Comportamento Político

Parece adulto falar de política?

“Ele é um pilantra”, disse brutalmente clara, num quase grito e com o dedo indicador alto como se puxado pelo teto. Com doze anos completados há poucos meses, minha sobrinha exibia peculiar desejo de participação em assuntos políticos. Sabemos que o pré-adolescente está em fase de transição, imerso no “princípio do jogo de construção de ideias”, período da “estruturação de valores ligados a projetos de futuro”, como nos informou Piaget (1980). Ao pré-adolescente é poderosa a transformação do seu pensamento, desobrigado do concreto, encontra-se hábil para abstrair, testar hipóteses, ir para “o inatual e futuro”: é a idade dos grandes ideais, do início das teorias.

De que modo a política havia alcançado minha sobrinha, a ponto de tamanha violência expressiva, é difícil dizer sem considerar seu ambiente social. Anna Freud e Erik Erikson demoraram-se nas “identificações sucessivas”, segundo as quais os mais velhos servem como referência e liberam o pré-adolescente das escolhas infantis, com o risco, evidentemente, de uma “difusão de identidade”, com o adolescente a explorar apenas as alternativas que lhe são apresentadas, escreveu Erikson. Todavia é parte do processo de desenvolvimento aportar-se em modelos, é como subir uma escada guiando-se pelo corrimão, como mover-se feito um trem a seguir por trilhos: pode-se cair e pode-se descarrilhar.

A fala de minha sobrinha aconteceu no início do período de maior debate nas mesas de nossas famílias. Polarizados todos até o último fio de cabelo, havia a própria opinião e a dos outros que, invariavelmente, estava equivocada. Era tempo dos afetos a coagular pensamentos: interrompido o fluxo, o raciocínio era suspenso. Não sei dizer se houve melhores condições atmosféricas para o pensamento, porém é provável que, naquele dia, minha sobrinha quisesse apenas encurtar o caminho da conquista da respeitabilidade. Durante um churrasco, o sentido de participação na família é alavancado por se ter voz à mesa, um dos púlpitos da vida privada (outro lugar são os grupos de WhatsApp).

Lidar com parentes à mesa é sempre desafiador. O véu civilizatório rasga-se muito fácil, como todos que experimentaram datas festivas em família bem o sabem. Algumas texturas da vida assemelham-se ao ponto da carne, impossível de agradar igualmente a todos. E por falar em igualdade, é digno de nota a presença da minha sobrinha na mesa dos adultos. Como nos aponta Frank Furedi (2021), a pós-modernidade combate limites, coloca as fronteiras de lado. É assim que se abole a separação das mesas dos adultos e das crianças. Supostamente tratada para o mundo nos melhores colégios e conduzida a panetones sofisticados, salienta-se em minha sobrinha (e não apenas nela) a doutrina da acusação e a supressão das opiniões dissidentes. É ameaçador contra-argumentar, a farofa expelida com saliva pode varar-nos a retina. Como acusá-la se o mundo adulto parece emanar um desprezo pela dúvida, particularmente em mesas de churrasco? Mas o mundo adulto é, de fato, amadurecido?

Jovens com pouco tempo de estadia na terra, e raríssimos tendo trocado entre seus pares algum punhado de carícias, como nos contou Jean Twenge (2018), parecem ter encontrado na imersão na temática política alguma potência para dirigi-los a uma aparente diferenciação com aroma de heroísmo. Claro, não se pode tolerar a dúvida num momento desses, e nada como manter intacta uma miragem para amenizar uma amargura “umbigocêntrica” de se perceber dependente e ainda querer parecer indiferente. Mas um instante: jovens não querem ser adultos, identificou Twenge. Então querem apenas parecerem politizados? Entretanto não parece adulto falar de política?

Ofereço outro exemplo. Uma mãe acabara de voltar de uma passeata de apoio à greve de professores, deu de cara com o filho de dezesseis anos a entoar seu voto ao “mito”. Desalentada, questionou: rebeldia juvenil? Cabe um adendo: apesar da família experienciar limitações econômicas, o jovem estudava em um dos mais caros colégios de São Paulo, graças a um acerto jurídico após a separação dos pais. Em comparação com a minha sobrinha, nesse ponto, só lhe faltavam os panetones premiados. Será que faziam diferença?

“O sistema de valores de países mais ricos difere drástica e sistematicamente daqueles de países mais pobres”, escrevem Inglehart e Welzel (2005). Ao revistarem a teoria da modernização, que se baseia na ideia de progresso humano, Inglehart e Welzel apontam a polarização entre valores materialistas e pós-materialistas, oriunda de uma mudança da valorização da segurança econômica e física, para uma valorização crescente da autoexpressão, do bem-estar subjetivo e da qualidade de vida.

“Essa guinada cultural é encontrada em todas as searas da sociedade pós-industrial; ela surge entre coortes de nascimento que cresceram em condições em que a sobrevivência pode ser dada como certa. Esses valores estão ligados ao surgimento da ênfase crescente na proteção ambiental, ao movimento feminino, e às demandas cada vez maiores de participação na tomada de decisões na vida econômica e política” (p. 81).

Ocupar-se de assuntos políticos seria, portanto, um subproduto do processo de modernização de sociedades ricas? Sem a preocupação com a segurança física e econômica o indivíduo passa a precisar assegurar-se de si e, no embate com o outro, precisa colocar-se, ser firme em posicionamentos, não ter dúvidas, identificar-se com grandes ideais – algo tipicamente ainda não amadurecido, isto é, característico da entrada no período de “operações informais” apresentado por Piaget (1980) e vivenciado pela minha sobrinha.

Vale dizer que a mãe desalentada da passeata gastou verbos, complementos e gestos, mas o jovem filho passou ileso. “Os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento”, escreveu Hannah Arendt (2012). Não entendo muito de mitos vivos, mas Amós Oz (2016) entende de fanáticos: “o crescimento do fanatismo pode ter relação com o fato de que quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples”. E veja: tanto a mãe quanto o seu filho não se escutavam, afinal, diz Amós Oz, “a essência do fanatismo reside no desejo de forçar outras pessoas a mudar”, e não em ajudá-las a pensar por si mesmas. Ao que tudo indica, fanáticos não amadurecem.

Por que associar o amadurecimento em sociedades ricas e a disposição para assuntos políticos? Se os focos do contemporâneo são a autoexpressão e a autoestima, e ambas exigem a validação dos outros, a política lhes fornece um amplo espaço. No caso da mãe da passeata, seu jovem filho é um eleitor, mas como seria se minha sobrinha votasse? Se pensou “muito cedo”, já ouviu a proposta do voto aos seis anos de idade? A ideia é do professor David Runciman, da Universidade de Cambridge. Disse ele: “Eu diminuiria a idade de votar para seis, não 16. E estou falando sério sobre isso. Eu gostaria que as pessoas que votam pudessem ler”[1]. A única ressalva de Runciman, portanto, é uma questão técnica: o eleitor precisa estar alfabetizado.

Como as crianças seriam capazes de votar? Diante da contrariedade com a ideia, Runciman rebate: “Esse foi o argumento que foi feito contra os votos para as mulheres… era efetiva e simplesmente dar dois votos aos maridos. Obviamente, há uma grande diferença entre filhos e votos para mulheres. Mas eu não acho que devamos ter certeza de que as crianças fariam o que seus pais disseram”[2]. Será que fariam melhor? E o que é fazer o melhor? A professa Priscilla Alderson, da University College London, é mais arrojada, desprendida da necessidade de aquisição de uma habilidade tão específica como a leitura, e diz que “muitas crianças são profundamente responsáveis, compartilhando confiança e respeito com os adultos.”[3] Para ela, já daria para votar aos três anos.

Qual seria idade para a política? Há nitidamente uma tendência – com ares de fanatismo, inclusive –, em tratar as crianças como se fossem adultas, tendência que começou pelos adolescentes, a exemplo de Greta Thunberg. Ao tornarem-se participantes atuantes em assuntos políticos, os jovens parecem mais adultos que os próprios adultos e, apesar disso, sem quererem ser adultos. Aliás, alguém ainda sabe como se fazem adultos?

Referências bibliográficas

Arendt, H. (2012). Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras.

Furedi, F. (2021). Why Borders Matter: why humanity must relearn the art of frawing boundaries. London and New York: Routledge.

Inglehart, R. & Welzel, C. (2005). Modernization, Cultural Change, and Democracy – the human development sequence. Cambridge University Press.

Piaget, J. & Inhleder, B. (1980). A psicologia da criança. 6ª ed. São Paulo – Rio de Janeiro: Difel.

Twenge, J. M. (2018). Igen: por que as crianças superconectadas de hoje estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes e completamente despreparadas para a idade adulta. São Paulo: nVersos.

Oz, A. (2016). Como curar um fanático. São Paulo: Companhia das Letras.

Notas

[1] He said: “I would lower the voting age to six, not 16. And I’m serious about that. I would want people who vote to be able to read, so I would exclude reception [age-children].” (https://www.theguardian.com/politics/2018/dec/06/give-six-year-olds-the-vote-says-cambridge-university-academic)

[2] Runciman countered: “That was the argument that was made against votes for women … it was effectively just giving two votes to husbands. Obviously there is a big difference between children and votes for women. But I don’t think we should be entirely sure that children would do what their parents said.” (https://www.theguardian.com/politics/2018/dec/06/give-six-year-olds-the-vote-says-cambridge-university-academic).

[3] “Many young children are deeply responsible, sharing trust and respect with adults”. (https://www.theguardian.com/politics/2018/dec/18/give-young-people-the-vote-they-might-do-a-better-job)

Imagem: crianças francesas refugiadas (~1918, Primeira Guerra Mundial, autor não identificado)

Sobre o autor

Carolina Rabello Padovani

Pós-doutora em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP e pelo LABÔ. Doutora e Mestre em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP. Especialista em Neuropsicologia pelo CEPSIC do HCFMUSP. Psicóloga, bacharel e licenciada pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisadora do grupo "Comportamento Político" do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.