Hannah Arendt e Michael Oakeshott estão entre os maiores autores em teoria política do século XX, apesar da primeira desfrutar de amplo reconhecimento aqui no Brasil e o pensamento do britânico não ter a mesma divulgação. São também autores de experiências distintas. Arendt, alemã judia, vai se estabelecer nos Estados Unidos após fugir do Nazismo na Europa. Oakeshott, por sua vez, passa a vida inteira no país onde nasceu, o Reino Unido, apesar de ser também marcado pelas experiências da II Guerra Mundial.
Suas diferentes histórias de vida já apontam para prováveis diferenças teóricas. Se Arendt tem influência do caldo cultural germânico e de sua filosofia (ex-aluna de Heidegger e Jaspers, leitora de Kant desde os 14 anos), depois temperada pela experiência americana, Oakeshott é herdeiro de uma tradição especificamente britânica do pensamento, como analisa Anthony Quinton em seu livro Políticas da Imperfeição.
Não obstante suas heranças e a ausência de diálogo (com exceção de um artigo de Oakeshott sobre Entre o Passado e o Futuro dentro da compilação O que é História?), uma análise de conceitos caros aos autores revela pontos de encontro. São eles: ideologia em Arendt e racionalismo na política em Oakeshott.
Em primeiro lugar, há de se notar que a aproximação ocorre a partir de conceitos críticos. Ideologia e racionalismo são vistos negativamente pelos autores e são verdadeiros problemas para a compreensão da vida política. Assim, o que Peter Baehr disse sobre o debate entre Arendt e Voegelin parece se adequar ao presente texto: “autores unidos por aversões comuns”. Prosseguiremos, então, com a descrição dos conceitos e, à medida que forem expostos, esperamos que as relações se tornem claras.
Comecemos por ideologia em Hannah Arendt, conceito exposto ao longo do livro Origens do Totalitarismo (1951). A autora, contudo, se detém com mais precisão no último capítulo, “Ideologia e Terror”, adicionado posteriormente ao livro, em 1953. A expressão mais famosa de Arendt é que a ideologia é “a lógica de uma ideia”. O que significa isso? A ideologia busca explicar toda a história – passado, presente e futuro – a partir de uma única ideia. Essa ideia serve como premissa de todo o desenrolar histórico. Ou seja, há um desencadeamento lógico a partir de um pressuposto inicial. Como exemplo, a sobrevivência do mais forte como uma ideia, levada por sua lógica, resulta no extermínio dos considerados mais fracos.
Dessa forma, a ideologia se distingue da mera opinião. Segundo a autora, o racismo como ideologia não é apenas uma opinião equivocada de indivíduos preconceituosos. Ele passa a ser dotado de uma coerência que explica a realidade em sua totalidade. Isso significa que a superioridade de uma etnia e a inferioridade de outras passam a ser vistas como o motor da história.
Para esclarecer ainda melhor o que Arendt vê como ideologia, é válido ressaltar o que ela chamou de “três elementos totalitários de uma ideologia”. Nem todas as ideologias são totalitárias ou forneceram matéria-prima para movimentos de massa do século XX. Entretanto, todas elas contêm três elementos distintamente totalitários que aqui nos ajudam a melhor definir o conceito.
O primeiro elemento é a preocupação com o movimento, com o que foi e o que virá a ser, e pretende ter uma explicação total – sobre passado, presente e futuro. Em outras palavras, as ideologias pretendem conhecer a chave da história e com isso a habilidade de prever o futuro com clareza, seja este uma sociedade sem classes ou uma sociedade pura ariana.
Em segundo lugar, essa explicação, por ser total, é “mais verdadeira” do que outras. Isso faz com que seja independente de novos acontecimentos, apontando às vezes para significados ocultos ou mesmo teorias da conspiração. A ideologia tem privilégio sobre os eventos históricos e sobre a verdade factual. Se a realidade a contradisse, alguma explicação oculta é necessária. É o que Arendt chama de uma fuga da realidade para a ficção.
O terceiro elemento é a organização lógica da ideologia. A partir de uma premissa, toda a realidade é explicada e nada fica de fora, como já visto acima com a “lógica de uma ideia”. Dessa maneira não há insegurança – mas também não há liberdade de pensar –, visto que não há espaço para contradição a partir do encadeamento perfeitamente lógico. Devido à falta de liberdade, há uma “camisa de força lógica” (ARENDT, 2012, p. 626), que não permite nenhuma novidade. A complexidade da realidade é substituída por um conforto irreal.
Hannah Arendt oferece um quadro da ideologia como um edifício descolado da realidade, mas ao mesmo tempo coerente, dotado de lógica interna e mais eficaz politicamente do que uma simples mentira.
Michael Oakeshott combate o mesmo problema que Arendt, alertando para os perigos do emprego de sistemas fechados à realidade e, mais especificamente, à política. Em seu ensaio “Racionalismo na Política”, o autor britânico esclarece que a ideologia é uma forma de racionalismo, dentre outras possíveis.
O racionalista, para Oakeshott, é o indivíduo para o qual a razão é um “guia infalível” (OAKESHOTT, 1991, p. 8) para a atividade política. Só a razão pode determinar a conduta e os valores de uma sociedade e tudo que não seja – ou não aparente ser – produto dela é descartado. A tradição e os costumes são então vistos como irracionais e precisam ser combatidos e, em seu lugar, devem ser colocadas estruturas racionais, produtos da razão.
Os costumes são descartados, pois são vistos como estáticos, enrijecidos. Oakeshott, todavia, alerta que é um equívoco pensá-los dessa maneira. No ensaio do mesmo volume, “A Torre de Babel”, o autor afirma que a tradição muda com o tempo, não é algo estagnado. Trata-se, entretanto, de uma mudança lenta que não é reconhecida pelo racionalista, que tem em conta apenas transformações geradas por autoconsciência. A tradição, não autoconsciente, fruto de gerações passadas e suas experiências, é, então, substituída por ideologias planejadas.
Oakeshott não está se opondo à razão e à crítica. Ele procura ressaltar que o racionalista não reconhece como legítima uma parcela do conhecimento humano, que o autor chama de “conhecimento prático”. O conhecimento prático é aquele transmitido por gerações, é uma herança de sucessos e conquistas da sociedade. Para o racionalista há apenas o conhecimento técnico, obtido por meio de livros e reflexões teóricas e que envolvem a formulação de doutrinas. O equívoco do racionalista está em acreditar que chegamos ao conhecimento a partir da pura ignorância – ao invés de experiências acumuladas ou de um conhecimento, mesmo que limitado, fornecido anteriormente (chamado pelo autor em “Filosofia Política” de berçário). Tampouco Arendt se coloca como opositora da razão ou da lógica. Por isso mesmo, ao explicar a “lógica de uma ideia”, a autora muitas vezes prefere o termo “logicidade” para salientar o que ela visa criticar.
Ambos os autores convergem, na medida em que se opõem a uma lógica ou uma racionalidade que não leva em conta a realidade dos fatos. Seja uma logicidade que opera por si só a despeito de acontecimentos históricos, seja um racionalismo que omite uma parcela importante do conhecimento, dado pela prática e pelos costumes, tanto Arendt quanto Oakeshott se aproximam em suas críticas. Para eles, há uma tentativa de construções sistemáticas que não correspondem à realidade.
O perigo reside no confronto entre a realidade (complexa e nunca explicável em sua totalidade) e a ideologia (coerente e confortável), em que a última prevaleça com potencialidades catastróficas já experimentadas no século XX. Esse quadro só pode ser superado se, para ficar com os conceitos de Oakeshott, o campo do conhecimento técnico operar em conjunto com o conhecimento prático. Isto é, se a razão não operar apartada da experiência.
Bibliografia
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
OAKESHOTT, Michael. Rationalism in Politics and other essays. Indiana: Liberty Fund, 1991.
OAKESHOTT, Religion, Politics and the Moral Life. New Haven: Yale University Press, 1993.
Imagem Hannah Arendt e Michael Oakeshott (autores não identificados)