A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

A imaturidade e o erudito

Como o mau desenvolvimento da sociedade contemporânea destroça arte e tenta transformar todo entretenimento em objeto erudito.


Com tantos argumentos levantados de início, faltou ao filme “costurar” de forma mais contundente as causas e consequências das ações das garotas, e dos adultos ao redor, assim como a complexidade e as contradições de suas atitudes. Ou a diretora propositadamente deixou para quem o assiste essa incumbência.
(Camila Abdo – Coluna de Cultura da revista VEJA – 02 out 2020)

Enquanto estudava a A economia das trocas simbólicas, de Pierre Bourdieu, fui confrontado com uma enxurrada de notícias sobre a possível suspensão de um filme francês, a pedido da ministra da família, Damares Alves. Tal pedido estaria lastreado por uma enxurrada de críticas negativas relativas à possível sexualização infantil na obra que no Brasil recebeu o nome de Lindinhas, originalmente chamado Mignonnes e, nos EUA, Cuties.

Nas redes sociais, o movimento foi grande, sugerindo inclusive o cancelamento da distribuidora e produtora da película, a Netflix. Fui pesquisar e li muitas matérias críticas à obra, mas todas concentradas nas Américas, como no Brasil e nos EUA. Jornais como Washington Post e Folha de S.Paulo deram voz ao movimento crítico.

Achei interessante assisti-lo, pois já tinha uma suspeita de que toda essa reverberação negativa estivesse em grande parte fundamentada na miopia do grande público. Não apenas pelo fato dele ter estreado já na Competição Global de Filmes Dramáticos do Festival de Cinema de Sundance 2020 e ter ganho o prêmio do Júri de Direção – que, por sua vez, elogiou muito o roteiro do filme –, mas também por observar um movimento, que é chamado pela psicanalista Danit Pondé de infantilização na sociedade contemporânea. Uma sociedade que não conseguiu atingir a maturação, a maturidade, de forma satisfatória.

A capacidade de avaliação real sobre a função da arte numa sociedade se perde em meio a tantas críticas rasas e extremamente imaturas, vindas justamente de pessoas que não têm a capacidade de avaliar o que está ao seu redor.

Pessoas que se julgam especiais e que, na interseccionalidade das suas características de minorias, querem calar o outro, o plural e o diverso. Nem sempre esse movimento se dá para a imposição de uma forma de respeito. Muitas vezes, trata-se apenas de anular o divergente.

Criaram uma nova classificação e forma de calar o outro e chamam isso de lugar de fala. A partir daí, resolveram que quem não satisfizer as características relativas ao assunto em questão não pode sequer ter ou expressar sua opinião ou conhecimento. Como forma de trazer respeito a uns, desrespeitam a história, o estudo, e a capacidade de diálogo de muitos.

Em breve pesquisa pela internet, qualquer interessado pode encontrar a definição do conceito de “lugar de fala”, de vertente francesa, que foi (e ainda é) utilizada por pensadores e autores como Pierre Bordieau e Michel Foucault, assim como a estadunidense Judith Butler e a brasileira Eni Orlandi.

Todos estes autores falam das relações de poder presentes nos diferentes tipos de discurso de acordo com seus enunciadores, e a posição ocupada enquanto o discurso é enunciado. (BOURDIEU, 2015)

No Brasil, contudo, apesar de estar ligada a duas dimensões, sendo elas o ético/moral e o epistemológico/científico, a definição e o entendimento do termo “lugar de fala”, recriado (ou adaptado) pela filósofa Djamila Ribeiro em seu livro O que é lugar de fala?, toma uma posição voltada apenas para a moral.

Segundo a autora, embora não negue o aspecto individual, o lugar de fala confere uma ênfase ao lugar social ocupado pelos sujeitos numa matriz de dominação e opressão, dentro das relações de poder, ou seja, às condições sociais (ou locus social) que autorizam ou negam o acesso de determinados grupos a lugares de cidadania. Trata-se, portanto, do reconhecimento do caráter coletivo que rege as oportunidades e constrangimentos que atravessam os sujeitos pertencentes a determinado grupo social e que sobrepõe o aspecto individualizado das experiências. (RIBEIRO, 2020)

Com bases sempre “intelectualizadas”, porém nem sempre completamente verdadeiras, a essa adaptação do conceito proposto e apresentado por Djamila, e deturpado por leitores enviesados, somamos todo o processo de infantilização da “nova sociedade” e precarização da educação no Brasil, obtendo, assim, uma leitura ou adaptação de um termo tão fundamental para a discussão do comportamento e desenvolvimento político/social/cultural/comportamental que acabou se tornando uma verdade pragmática, defendida como absoluta e incontestável, preenchendo as necessidades de discurso político de quem o utiliza como arma e também argumento, conforme publicou o professor e cientista político Luis Felipe Miguel.

Vale ressaltar que a filósofa abre seu livro com a seguinte apresentação: “O propósito aqui não é impor uma epistemologia de verdade, mas contribuir para o debate e mostrar diferentes perspectivas”. E essa fala é complementada no decorrer da obra, mais especificamente quando inicia o estudo do termo em questão:

É preciso dizer que não há epistemologia determinada sobre o termo lugar de fala especificamente, ou melhor, a origem do termo é imprecisa … Há estudiosos que pensam lugar de fala a partir da Psicanálise analisando obras de Michel Foucault, de estudos de Linda Alcoff, filósofa Panamenha, e de Gayatri Spivak, professora indiana … Aqui, pretendemos pensar a partir de Patrícia Hill Collins e Grada Kilomba. (RIBEIRO, 2020)

Djamila lembra que os debates das redes estão sendo utilizados como forma e tentativa de calar o outro, quando, na verdade, deveriam estar buscando discussões construtivas e plurais, utilizando da representatividade para os debates.

A professora inclusive diferencia “lugar de fala”, de representatividade durante sua obra. No entanto, é nítido que, no debate público, suas palavras acabaram sendo utilizadas de forma insensata, principalmente por aqueles que, na ânsia de pertencimento – característica imatura latente do século 21 –, precisam utilizar da agressividade pseudo intelectual.

Nos combates políticos, ‘lugar de fala’ surge casado com a percepção extrema de um privilégio epistêmico dos dominados. (…) O acesso à verdade depende da posição social e de nada mais. (RIBEIRO, 2020)

É explícito e notório que a dispersão dos debates e a falta de capacidade dialética do contemporâneo se dão pela praticidade do acesso à leitura, porém sem a capacidade de interpretação e reflexão tão necessárias para a construção dessa sociedade que imaginamos ser potencialmente mais humana e acessível.

Sinto que há necessidade urgente de esclarecimento sobre a diferença – o vale – que existe entre acesso à informação e capacidade de interpretação e aplicação do conhecimento. Cada dia mais, os termos acadêmicos e clínicos se põem nas mesas de bar e de forma ignorante são debatidos por indivíduos sem a bagagem de vida para tanto. E é nesses momentos que o grito mais alto vence e não o conhecimento real. Parafraseando Schopenhauer, para ganhar uma discussão não é necessário ter consigo a verdade e sim o público.

Mais do que nunca, fica clara a necessidade do divergente para que possamos desenvolver uma sociedade realmente diversa. Mas vale lembrar que as informações devem ser lidas além do título ou do idealismo de quem discursa.

No linguajar popular, trago a interseccionalidade de características majoritárias do movimento social para obtenção de um lugar de voz como sendo uma “uberização da avaliação da palavra” – e quanto mais pertencente a grupos da minoria, maior é a sua capacidade e reverberação de opinião, homem branco hetero de classe média deve se manter calado e não tem em nenhum momento a possibilidade de fala, não existe o tal do “lugar de fala” pra ele. Agora se você for mulher, por exemplo, ganhou uma estrelinha; mulher trans, duas estrelinhas; mulher trans, preta, três estrelinhas; mulher trans, preta, pobre, quatro estrelinhas; e mulher trans, preta, pobre e deficiente (física ou mental) tem as cinco estrelinhas (como na avaliação do aplicativo UBER). Assim, dependendo de quantas características de minorias ou de oprimidos o indivíduo tiver (características estéticas inclusive), ele poderá ou não ser ouvido e ter sua opinião respeitada.

Enquanto o “lugar de fala” tinha como função entender o caminho que levou aquela pessoa a ter determinada opinião, posição ou conhecimento, atualmente, ele é apenas mais uma forma de castrar a real divergência. Aqueles que sempre foram agredidos hoje agridem, aqueles que foram criticados agora criticam, aqueles que eram calados agora calam.

Na busca pelo respeito, parece que esqueceram o que é respeitar, e muitas vezes acabam se tornando exatamente aquilo que tanto criticaram. Inclusive ganham forças graças a uma sociedade capitalista, que é tão censurada por eles, mas que financia todas essas vozes como maneira de atingir um maior público e assim aumentar sua receita e suas vendas.

Grande parte da crítica atual se dá justamente pela falta de respeito à história dos indivíduos, pela falta de respeito por todos os símbolos que nos trouxeram até aqui, pela falta de respeito aos traumas que formam o ser humano mais forte e mais capaz de ser resiliente. Me parece que a crítica, hoje de forma intelectualizada, não busca apenas a modificação de um sistema opressor, mas se torna a nova forma de repressão, maquiada de busca por justiça. Vivemos o reflexo das faltas, de capacidade, de reconhecimento, de desenvolvimento, de maturidade, mas, principalmente, de humildade.

Trouxe essa “nova mecânica” de avaliação, para que eu possa parafrasear Frank Furedi, quando diz que os TRANS são a nova aristocracia, e juntos tenhamos o entendimento de como está sendo dividida a sociedade contemporânea.

A aristocracia moderna não é composta apenas pelos TRANS, mas também pela comunidade LGBTQIA+. São eles que dizem o que é ou não correto, é a partir da avaliação deles que algo pode ou não ser criticado, cancelado ou aplaudido. Em seguida, temos a nova burguesia, composta por jovens com grande domínio de internet e redes sociais, muitos deles pertencentes ao que chamamos de classe média – a burguesia moderna inflama e dissipa tudo que os aristocratas decidirem, são eles que fazem o grande boom de cancelamento e que se encarregam de dissipar as novas regras do jogo da sociedade, como exemplo podemos trazer a tão comentada neutralidade gramatical, que atualmente não sai das redes sociais. Logo adiante, temos o clero, que, no mundo contemporâneo, toma como verdade tudo aquilo que foi dito pelos aristocratas, difundido pela burguesia e reforçado por marcas e empresas ansiosas por reverberação de mídia gratuita, captação de novos clientes e fidelização dos antigos. E assim temos a formação da nova sociedade. Os intelectuais por sua vez, são anulados tanto pela aristocracia quanto pela burguesia, e também pelo clero, a menos que eles consigam defender cegamente teorias que agradem essa nova sociedade.

Vale lembrar, aqui, que toda essa sociedade moderna pode ser literalmente desligada, bastando apenas seus pais deixarem de pagar as mensalidades de telefonia móvel, clubes, universidades e demais formas de ligação ou agrupamento.

Esses pais são os verdadeiros monarcas, que, como forma de evitar aborrecimento em seu reino, pagam as contas, financiam o entretenimento, possibilitam o acesso ao mundo e à cultura e, com isso, afastam de si o problema (características clássicas do adulto infantilizado) – que no caso é controlar os filhos e fazer deles cidadãos capazes de viver em sociedade e conviver com o diverso.

Apresentado o contemporâneo e sua sociedade, dado também a obra que escolhi explorar, aplico aqui uma fala de Bourdieu sobre a maneira com que a arte é vista:

A observação estabelece que os produtos da atividade humana e socialmente designados como obras de arte podem tornar-se objeto de percepções consideradas muito diferentes, desde uma percepção propriamente estética considerada socialmente adequada à sua significação específica, até uma percepção que não difere tanto por sua lógica como por suas modalidades daquela aplicada na vida cotidiana aos objetos cotidianos. Por ser produto de uma história particular tal extinção impõe-se pelo arbitrário do fator social. (BOURDIEU, 2015)

Sendo a observação e a interpretação da arte um objeto oriundo de suas próprias experiências, e sendo a sociedade massiva do contemporâneo tão pobre da capacidade de observar o mundo e propensa a nivelar a arte por um parâmetro que, segundo a classificação real, não passaria de entretenimento – dada a necessidade de atemporalidade para se classificar uma obra como arte e se possível erudita, atemporal, praticamente eterna – cria-se o julgamento precipitado e preconceituoso.

O sociólogo Byung-Chul Han desenvolve uma análise sobre a maneira de observação da nova sociedade e classifica a arte apreciada atualmente como sendo lisa e desprovida de objetos que gerem reflexão – justamente pela falta de histórico e pela necessidade de cumprir padrões que atendam expectativas “politicamente corretas” de quem as observa:

O liso é a marca do presente. É ele que conecta as esculturas de Jeff Koons, iPhone e a depilação a brasileira, o liso não quebra, também não opõe resistência. Ele exige likes. O objeto liso extingue seus contrários. Toda negatividade é posta de lado… Esse caráter adaptável e de ausência de resistência é um traço característico da estética do liso. Não há desastre, quebra, marca, risco ou costura. Tudo é arredondado, polido, liso. Não dá nada a interpretar a descodificar ou a pensar é uma arte para dar like. (HAN, 2019)

Assim como se pode observar uma aversão ao divergente, essa aversão se dá também ao que necessita de bagagem para compreensão. Num movimento de pertencimento, a procura não é mais pelo entendimento e sim pelo lacre e pelo like.

Como diz Luiz Felipe Pondé, em seu livro A era do ressentimento, foi dito aos jovens que eles podem tudo, e eles acreditaram. Sendo assim, podendo tudo, eles acreditam que podem destruir o sentido analítico de tudo, pois esse sentido foi dado pelo que eles chamam de patriarcado, e, na ânsia por exterminá-lo da sociedade, acabam exterminando a capacidade de produção de comportamento, obras e histórias realmente eruditas e que possam ser lembradas no futuro.

Enquanto assistia a Mignonnes, me lembrava bastante de trechos do livro de Bourdieu, que me explicavam, não a história do filme, mas a história de composição social que levou a tamanha movimentação do público contra a Netflix. Aquela audiência crítica não conseguiu chegar no lugar para onde a autora estava indo e, assim, lastreado pelo incômodo daquela verdade que era apresentada, a repele e prefere ignorar o fato de fazer parte daquilo no mundo fora da película.

O ideal da percepção “pura” da obra de arte enquanto obra de arte é o produto de um longo trabalho de “depuração” que se inicia desde o momento em que a obra de arte se despojar de suas funções mágicas ou religiosas, correlato a Constituição de uma categoria socialmente distinta de profissionais da produção artística, pendentes cada vez mais a levar em conta exclusivamente as regras transmitidas por uma tradição herdada e cada vez mais em condições de libertar sua produção e seus produtos de toda e qualquer Servidão social. (BOURDIEU, 2015)

Tamanha é a falta de percepção e entendimento da arte no mundo moderno, que a autora e diretora do longa-metragem precisou, num documentário, explicar com detalhes a história para o grande público que a acusava (assim como à Netflix) de sexualizar crianças, sendo que o filme, de forma resumida, é uma grande crítica justamente a esse tema. Por aí já podemos costurar e desenhar a capacidade de reflexão dessa sociedade e, ao mesmo tempo, tentar avaliar onde estava o erro da obra.

O tempo inteiro imerso na periferia de uma cidade, rodeado pelas diferenças de corpos, raças, credos e culturas, o incômodo dos conflitos ali abordados é algo inevitável. Os trechos mais tranquilos acabam sendo justamente os de dança, que, comparativamente ao que é apresentado pelo mercado das divas do POP, é praticamente religiosa.

Segundo matéria da Folha de S.Paulo, a polêmica nos EUA iniciou como uma reação ao cartaz de divulgação do filme e teve seu desenrolar em petições com mais de 600 mil assinaturas para que a obra fosse retirada da plataforma.

Byung-Chul Han diz que “para a contemplação do Belo como segredo chega-se apenas através do conhecimento do invólucro como tal. Deve-se sobretudo dedicar-se ao invólucro para perceber o velado o invólucro é mais essencial do que o objeto velado”. No entanto, para que o indivíduo seja capaz de compreender a diferença entre o que parece e o que é, entre o invólucro e o conteúdo em si, para que ele tenha o que Bourdieu chama de percepção pura, é necessário bagagem e desprendimento, de forma concomitante.

Segundo Pierre Bourdieu,

(…) o corte que o museu (enquanto espaço fechado e separado) opera entre o mundo sagrado da arte e o mundo profano da não arte abre parentes objetivamente definido apenas pelo fato da exclusão como indigno de ser conservado e exposto à radiação) não é o bastante para que se ignore o ecletismo das escolhas operadas no interior do universo globalmente designado como sagrado. (BOURDIEU, 2015)

E é justamente nesse ponto que eu gostaria de levantar uma questão: não estaria o erro do filme na maneira como ele foi apresentado? Digo isso lembrando que a crítica especializada teceu muitos elogios à obra. Seria uma plataforma de streaming o lugar apropriado para esse tipo de produção?

Apesar dos ambientes bloquearem o acesso da grande massa à arte, expor a arte à depreciação de público sem critérios essenciais para a avaliação é realmente a forma pertinente de compartilhar obras eruditas, que exigem calma e muita observação para algum tipo de entendimento – principalmente nesta sociedade “aristocrática contemporânea” que insiste em classificar entretenimento como arte e arte como peça de museu?

Na carta de Flaubert a Renan: “estou certo de que o burguês não compreende patavina”. É a indignação escandalizada do “burguês excluído” do acesso a arte enquanto “direito de burguesia” revolta também expressa por Ortega y Gasset quando denuncia como “impopular ou mesmo antipopular” uma arte ininteligível para os burgueses: “arte nova por sua mera existência obriga o bom burguês a confessar O que é um bom burguês um ser indigno dos Sentimentos estéticos cego e surdo a toda Beleza Pura. (BOURDIEU, 2015)

Trazendo para o presente esta fala do livro de Bourdieu, entendendo pela construção deste artigo quem é a burguesia moderna, repito minha questão: Seria a Netflix o lugar ideal para esse filme? Até que ponto a separação não se faz positiva? Enquanto obras dessa natureza se restringiam a salas especializadas de cinema europeu, com público potencialmente mais preparado para a observação dos detalhes e das críticas apontadas, não havia tamanha depredação.

Embora a comunicação com a obra de arte constitua uma espécie de comunhão Mística a que têm acesso somente algumas almas predestinadas, ela tende a conferir sua consagração alguns eleitos que, por sua vez são escolhidos com base em suas aptidões para entender o apelo da arte. Neste sentido, “o amor pela arte” separa por uma barreira invisível – a mesma barreira instituída pelo museu, espaço sagrado capaz de sacralizar os que nele podem penetrar – aqueles que foram tocados pela graça a artística dos que não a possuem. (BOURDIEU, 2015)

Lembrando que as críticas e movimentos contra o filme vieram dos EUA e do Brasil, países que se acostumaram com o consumo fácil e sem critério, utilizo Byung-Chul Han para explicar o movimento contrário à película: “Aprender a ver é, portanto, uma coisa totalmente diversa de um procedimento ativo, consciente. É, ao contrário um deixar se acontecer ou se expor a um acontecer.”

Se antes era o público que não conseguia chegar ao lugar pretendido pela obra, se antes a não apreciação levava ao desinteresse, hoje, isso sujeita a obra a uma crítica pobre e porca, rasa, sem fundamentos intelectualmente compatíveis com a mensagem.

Quando a mensagem excede suas possibilidades de apreensão, o espectador incapaz de receber a informação não tem outra escolha senão desinteressar-se do que ele parece uma borracha são sem rima e sem razão, um jogo de formas ou de cores desprovido de qualquer necessidade, ou então, vê-se forçado a aplicar os códigos de que dispõe sem indagar a respeito de sua adequação ou de sua pertinência. (BOURDIEU, 2015)

Não vejo muitas mudanças de comportamento das classes sociais em relação à arte. Obras eram criadas para entreter seus patrocinadores, burgueses e aristocratas, e hoje assim se mantém, inclusive com os mesmos critérios de tentativa de anulação da obra pela incapacidade de compreensão. Creio que a principal diferença que estamos vivendo é o fato de que essas “vozes de poder” ganham mais força justamente por serem produto daquilo que criticam: o capital, oriundo de marcas que reforçam seu poderio alimentando essa nova burguesia a fim de conquistar mais e mais o clero. E assim finalizo este artigo com uma frase de Byung-Chul Han:

Belo, na medida em que o belo se tornou um objeto liso da curtida, do like, do conforto, do arbitrário um objeto para qualquer hora. (HAN, 2019)

A arte entretém, mas o entretenimento nem sempre se torna arte.

Referências

Mignonnes. Maimouna Doucouré. NETFLIX

BOURDIEU, PIERRE (1930-2020) A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção Sergio Miceli. 8ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2015 – (coleção estudos; 20 / dirigida por J. Guinsburg).

HAN, BYUNG – CHUL A salvação do belo. Trad. Gabriel Salvi Philipson. 2ª ed. Petrópolis – RJ: Vozes, 2019.

RIBEIRO, DJAMILA Lugar de fala. São Paulo – SP: Editora Jandaira, 2020.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lugar_de_fala#:~:text=Lugar%20de%20fala%20%C3%A9%20um,%2C%20Foucault%2C%20Butler%20e%20Orlandi.

https://revistacult.uol.com.br/home/precisamos-falar-sobre-o-lugar-de-fala/

https://veja.abril.com.br/cultura/lindinhas-da-netflix-assista-antes-de-condenar/

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/09/entenda-o-caso-lindinhas-que-fez-a-netflix-ser-acusada-de-sexualizar-as-criancas.shtml

https://noticias.uol.com.br/colunas/rogerio-gentile/2020/09/26/justica-rejeita-pedido-de-censura-a-lindinhas-filme-que-irritou-damares.htm

Imagem: Mignonnes (divulgação)

Sobre o autor

Maycow Montemor

Jornalista, graduando em Psicologia e pesquisador dos grupos "Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade" e "Cultura do Consumo, Sociedade e Tendências" do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.