Esse artigo busca identificar, na análise política do jornalista Nelson Rodrigues, traços da imaginação do pensamento entre as crônicas “Assim é um líder” e “E, por toda semana, o artigo de Corção começou a badalar” presentes na obra “O óbvio Ululante”.
Evidente ou incontestável ou “Assim nasce um líder”
Pensar é uma forma de atenção. Aprimoramos o pensar desde que atentos ao que nos empolga, ao que nos chama atenção, ao que nos alegra ou entristece. A tarefa da reflexão mais radical em nossos dias é a de abrir novas janelas que permitam olhar para o que se oculta mesmo debaixo dos nossos olhos, o óbvio, na visão de Nelson Rodrigues, o óbvio ululante.
Essa expressão foi criada por Nelson Rodrigues no início dos anos cinquenta. Significa coisa clara e patente. Refere-se a tudo que é lugar comum, que é banal, não original, enfim a tudo aquilo que é notado à primeira vista e que não exige criatividade, renovação.
Deste modo, o presente trabalho pretende examinar as motivações e comportamentos políticos do intelectual a partir da diversidade de culturas políticas que compõem o cenário brasileiro entre os períodos de 1967 e 1974, anos em que escreveu sua coluna no jornal O Globo. No entanto, serão usadas duas crônicas do ano de 1968 para explicar esse panorama.
“O líder é um canalha. Dirá alguém que estou generalizando. Exato: estou generalizando. Vejam, por exemplo, Stalin. Ninguém mais líder. Lenin pode ser esquecido, Stalin, não…”, diz Nelson, na crônica “Assim é um líder”, publicada no jornal O Globo em 9 de janeiro de 1968, na qual traz à tona a figura do líder, criticando seu posicionamento cínico perante as massas e sua qualidade moral.
E continua, mais atual que nunca, ao sugerir ao leitor:
Façam a seguinte experiência: – ponham um santo na primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Mas não convencerá ninguém, e repito: – ninguém o seguirá. Invertam a experiência e coloquem na mesma esquina, e em cima do mesmo caixote, um pulha indubitável. Instantaneamente, outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto.
É interessante para a presente pesquisa buscar problematizar os atores políticos da época, não os reduzindo somente ao apoio ou à resistência, mas compreendendo que entre a direita e a esquerda há uma enorme variedade de casos. Ora apoiando e ora resistindo, muitos sujeitos assim se encontravam.
Em alguns momentos conservadores, em outros revolucionários, foi assim que muitos personagens daqueles anos viveram durante a ditadura, como Kenedy “Ao ver o retrato de Kennedy, gemeu com sotaque: – Bonito como uma virgem”. Era um líder de luxo, isto é, um “antilíder”. O autor usa do artifício da polifonia, conceito advindo das análises de Bakhtin sobre as obras de Fiódor Dostoiévski, que representa a pluralidade ou multiplicidade de vozes presentes nos textos, para criar um discurso ambíguo.
Portanto, problematizar o intelectual Nelson Rodrigues, a partir das aparentes ambiguidades encontradas em suas crônicas, torna-se um importante exercício para compreender as relações da sociedade com o regime que se estabeleceu a partir do dia 01 de abril de 1964, período este que deu início à ditadura militar no Brasil. Buscando, assim, nos aspectos internos da sociedade e nas culturas políticas presentes, os fatores que permitiram a duração do regime por vinte e um anos.
Furtando uma frase do autor em relação ao teatro, creio que a política, em Nelson, “exerce um estranho poder de cretinização, mesmo sobre as melhores inteligências“. Ainda reitera quando o nosso maior dramaturgo afirma: “Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”.
Gustavo Corção “a glória está mais no insulto do que no elogio”
Corção foi um dos artífices, na esfera pública brasileira, da legitimação das bases antidemocráticas da ‘democracia’ do regime militar. A tese da ameaça comunista, inicialmente localizada no mundo político e, depois, radicalizada no catolicismo, constituiu fator determinante na radicalização da produção discursiva, e também dos posicionamentos políticos, de Gustavo Corção. Na crônica “E, por toda semana o artigo de Corção começou a badalar”, Nelson Rodrigues cria uma dimensão sobre o cenário político naquele momento: “eu diria que nossa reputação é a soma dos palavrões que inspiramos nas esquinas”. Há uma polissemia no discurso rodriguiano, há uma amplitude de interpretações diante de sua visão política. Ora assopra e exalta como “Gustavo Corção é uma das inteligências mais sérias do Brasil”. Ora o repulsa, como no conto “O Lanterneiro”, em “A vida como ela é: “Nonato puxa do bolso o artigo do Corção. Esfrega-o na cara dos colegas: Vê como o artigo do Corção cheira mal!”
Em Nelson Rodrigues, essa vitalidade está, sobretudo, no paradoxo. O paradoxo rodriguiano é emblemático, sintomático e estrutural, como em Dostoiévski, o maior modelo literário de Nelson, para quem “o belo e o sublime” coexistem com o irrelevante e o caricato.
Para o autor brasileiro, a liberdade deve ser premissa tanto do discurso esquerdista quanto do contrário, pois ambas consideram sua opção ideológica pautada sobre valores positivos. Assim sendo, Nelson Rodrigues, ao se afirmar como reacionário, dizia: “Sou como você sabe, um reacionário, de alto a baixo, da cabeça aos sapatos. Reacionário, porque não formo entre os que querem assassinar todas as liberdades” (Entrevista concedida à revista Manchete em agosto de 1977. Retirada de http://www.nelsonrodrigues.com.br em 07 de março de 2021).[1]
Observa-se que o dramaturgo não avalia sua obra literária e ensaística. A impressão que se tem é de que, na falta de autores de direita, para colocá-los em confronto com autores de esquerda “no Brasil quase todo mundo posa de esquerda, mesmo quem não é”, é preciso reforçar a posição de Gustavo Corção como grande escritor.
É interessante ressaltar que se procurou, ao longo do trabalho, problematizar a ambiguidade presente nos discursos de Nelson Rodrigues. Ao defender a ditadura brasileira, o autor estaria tendo uma atitude incongruente com o que procurava negar, o autoritarismo soviético. Para Nelson, os militares restabeleceriam a ordem, evitariam o “mal maior”, que seria a ameaça comunista, e colocariam o Brasil novamente nos passos da democracia e da liberdade, ao mesmo tempo em que garantiriam a defesa da moral e dos bons costumes conservadores.
Por outro lado, paradoxalmente, Nelson, como dramaturgo, inaugurou o Teatro Moderno Brasileiro, com obras como “Vestido de Noiva”, “Álbum de Família”, em que há uma implosão do conservadorismo direitista, emblematicamente representado pela família brasileira, tão apoiada pela ditadura militar. “Meu teatro é desagradável!” Nelson, nem direita nem esquerda, encontra a solidão.
Conclusão
O fato é que o jogo político de Nelson Rodrigues depende em grande parte dos leitores, esses seres tão aleatórios e misteriosos quanto a própria História. Nelson, em mais uma das suas frases lapidares, afirmou uma vez que “a experiência literária é uma dupla frustração: — o autor não encontra o seu leitor, nem este o seu autor. Um Dante só deveria ser lido por outro Dante.” No entanto, essa experiência não cessa de se renovar. E também diz “nada porém mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura”.
Nelson não era um inimigo do clichê e do senso comum, pelo contrário, ele se utilizava do senso comum e dos clichês para encarar o absurdo do clichê, o antilógico do senso comum que a gente usava sem dele se dar conta. Assim, permanece um oráculo, permeado de pistas e polifonia textuais. Para a crônica política, é preciso ter coragem para enfrentar as patrulhas ideológicas e repetir as sábias palavras do mestre: “Sou um ex-covarde”. Nelson nunca pensou, mas sempre quis alargar a interpretação do cotidiano. Quem quiser escolher seu lado, que atire a primeira pedra!
Referências Bibliográficas:
RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante: primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
RODRIGUES, Nelson. A cabra vadia: novas confissões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
__________________. A mulher sem pecado. In Teatro completo de Nelson Rodrigues – 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. V. 1.
__________________. A vida como ela é… Seleção Ruy Castro. Rio de Janeiro: Editora Record, 1992.
RODRIGUES, Nelson. O Reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
[1] Entrevista concedida à revista Manchete em agosto de 1977. Retirada de http://www.nelsonrodrigues.com.br em 07 de março de 2021).
Imagem: reprodução de página do jornal O Globo, de 9/1/1968 (Acervo O Globo)