Figura 1: Painel de Cláudio Pastro na Catedral de Itapeva-SP, detalhe do Cristo Pantocrator na Jerusalém Celeste
Observa-se uma quantidade expressiva de pessoas que adentram a Catedral de Itapeva ao longo da semana. Pessoas que entram para rezar, outras para descansar, algumas para esperar alguém e outras, ainda, que a frequentam por alguma necessidade. O fato é que todos, quase unânimes, falam do silêncio, do recolhimento e do quanto se sentem bem no interior da Catedral. Poder-se-ia questionar qual a razão de tal sensação. Uma resposta rápida e irrefletida nos levaria a dizer: essa sensação é natural, pois se está dentro de uma igreja. Como outra resposta plausível, contudo não profunda, dir-se-ia: ela é arejada, o que dá uma sensação de leveza e tranquilidade. Arriscando um esboço de uma resposta, pode-se dizer que o espaço celebrativo da Catedral de Itapeva coloca o visitante diante de uma Presença.
O referido prédio, situado no interior do Estado de São Paulo, passou por quatro reformas desde a sua construção em 1785, sendo a última realizada pelo artista sacro Cláudio Pastro, entre 1986 e 1992. Ao longo dos anos, a igreja foi adquirindo várias imagens, que foram colocadas à exposição, para a veneração dos fiéis, de forma não ordenada, possivelmente oriundas do barroco. Altares laterais foram construídos, dando ênfase ao devocionismo. Seguindo o modelo anterior à reforma litúrgica de 1962, a imagem de Senhora Sant’ Ana, padroeira da Catedral, ocupava um lugar ao centro, no altar-mor, no fundo do santuário.
O comprometimento do imóvel – devido às infiltrações nas paredes, ao desgaste do telhado, à fragilidade do forro, entre outras coisas – exigiu a sua quarta reforma. Segundo Rodrigues:
Em 1985, Dom Alano Maria Pena O.P (Ordem dos Pregadores), então Bispo Diocesano de Itapeva, visitou o Mosteiro de Santa Cruz, em Juiz de Fora, e reconhecendo o valor artístico dos trabalhos ali realizados pelo arquiteto e artista plástico especializado em Arte Sacra, Cláudio Pastro, convidou o premiado artista para os trabalhos da reforma e restauração que há tempos se faziam necessários em nossa Catedral. Esses trabalhos foram realizados entre os anos de 1986 e 1992. (RODRIGUES; PASTRO, 2011, p. 61)
Figura 2: Catedral Senhora Sant’Ana – Itapeva-SP
A reforma empreendida no prédio substituiu o telhado, o forro (que voltou a ser como o original), retirou elementos em gesso, reboco, entre outros materiais, visando trazer a originalidade de sua construção:
A taipa foi toda amarrada no alto com um forte cinturão de concreto. O forro da igreja voltou a ser como o primitivo, seguindo as duas águas do telhado e sobressaindo a beleza das antigas tesouras de madeirame. Os trabalhos sempre tiveram em vista resgatar a simplicidade primitiva da construção realizada pelos escravos. Portas e janelas voltaram a ter as formas em arco-pleno (arco romano). O piso que era ladrilhado passou a ser de granito na nave central. Devido às dificuldades financeiras, as naves laterais receberam granilito. O telhado voltou a ser de telhas de barro cozido (coloniais). (RODRIGUES; PASTRO, 2011, p. 63).
Figura 3: Detalhe da parede em taipa conservado para a observação das pessoas
Pastro, imbuído do espírito do Concílio Vaticano II (1962-1965), propõe um programa iconográfico mistagógico, a fim de que o visitante possa ser iniciado nos santos mistérios, tendo em vista que o espaço sagrado deve evangelizar – ainda que naquele momento não esteja acontecendo nenhuma celebração:
O programa iconográfico existe para orientar, educar, conduzir e introduzir o fiel no mistério do Deus Trino, na comunhão dos santos. Todas as paredes, pinturas, pisos, imagens, até um simples trinco, um prego, nesse espaço são a extensão do que aí se celebra e, portanto, são mistagógicos, isto é, condutores. Toda essa matéria foi dignificada pelo Espírito que a escolheu e, assim, conduz-nos ao Senhor da vida, ao Senhor da Igreja: assembleia que nesse lugar o escuta, o louva e faz o seu memorial (PASTRO, 2008, p. 74).
A reforma litúrgica realizada pelo Concílio Vaticano II colocou o altar como centro do espaço sagrado, tendo em vista que o seu modelo é a Eucaristia: “O altar é Cristo, centro de todo edifício […] O altar é o lugar do mistério pascal. O próprio Senhor entrega-se em banquete pascal para a liberdade e vida da comunidade eclesial. É o altar que dá razão ao espaço celebrativo cristão e sacraliza tudo e todos que o envolvem” (PASTRO, 2014, p. 68). Assim, a reforma do edifício privilegiou dois monumentos pascais: a mesa da Palavra e a mesa da Eucaristia.
De acordo com Borobio: “A reforma do Vaticano II quis devolver ao altar seu sentido mais próprio e relevante: ser mesa e altar, expressão e símbolo que recordam de modo permanente o mistério que nele se celebra: a presença do mesmo e único sacrifício de Cristo em forma convival e sacramental do pão partido e do vinho entregue” (BOROBIO, 2010, p. 67). Nas palavras de Rodrigues: “Cláudio Pastro, homem do nosso tempo, quis assim ‘colocar na Catedral não os devocionismos subjetivos de poderosos da época do barroco (período tardio e decadente da arte na Igreja: séculos XVII, XVIII e XIX) mas o cerne da fé e da arte cristã’” (RODRIGUES; PASTRO, 2011, p. 70).
Figura 4: Altar da Catedral de Itapeva projeto Cláudio Pastro
O ambão, que ganhou novamente espaço a partir da reforma litúrgica, foi projetado por Pastro com um pequeno degrau, o que faz com que a pessoa que a ele se dirige para proclamar a Palavra tenha que subir – evidenciando a etimologia da palavra ambão, que significa cume alto, um lugar elevado. Moraes enfatiza: “O significado de ‘ambão’ deriva do verbo grego anabainein: subir. Presente na liturgia desde o século IV, sua estrutura foi sempre a de um lugar elevado para melhor projetar a voz na proclamação dos textos sagrados” (MORAES, 2009, p. 130).
Figura 5: Ambão projeto Cláudio Pastro
A cruz está posta em cima do altar, pendendo do alto, onde é possível perceber claramente a Paixão e a Cruz como um estado passageiro na vida de Jesus – Ele não está morto, mas está vivo e aguarda os seus na Jerusalém Celeste. Essa é a imagem de quem olha o santuário a partir da nave central da igreja em questão. Rupnik enfatiza:
O crucifixo, onde devo colocá-lo? Onde está o véu, no ponto de passagem! Os franciscanos foram os primeiros a colocar o crucifixo no altar, pendurado acima do altar, pois sabiam muito bem que o seu lugar não era na parede. Ali é passagem e não meta, dali se passa, mas não é o ponto final de chegada. O sentido da vida não é ser crucificado, mas ressuscitado! (RUPNIK, 2019, p. 99)
Figura 6: Cruz de madeira com o crucificado em bronze dourado, suspensa sobre o altar
Nota-se, na reforma empreendida por Pastro, a axialidade escatológica, considerando que a pia batismal está posta à entrada do edifício, à direita de quem entra pela porta central, e, do outro lado, na parede do santuário, está o Cristo Pantocrator, na Jerusalém Celeste, à espera dos seus, ladeado pela Virgem Maria, Senhora Sant’ Ana, São José, São Joaquim, Arcanjo Miguel e Arcanjo Gabriel. Assim, o visitante pode compreender a sua trajetória a partir da perspectiva da centralidade do mistério pascal e da axialidade escatológica, uma vez que nascido nas águas do batismo, tendo ingressado no Corpo Místico de Cristo, peregrina na esperança de ingressar no Reino definitivo. Para Tommaso:
A missa é uma antecipação da vida na Jerusalém celeste, lugar prometido a todos os cristãos na eternidade. Porém, a cada celebração litúrgica, acontece esse encontro do Cristo com o seu povo, o céu desce para a terra. Esse é um fator fundamental na compreensão do sentido iconográfico do espaço litúrgico, que deve ser preparado para receber a Presença (TOMMASO, 2017, p. 191)
Figura 7: Detalhe do painel de Cláudio Pastro na Catedral de Itapeva-SP, mostrando a cruz como um lugar de passagem
O documento conciliar Sacrosanctum Concilium, sobre a liturgia, enfatizou a nobre simplicidade, em oposição à mera suntuosidade (cf. SC 124), a Catedral de Itapeva, embora tenha em seu interior materiais dignos e nobres, é dotada de uma simplicidade, certa austeridade e, ao mesmo tempo, é portadora de uma beleza singular, que propicia o encontro e a acolhida da Presença de Deus. De acordo com Pastro: “A beleza gera um ENCONTRO que leva do visível ao INVISÍVEL. Um verdadeiro encontro. A beleza nos coloca diante de uma presença, de uma companhia e não de um fantasma, de uma ilusão. A palavra pode manipular-nos. A beleza coloca-nos diante de uma PRESENÇA” (PASTRO, 2008, p. 28).
A paz, a tranquilidade e o convite à oração, tantas vezes relatado pelas pessoas que adentram o edifício da Catedral, sem dúvida nenhuma, são fruto da Beleza que se apresenta, que envolve, e que convida à comunhão. Urge uma educação litúrgica para que melhor se compreenda o espaço celebrativo como lugar de comunhão, encontro da comunidade, manifestação do sagrado e acolhida dessa Presença, que confere vida em plenitude (cf. Jo 10,10b).
Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2006.
BOROBIO, Dionísio. A dimensão estética da liturgia: arte sagrada e espaços para celebração. São Paulo: Paulus, 2010.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a liturgia. AAS 54. 1964. (SC). In. Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações. 29. Ed. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 259-306.
MORAES, Francisco Figueiredo de. O espaço do culto à imagem da Igreja. São Paulo: Loyola, 2009.
PASTRO, Cláudio. Guia do espaço sagrado. Ed. 5. São Paulo: Loyola, 2014.
______. O Deus da beleza: a educação através da beleza. São Paulo: Paulinas, 2008.
RODRIGUES, Maria Olinda; PASTRO, Cláudio. Catedral de Sant’Ana Itapeva: painel de Cláudio Pastro conta a nossa história. São Paulo: Scortecci Editora, 2011.
RUPNIK, Marko Ivan. A arte como expressão da vida litúrgica. Conferências do 11º ENAAS. Brasília: edições CNBB, 2019.
TOMMASO, Wilma Stegall De. O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil, na obra de Cláudio Pastro. São Paulo: Paulus, 2017.
Imagens cedidas pelo autor do texto