figurações divinas e configurações humanas. Petrópolis: Vozes, 2019.
BOLEN, J. S. As Deusas e a Mulher. São Paulo: Paulus, 1990.
BRANDÃO, J.S. Mitologia Grega. V.1. 26.ed. Petrópolis, 2015.
CIVITA, Victor. Mitologia. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
JUNG, C.G. Símbolos da Transformação. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
NEUMANN, E. A Grande Mãe: um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
WOOLGER, J. B.; WOOLGER, R. J. A Deusa Interior: Um guia sobre os eternos mitos femininos que moldam nossas vidas. São Paulo: Cultrix, 1997.
Imagem: escultura em terracota original de Myrina, Grécia, 100 AC (foto: Sailko/Wikimedia/British Museum)