Em 1999, o executivo de televisão neerlandês John de Mol idealizou o que viria a ser um dos reality shows mais famosos do mundo, com franquias em diversos países: o Big Brother. Nesse programa, um grupo de pessoas permanece em uma casa-estúdio, constantemente vigiado por câmeras distribuídas por todos os cômodos, e os telespectadores decidem sobre o futuro dos participantes através de votações populares. A inspiração dessa ideia mirabolante vem do livro 1984, de George Orwell, que retrata a distopia de um Estado totalitário que se autonomeia como Big Brother (irmão mais velho), nome de cunho retórico que sugere respeito, devoção e gratidão para com a máquina estatal. No romance, a sociedade é constantemente controlada e vigida pelo sistema de câmeras de segurança do Estado, de modo análogo ao que acontece no reality.
Com o estigma de entretenimento vazio, o Big Brother Brasil tem sido visto como um sintoma da imbecilização da sociedade massificada, uma vez que a audiência do programa aliena sua capacidade reflexiva com questões banais nele apresentadas. Embora essa crítica não esteja errada, ela acaba simplificando excessivamente a complexidade desse objeto de estudo. Neste ensaio, jogaremos luz sobre algumas questões culturais importantes da sociedade de consumo que estão presentes no BBB.
No mesmo ano da idealização do Big Brother, a jornalista canadense Naomi Klein emitiu um diagnóstico pessimista e alarmante sobre as condições culturais do mundo dominado pelo capital. Ao publicar o livro Sem Logo, Klein enfatiza que estamos sob a tirania das marcas em um planeta vendido, e que isso se deve à onda de privatizações e políticas de desregulamentação ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, e ao triunfo do capitalismo sobre os regimes socialistas. Nesta nova conjuntura política e econômica, as marcas se transformam em cultura e as pessoas se metamorfoseiam em marcas (ou em outdoors para as marcas).
A mercadoria em si passa para o segundo plano do consumo, e a carga simbólica fornecida pela marca salta para o protagonismo do processo, ao ponto de se desprender de seu produto “principal”, como marcas de carro que passam a vender perfumes e roupas. Neste novo funcionamento da propagação simbólica do consumo, as pessoas contratadas como modelos para a propaganda passam a confundir-se com a própria marca que as contratou, por vezes, tomando unicamente para si a função de representantes dos valores vendidos junto com a mercadoria, descartando as marcas tradicionais e iniciando suas próprias linhas comerciais.
A contextualização crítica de Naomi Klein parece gritante na situação contemporânea da comunicação dominada pelas redes sociais, nas quais o consumo pode ocorrer unicamente no plano simbólico, sem o ato de compra. Nas edições recentes do Big Brother Brasil, os participantes são avaliados constantemente (e obsessivamente) pelos espectadores, que monitoram suas redes sociais para medir o grau de popularidade e aprovação ao longo do programa, ou seja, quais marcas estão mais fortes e terão o futuro midiático e mercadológico mais promissor e quais deverão ser canceladas. É nesse destino simbolicamente funesto de cancelamento e “eliminação” que se encontra, em grau atenuado, algo similar ao que René Girard identifica como violência sagrada e vítima expiatório.
Para o pensador francês, o desejo humano existe como uma triangularidade entre o sujeito desejante, a mediação do desejo do outro e o objeto desejado, ou seja, o desejar do homem não é autônomo e livre, mas sim uma ação mimética da vontade alheia, com este desejo que será mimetizado podendo estar próximo ou não de nós. Contudo, na medida em que essa mimetização pode ser positiva e permitir o desenvolvimento cultural e técnico, ela também pode gerar conflitos internos muito danosos para a comunidade como um todo. Afinal, o impulso para o objeto desejado também será um avanço direto contra o rival que inspirou o modelo de desejo.
(…) O rival deseja o mesmo objeto que o sujeito. Renunciar à primazia do objeto e do sujeito para afirmar a do rival só pode significar uma coisa. A rivalidade não é fruto da convergência acidental de dois desejos para o mesmo objeto. O sujeito deseja o objeto porque o próprio rival o deseja. Desejando tal ou tal objeto, o rival designa-o ao sujeito com o desejável. O rival é o modelo do sujeito, não tanto no plano superficial das maneiras do ser, das ideias, etc., quanto no plano mais essencial do desejo. (GIRARD, 2008, p. 185).
A situação parece tragicamente insustentável até aqui: como nós seres humanos poderíamos nos constituir em sociedade, uma vez que a violência entre semelhantes estivesse sempre a ponto de acontecer? Para solucionar tal enigma, Girard chama atenção para a vítima expiatória, isto é, alguém que será culpado de todos os pecados daquele mundo e deverá ser sacrificado em um ritual sagrado para a purificação do coletivo. Esse bode expiatório, ou pharmakós, serão pessoas que estão presentes no cotidiano do grupo, mas não pertencem a ele, como prisioneiros de guerra, escravos ou indivíduos com algum tipo de deformidade física.
O desejo de violência é dirigido aos próximos; mas como ele não poderia ser saciado à sua custa sem causar inúmeros conflitos, é necessário desviá-lo para a vingança sacrificial, a única que pode ser abatida sem perigo, pois ninguém irá desposar sua causa. (GIRARD, 2008, p. 26).
A partir do sacrifício, os ânimos serão apaziguados e a comunidade poderá conviver em paz, temporariamente. Só dessa maneira, argumenta o escritor, a cultura pode se firmar enquanto tal. Sendo assim, os mitos da antiguidade aparecem como narrativas de um assassinato fundador da coletividade e do sagrado. O mito de Édipo, por exemplo, encarna perfeitamente os ciclos de: desejo mimético, crise, punição do pharmakós e purificação do mundo.
Embora Girard estivesse analisando povos primitivos, é possível estabelecermos um paralelo com o que foi descrito há pouco com alguns comportamentos de consumo no mundo contemporâneo. Nessa intensificação do desejar mimético promovido pelas mídias de massa e redes sociais, a busca por vítimas expiatórias se tornou obsessiva. Qualquer palavra ou gesto podem servir de pretexto para o “cancelamento”, ou seja, a tentativa de excluir uma marca, um evento, um produto ou uma pessoa. No caso do Big Brother Brasil, o “cancelamento” ou “sacrifício coletivo” surgem diretamente sobre participantes do reality, que podem ser eliminados do programa e impedidos de ganhar o prêmio final mediante o voto popular dos espectadores. Desse modo, os consumidores, as empresas e as marcas acabam por decidir qual das “marcas humanoides” disponíveis no catálogo televisivo merecem mais ou menos espaço nas práticas do consumo simbólico e real.
No fundo, essa punição catártica mediada pelo programa nos fornece a conclusão de que o consumo tomou para si a função que outrora pertenceu ao sagrado: o ato de consumir determina o que faz parte da comunidade, e o não consumo indica o que deverá ser sacrificado para o apaziguamento dos ânimos. Desse modo, o BBB confere ao espectador a segurança de se sentir o purificador do mundo, única e exclusivamente pela via do consumo. No final das contas, o público é quem sofre a verdadeira vigilância: tanto na ficção como na realidade, “Big Brother is watching you”.
Bibliografia
ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: ed. Zahar, 2006.
CARBONE, Silvia. Conversações com René Girard. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de pós-graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.
FELIPE, Rondinele. A relação entre a violência e o sagrado: desejo mimético e mito em René Girard. RHEMA, v. 16, n. 51, pp. 44-59, jan./jul. 2018.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: ed. Paz e Terra, 2008.
KLEIN, Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: ed. Record, 2002.
MOURÃO, J. A. (1992). A hipótese mimética e a paixão segundo René Girard. Humanística E Teologia, 13(1), 21-30.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2009.
Imagem: composição com gravura “Aztecs Sacrificing To The Sun” (Armand Welcker, 1889)