Comparações mais corriqueiras e simplificadoras apontam um percurso evolutivo das descobertas, invenções e até aprimoramentos nos costumes socioculturais. Somos presas fáceis dos últimos lançamentos no domínio bastante expressivo da tecnologia, e de tal forma nos deixamos trair pela crença de que hábitos, costumes e a própria moral também sejam capazes de caminhar para um ponto melhor que o antecedente.
É provável que parte dessa confusão se deva à adesão que muitos de nós tivemos em relação ao discurso sobre a Modernidade. Poucas pessoas levaram em consideração o fato de que falar do que é moderno – especialmente no século passado – não era e nem poderia se dar de um modo imparcial. Insidiosamente se fazia a defesa da Modernidade, e muito dificilmente se conseguiria manter o afastamento suposto e devido. Nesse caso, o moderno ele próprio era um discurso político que se valeu de posições ideológicas para sua defesa: a luta pela hegemonia na esfera da superestrutura, a origem do que hoje facilitou-se chamar de guerras culturais.
Acredito que, somente por esse desconhecimento e pelo assentimento inquestionável às suas propostas redentoras, podemos supor o moderno como mais próximo da liberação, das boas causas sociais, da liberdade de expressão ou da democracia, dentre outros pontos. E quando a iniciativa de se estabelecer uma crítica a essas propostas é julgada como uma entrada conservadora e reacionária – palavras que são equivocadamente utilizadas como sinônimos – tem-se como resultado uma opinião que já se possuía antes. Somos irracionalmente atraídos por um lado ou outro do espectro político, principalmente quando ele cruza e se mistura com costumes e práticas sociais – aquelas que desejamos manter ou outras que ambicionamos abandonar.
Pois bem. Em se tratando das ideias, dos conceitos, da literatura ou filosofia, podemos nos afastar dessa concepção que pressupõe que seja possível caminhar para o melhor. Em todos esses âmbitos, o passado costuma superar em muito o que acompanhamos de uns tempos para cá. Penso nisso quando se toma contato com narrativas contemporâneas embebidas em novos contos de fada, com personagens arquetípicos levemente alterados.
De fato, defrontamo-nos com um tipo de neopuritanismo que dá suporte para muitos procedimentos de busca, de suspeitas e denúncias, de perseguição e de exclusão. Como no primeiro caso em que deu sinais de sua presença, nos deparamos com a caçada do que quer que pareça estar em desajuste com um código moral bastante rígido que prescreve, dentre outras coisas, o modo correto de se abordar as pessoas, em especial, buscando parametrizar e obter controle sobre o sexo.
Sim, toda nudez sempre será castigada.
Estamos às voltas então com a moral como um ativo político. Nada que Maquiavel não tivesse previsto no seu O Príncipe. Parecer bom é o mood do contemporâneo. Vamos aqui enumerar alguns espaços que aparentemente vão sendo dominados por esse life style das elites ocidentais no século XXI: comida, alimentação, preparo dos alimentos, veganismo; roupas genderless; preocupação com a gentrificação; uso de pronome neutro; apoio de causas sociais pelo Instagram; a metafísica das marcas, engajamento das marcas; pauta social nas mídias tradicionais; a moda da virada linguística nas redações e nas universidades.
Todas essas demandas por engajamento moral se dão através das redes sociais, o espaço propício para a falação, para o statement. Quase tudo se resumindo a ele, tudo se tornando uma declaração com objetivos de correção de gestos, palavras e atitudes. Toda uma parametrização que faria inveja tanto a inquisidores quanto aos puritanos do passado. Diga-se que essa moda guarda muitas ligações exatamente com os Estados Unidos, local em que até os filmes de super-heróis possuem metafísica e nos passam lições de moral. Qualquer produção da Disney hoje leva esses aspectos em consideração – e o curioso é que a própria Disney é voltada para os adultos, uma vez que se acompanha, aparentemente sem grandes preocupações, a queda mundial de natalidade. Ou seja, Disney virou papo sério para adultos que se percebem como crianças, com direito inclusive de ser feliz.
A moral como um ativo político não é exatamente um ingrediente novo na nossa história. Governos totalitários do passado e do presente também primaram pela ambição pelo controle dos costumes, do que se falava ou do que se pensava e fazia. A unanimidade em relação a sequer duvidar de que estejamos de fato do lado certo também nos une e nos aproxima do mesmo espírito de controle que se dá pela certeza de estarmos somente fazendo o bem.