No âmbito de nossas escolhas diárias e na busca pelo sentido da nossa vida, nos deparamos com a questão: “o que é problema e o que é mistério? A não distinção entre eles, ou a não-consciência ou falta de clareza dessa diferença, infelizmente, podem nos levar à falta de sentido, à angústia profunda, ao medo que paralisa[1], e tantas vezes ao desespero.
Pode nos ajudar nessa reflexão o que afirma o filósofo francês Gabriel Marcel:
O problema é algo que encontro diante de mim, que posso objetivamente delimitar e reduzir. Mistério é algo em que meu próprio Ser está implicado e comprometido. Diante do problema sou espectador, no mistério eu mesmo sou ator. Problema é simplesmente um dado externo que me é proposto enquanto mistério não está inteiramente ante mim.[2]
O problema parece de mais fácil compreensão, ainda que não costumemos conceitualizá-lo: está no âmbito das inúmeras ações diárias que precisamos realizar e resolver. Por exemplo, diante de uma pandemia mundial, quais as ações que me colocam em “risco” e posso evitar, tais como sair de casa para trabalhar, ir à escola, ao mercado, visitar um familiar? Ou, em uma discussão sobre política, devo manifestar ou não minha opinião, ainda que me traga certos dissabores? Tais problemas são mais fáceis de identificar e muitas vezes os resolvemos quase automaticamente.
Para a resposta, precisamos qualificar o bem que desejamos (a escolha concreta, por exemplo, assumir algum risco em sair de casa) e o bem que acreditamos valer a pena (as consequências da escolha para nós e para aqueles que amamos). Enfim, no âmbito dos inúmeros problemas costumamos agir, sem precisar inclinar toda a nossa existência naquela direção.
É verdade que nem todos os problemas são passíveis de uma solução imediata e alguns requerem mais reflexão. Não raro, são bem difíceis de resolver e suas consequências são sentidas durante muito tempo. Pensemos, por exemplo, numa pessoa que deve decidir pelo tratamento médico de um familiar enfermo ou, ainda, alguém que deve decidir se deve ou não perdoar uma traição. São problemas que implicam decisões morais dificílimas, que algumas vezes estão exatamente num limiar em relação ao mistério e constituem um convite inesperado da vida para meditar sobre ele.
Os problemas, contudo, estão aí para serem solucionados. Então, para a sua solução, geralmente basta que julguemos adequadamente o bem que desejamos, em razão daquele que acreditamos, pelo qual escolhemos valer a pena assumir consequências.[3]
A nossa vida, no entanto, não apresenta somente problemas, o que é, ao mesmo tempo, o seu encanto e o seu drama mais profundo, demarcando momentos de fronteira existencial. E é justamente aqui que somos apresentados ao mistério. No entanto, como o seu significado não é alcançado imediatamente, convém destacar que não se trata de “enigma” ou “segredo” a decifrar, pelo menos não em sentido existencial.
Então, o que seria mistério? Podemos responder com questões concretas pertinentes à nossa experiência existencial: por que uma criança inocente nasce com uma doença avassaladora, por que surgem psicopatas que dedicam a vida em fazer o mal, o que leva ideais como o nazismo e outros sistemas totalitários a terem prosperado, por que tantas pessoas aderiram a eles instrumentalizando e matando outras sem a mínima piedade? Por que existe o mal? Será que a humanidade não deu certo?
Podemos encontrar os mistérios também na direção oposta, quando tudo deveria estar maravilhosamente bem: por que, mesmo tendo conquistado tudo que sonhei, ainda assim não sou feliz? Por que existe tanta gente rica, poderosa e famosa a sofrer o vazio existencial?
Diferentemente do que ocorre com os problemas, não podemos encontrar respostas exatas às questões formuladas, através de uma inferência de valores que nos permita medir consequências a partir do que desejamos e do que nos convém.
De certa forma, o atual contexto de pandemia mundial nos apresenta um verdadeiro mistério sobre o qual refletir, pois as consequências são sentidas concretamente em nossa experiência existencial, “após mais de um ano de pandemia, o cansaço caracterizado como ‘fadiga pandêmica’ se assemelha a uma resposta diante do trauma, no caso, coletivo.”[4] Assim, notamos que diferenciar problema e mistério é uma tarefa da qual ninguém pode se furtar se realmente quiser ser feliz. A verdade é que o mistério nos supera, mas terminamos aí? Acreditamos que não!
Seria uma profunda arrogância imaginar que uma leitura pudesse oferecer uma resposta cabal para a questão do mistério. Aqui, propomos uma reflexão na perspectiva do pensamento do médico e neuropsiquiatra Viktor Frankl, fundador da logoterapia.
É sempre possível encontrar sentido diante dos inúmeros mistérios que a vida nos apresenta e para os quais nos convoca – e é justamente a forma com que lidamos com eles que nos fazem pessoas menos ou mais felizes. Apesar dos horrores indescritíveis do campo de concentração, Frankl aprendeu com seus companheiros de prisão que sempre é possível dizer “sim à vida”, uma lição profunda e atemporal para todos nós.
No final das contas ‘dizer sim à vida apesar de tudo’ (…) pressupõe que a vida, potencialmente, tem um sentido em quaisquer circunstâncias, mesmo nas mais miseráveis. E isso, por sua vez, pressupõe a capacidade humana de transformar criativamente os aspectos negativos da vida em algo positivo ou construtivo.[5]
Diante do mistério, não podemos encontrar fórmulas ou soluções matemáticas. Na verdade, precisamos inclinar todo o nosso ser em direção a ele, porque nos supera. E quando o mistério nos toca diretamente, então, é porque tem algum sentido para nós.
Nos deparamos com perguntas que nos introduzem na reflexão: por que (para que) essa situação é importante para mim, o que tenho eu a ver com isso, por que (para que) me faz amar, sofrer, preciso dessa resposta? O mistério nos coloca necessariamente no maravilhoso domínio do sentido da vida, aquilo que tantos filósofos chamaram também de pergunta metafísica.
Em certo sentido, podemos afirmar que inclinar o nosso ser na direção do mistério também significa contemplá-lo, isto é, olhá-lo mais profundamente, espiritualmente.
É necessário reconhecer humildemente a própria condição de finitude diante de um mistério – e ter a grandeza de aceitar a possibilidade real de transcender e não sucumbir aos questionamentos mais profundos. Afinal, se o mistério nos supera, também nos eleva, pois nos coloca diante do encontro mais profundo com o nosso próprio ser, com o amor e a consciência:
Essas são as duas mais surpreendentes manifestações de outra capacidade exclusivamente humana, a capacidade de autotranscedência. O homem transcende a si mesmo tanto em direção a um outro ser humano, quanto em busca de sentido. O amor, eu diria, constitui a capacidade de apreender outro ser humano em sua genuína singularidade. Já a consciência encerra a capacidade de apreender o sentido de uma situação em sua total unicidade – numa análise final, o sentido é sempre algo único, assim como também o é cada pessoa. Em última instância, cada pessoa é insubstituível, se não por outros, o é por quem o ama.[6]
Talvez não notemos, mas ao considerar a distinção entre problema ou mistério já estamos refletindo sobre a questão mais profunda do “ser”, o específico do “ser humano”, que, como dizia Heidegger, pode ser assumido no termo “ser-no-mundo” (dasein).
Isso significa que há um modo específico de ser para o homem, e ele não pode se furtar aos inúmeros mistérios que o tocam, posto que é sempre um ser aberto a si mesmo, ao outro, ao mundo, a Deus. Justamente essa abertura lhe dá sempre um caráter situado (um lugar) neste mundo. Segundo Frankl, o ser humano precisa de tensões que o movam do ser ao deve-ser, ao que ele denomina de noodinâmica – obviamente, trata-se de uma tensão moderada e não excessiva.
O homem tem necessidade de uma tensão específica, ou seja, daquele tipo de tensão que se estabelece entre o ser humano, de um lado, e, do outro, o sentido que ele deve realizar […] É claro que o homem não procura as tensões pelas tensões, mas, em particular, procura mais realizações que confiram sentido à sua existência.[7]
A verdade é que a vida em si mesma é um mistério – ou a questão do seu sentido não seria um tema de reflexão filosófica ou religiosa desde os primórdios da humanidade. Portanto, os inúmeros mistérios da nossa humilde existência não devem nos desesperar, pois nos dão a oportunidade de transcender.
Esta inclinação profunda do nosso ser na direção do mistério pode receber vários nomes: meditação, reflexão existencial, etc. E a necessidade da meditação é o ponto central do processo de tomada de consciência, tendo em vista que constitui o caminho mais acessível e eficaz para encontrar sentido perante os mistérios da vida. Nos atrevemos a afirmar que o pior mal desta nossa sociedade super-tecnológica e globalizada é a ausência dela[8].
Na religião, a meditação ou reflexão existencial costuma receber o nome de oração, e, de certa forma, sua diferença fundamental para a meditação é que ela não é feita na solidão, mas na companhia de Deus.
E atrevidamente afirmamos que este também é o ponto central da atual crise das religiões: a falta da oração, pois os imensos rituais praticados, se não levam ao encontro profundo consigo mesmo e com o outro, de pouco ou nada servem. Ao contrário, aquele que ora, necessariamente se encontra diante do Mistério, confrontando-o, e a ele responde pessoalmente, porquanto a oração é o ato religioso fundamental que leva ao reconhecimento prático de um Deus, que não é apenas o Criador do mundo, mas “Alguém” com o qual é possível se relacionar pessoalmente[9].
Em resumo, de alguma maneira podemos afirmar que a questão do Mistério é a própria questão do “Ser”, e nele não se entra porque nele sempre se está – isto é, do mistério nosso pensamento nunca sai porque sair dele significa sair da própria existência, de si mesmo.
Ainda que isso possa parecer contraditório, a própria contradição indica que nossa existência nos supera e a meditação ou a oração é o que nos eleva. Viver realizando sentido é justamente o que nos autodetermina e, enfim, é o que nos eleva no imenso panorama da liberdade, mesmo diante do mistério da dor e do mal:
Afinal, a liberdade da vontade significa a liberdade da vontade humana, e esta é a vontade de um ser finito. O homem não é livre de suas contingências, mas, sim, livre para tomar uma atitude diante de quaisquer que sejam as condições que sejam apresentadas a ele.[10]
Terminamos nossa reflexão como nos propomos, não explicando cartesianamente o que é mistério, mas indicando, à luz da filosofia de Viktor Frankl, caminhos para penetrá-lo.
A decisão mais radical da nossa existência se realiza na inclinação de todo nosso ser ao Mistério com “M” maiúsculo ou aos inúmeros mistérios que nos incitam nos momentos de fronteira da nossa história pessoal, porque é diante deles que decidimos pelo nosso “fim”, e é somente mediante a fé na possibilidade real de encontrar sentido que a nossa liberdade traça o próprio caminho.
Logo, talvez seja por não inclinar todo o ser na direção do mistério – a fim de alcançar uma resposta pessoal e encará-lo como um simples problema – que o homem de hoje não encontra sentido e vive o terror do vazio.
[1] cf. LOMBARDO, G. J., O medo que paralisa, o vínculo que salva, disponível em https://offlattes.com/archives/7914, em 16/07/2021.
[2] Cf. MARCEL, G. Journal métaphysique. Paris. Gallimard. 1927.
[3] Viktor E. Frankl chamaria isso de “Sentido NA vida”, diferenciando do “Sentido DA vida” e do “Suprassentido”, cf. Um sentido para a vida, psicoterapia e humanismo. Ideais & Letras, São Paulo, 2005. pp. 39-46.
[4] GOMES, F. C., Cansaço nosso de cada dia, disponível em https://offlattes.com/archives/8780, em 16/07/2021.
[5] FRANKL, V. E., Em busca de sentido, um psicólogo no campo de concentração. 51 ed. Vozes, Petrópolis, 2020. p. 161.
[6] FRANKL, V., A vontade de sentido, fundamentos e aplicações da logoterapia. Paulus, São Paulo, 2001. p. 29.
[7] FRANKL, V. E., Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Idéias e Letras, Aparecida, p. 87.
[8] Cf. BORBA, A., Distrações e distorções, disponível em https://offlattes.com/archives/8686, em 15/07/2021.
[9] Cf. FABRO, C., La preghiera nel pensiero moderno. Edizioni di Storia e di Letterattura, Roma, 1983.
[10] FRANKL, V., A vontade de sentido, fundamentos e aplicações da logoterapia. Paulus, São Paulo, p. 27.
Imagem Edward Hopper – Morning Sun (1952)