Se você está lendo este texto, sinal de que nós, seres humanos, estamos vivos. A despeito de todos os problemas que enfrentamos enquanto espécie (mais no instinto animal de lutar pela vida), chegamos até aqui. Superamos desafios que pareciam insuperáveis, suportamos condições extremamente adversas e sobrevivemos por, entre outras coisas, uma característica restrita a nós, humanos: armazenar conhecimento.
Lições aprendidas dia após dia se solidificaram e foram passadas entre os membros da nossa espécie, assegurando, assim, que não caíssemos nos erros de gerações passadas. É claro que, para nós, homens e mulheres pós-modernos, a questão da sobrevivência em si não está tanto mais em disputa – pelo menos não estava antes da pandemia. Muito dificilmente seremos atacados por um mamute ao sair à rua, correto?
Portanto, dentro de nós, há uma boa parcela de lições do passado que são importantes e relevantes. Porém, com elas, existem também certas visões e interpretações que não se adequam mais à realidade atual. Estão mais ligadas ao passado do que ao presente – não à toa vivemos um grande momento de revisionismo. Só que devemos nos fazer um questionamento válido sobre esse ponto: o que precisamos carregar conosco e passar para o futuro e o que precisamos deixar morrer no passado? Qual é o limite entre abraçar o progresso dos dias vindouros e refletir e retornar constantemente às ideias herdadas de quem habitou a Terra antes de nós?
Dois ingleses podem nos ajudar nessa discussão: John Stuart Mill e Michael Oakeshott. Grosso modo, ambos são conhecidos pelas ideias liberais e, mais no caso de Oakeshott, conservadoras que carregam, estando, por isso, dentro do mesmo espectro político. Contudo, em alguns pontos, eles divergem, e a atuação das tradições no presente é um deles. A seguir, vamos explorar um pouco dessas diferenças.
Mill é tido como um dos pais do liberalismo britânico e um dos filósofos mais influentes do século XIX. Na lista de suas principais obras, está o ensaio Sobre a Liberdade, no qual ele apresenta conceitos importantes para formatar a ideia do que viria a ser uma das bases do tal liberalismo: a relevância da livre opinião. Entre os tópicos do texto, podemos perceber um pouco da visão que Mill mantinha sobre as tradições. Para o autor, os costumes e hábitos herdados podem guardar grandes perigos e, infelizmente, são pouco questionados exatamente por serem consagrados pelo uso. Ele aprofunda o conceito nesse trecho:
O efeito do costume de evitar qualquer dúvida ou receio quanto às regras de comportamento que, na humanidade, uns impõem aos outros é ainda mais completo porque trata-se de uma questão para a qual geralmente se considera que ninguém precisa apresentar quaisquer razões, seja para outra pessoa, seja para si mesmo. (MILL, 2017, p. 77)
Ou seja, ao longo do tempo, as regras que determinado grupo estabelece para si, a partir de um costume, acabam se tornando imunes ou superiores a qualquer debate. São indiscutíveis. Isso ganha ainda mais força quando há uma classe em ascensão; nesses casos, abramos aspas para Mill, “a moralidade do país emana de seus interesses de classe e do sentimento de superioridade dessa classe.” (MILL, 2017, p. 78)
O “espírito de servidão” que o gênero humano tem para com os seus senhores, sejam mundanos ou extramundamos, também é um dos motores para a formação de uma tradição perigosa. A partir das preferências ou repulsas dos entes superiores, os homens formatam seus conhecimentos sem o mínimo filtro de razão. Um fanático religioso, por exemplo, está repleto de certeza sobre o seu sentimento moral ao decapitar alguém ou matar-se levando outros consigo. Embebida em costumes e tradições religiosas, sua cultura lhe mostra que, sim, a atitude é adequada.
Entre tantas influências mais mesquinhas, os interesses gerais e óbvios da sociedade tiveram, é claro, um viés, e muito grande, na direção dos sentimentos morais; menos, contudo, como uma questão da razão. (MILL, 2017, p. 78)
O contexto no qual Mill está inserido ao escrever Sobre a Liberdade também precisa ser levado em conta. A Grã-Bretanha acabara de passar pela Revolução Industrial, a qual transformou toda a organização social. O impulsionador disso tudo, para o autor, era exatamente a pluralidade de pensamento e da liberdade de ação presentes na Europa. Como reforço desse argumento, Mill usava a China, então um país cujas tradições e costumes haviam reprimido a individualidade.
Se para Mill a tradição poderia impedir o progresso de um país e até dar lugar a extremos caso não fosse impedida pela razão, ela ocupa uma função bastante diferente para o também britânico Michael Oakeshott. Nascido em 1901, o historiador via na experiência de uma sociedade o caminho mais seguro para o futuro e usava uma interessante comparação para isso.
De acordo com Oakeshott, os homens navegam em um mar revolto de incertezas e inconstância. Não há como prever o tamanho das ondas que chegarão e muito menos o impacto delas no casco do barco. Logo, não há fórmulas mágicas ou ideias abstratas que nos possam tirar dessa situação. O único caminho para contornar tempestades agressivas é a experiência adquirida de tempestades anteriores, ou seja, o conhecimento acumulado por nós até aqui.
Não à toa a percepção oakeshottiana vai dar origem a uma visão diferente sobre conservadorismo. No ensaio Ser Conservador, o autor desenvolve o conceito não como uma ideia política, mas, sim, como uma disposição de caráter. É muito mais um jeito de agir em relação às coisas da vida do que um conjunto de teses sobre governo ou sociedade. O cerne de tal conservadorismo reside exatamente na aversão a mudanças e inovações, ainda que ambas sejam vistas como necessárias. Importante frisar: na visão do autor, não significa que um conservador não queira mudanças, mas que ele possui uma relação de familiaridade com o presente, afinal é o que se tem no momento.
Ser conservador, então, é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o fato ao mistério, o atual ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, o riso presente à felicidade utópica. (OAKESHOTT, 1991, p. 408)
O contexto de Oakeshott também é muito importante. O britânico não só viu o horror da Segunda Guerra Mundial, como participou dele de forma efetiva. Sendo afetado pela História, lutou exatamente contra líderes que aniquilaram o conhecimento acumulado de suas nações em prol de ideias de engenharia social concebidas por eles mesmos. Não navegaram de acordo com o passado, mas formularam para si os melhores jeitos de conduzir o leme e, por fim, naufragaram.
No fim, quem está certo: Mill, com a sua percepção sobre os impactos perigosos que a tradição tem na vida das pessoas, ou Oakeshott e a sua parábola do navio contra qualquer coisa que esteja além do que nós já experimentamos até aqui? É possível pensarmos em um meio-termo exatamente numa convergência de ambos: a dupla de britânicos vê no indivíduo o centro da sociedade e decisor sobre as coisas restritas à sua própria vida. Logo, que cada indivíduo seja livre para seguir sua tradição. Mas, é claro, sem furar o barco de ninguém no meio da trajetória.
Referências bibliográficas
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade e A sujeição das mulheres. Brasil: Penguim Companhia, 2017.
OAKESHOTT, Michael. Rationalism in politics and other essays. Estados Unidos da América: Liberty Fund, Inc., 1991.
Imagem: colagem com imagens de John Stuart Mill e Michael Oakeshott