Desde quando cultivamos o hábito de procurar definir um comportamento a partir do uso e da escolha de determinadas palavras? Meu feeling é de que essas posturas tenham se iniciado quando das alterações sociopolíticas mais violentas. Penso então nas revoluções francesa, russa e chinesa. Em todos esses casos, observamos essa intenção que se manifestou na reformulação de algumas expressões, aparentemente buscando estabelecer uma correção quanto ao que se considerava inaceitável ou inadequado. Mas bem pode ser que se ambicionasse manter acesa a chama revolucionária no cotidiano mais prosaico, ainda que cada vez mais distante dos eventos de luta e confronto.
Com isso, cidadão, cidadã, camarada tornaram-se formas de tratamento que, expressamente na fala, não diferenciavam gênero, no caso de camarada, nem um posto hierárquico – e assim, tínhamos camarada Stalin ou Mao ou cidadão Danton. A preocupação com o modo pelo qual nos dirigimos aos outros também faz parte do que era buscado no passado mais remoto e que era conhecido pelo nome de bons modos. Norbert Elias, em seu O Processo Civilizador (Volume 1: Uma história dos costumes e Volume 2: A formação do Estado e civilização, Rio de Janeiro: Zahar, 1990 e 1993, respectivamente)segue sendo o nome a ser procurado quando se trata de visitar os primeiros manuais de etiqueta surgidos nos períodos iniciais da passagem da Idade Média para a modernidade europeia. Aprendemos com Elias que a preocupação com os gestos, as atitudes e o comportamento guarda bastante proximidade com a percepção que se pode ter da aparência. Ou seja, tratava-se especificamente de uma demanda burguesa, uma classe social então nascente e que primava pela preocupação com o reconhecimento que ansiava alcançar.
Nada disso faria sentido para a nobreza, segura que era de seu espaço político ou social daquele contexto – não necessitando mostrar nada a ninguém, tampouco se justificarem por serem o que eram. Esse então é um ponto de partida que nos interessa aqui. A necessidade burguesa de se apresentar publicamente mostrando as suas credenciais, colocando-se enfim dentro de uma ética, como diria Weber, que viesse a justificar e conceder suporte aos valores abraçados por esse estrato social.
Reforço aqui a preocupação com a aparência, uma vez que, a partir de então, poderíamos dizer que o modo como somos percebidos ou vistos em relação aos nossos hábitos e comportamentos públicos é uma aflição explicitamente burguesa. Poderíamos aqui dispor outros aparatos de comportamento que fazem parte dessa mesma questão: a escolha de como nos vestir com decoro, a nossa casa arrumada para receber a visita de alguém, o cuidado e a atenção com o asseio, com a nossa postura, com o nosso vocabulário e assim por diante.
Nesse ponto já é possível perceber que a origem da atenção com a mais correta utilização das formas de tratamento guarda proximidade com a experiência da tensão com a aparência, com o os meios através dos quais uma pessoa pode ser reconhecida e ter suas atitudes consideradas mais ou menos corretas aos olhos do outro e da sociedade. Trata-se, em última instância, de uma tentativa de controle quanto ao que será pensado a partir do que se exibe, e isso como uma das justificativas para a aceitação social.
Creio então que tenha ficado claro que minha intenção nesta coluna é trazer referências para o uso da chamada linguagem neutra, mais conhecida por um público específico através de expressões como todes, alunes, amigues, brasileires e assim por diante. Destaquei até aqui que uma das explicações possíveis dessa atitude no contemporâneo se aproxima do que vimos no passado, a saber, uma demonstração externa que ateste legitimidade de um Estado e que exiba um compartilhamento dessa crença – o que em casos históricos passados era mais próximo do compulsório do que da possibilidade de escolha.
Mas diga-se que as formas de tratamento citadas aqui não foram inventadas. Elas já existiam nas línguas que as adotaram, sendo que cidadão ou camarada somente ganharam aderência exatamente por se oporem à palavra súdito, alteza ou realeza. No momento atual, não é o que acontece. Trata-se de uma proposta que mais se assemelha às tentativas de uniformização do vocabulário encontradas em profusão em algumas das mais conhecidas distopias do século passado. Ali também, ainda que do ponto de vista ficcional, nos defrontamos com a correção do comportamento por intermédio do uso de palavras consideradas mais adequadas para essa finalidade. De forma semelhante, podemos aproximar o constrangimento de optar por não usar a linguagem neutra que pode ser percebido hoje, tal qual no passado. Sendo um signo que identifica um perfil geracional mais jovem, do ensino médio e das universidades, e que notadamente busca dominar o léxico das causas identitárias, pode ser que pessoas com mais idade se sintam compelidas a demonstrar aceitação dessa norma, que não é a culta, mas é pop.
Essa investida faz parte do tom de várias modas do contemporâneo, essa, como outras, vinda das universidades norte-americanas que já utilizam pronomes neutros há mais tempo do que nós. No entanto, há algo mais que chama atenção. Não se trata exatamente, como poderíamos supor, de uma atenção às expressões que podem demarcar o cuidado em relação ao outro, mas sim de uma exigência de reconhecimento por parte que de quem utiliza essa forma de expressão. Sobretudo, o uso da linguagem neutra na língua portuguesa – que já possui o artigo definido para tanto – mais parece sinalizar a minha preocupação, o meu conhecimento sobre esse assunto, o fato de eu me considerar up-to-date em relação a ele, bem como possuidor de credenciais para assim me colocar. Tudo isso, como dissemos, perfaz um comportamento especificamente de elite, uma vez que muito dificilmente conseguiremos trocar palavras com um universo maior de pessoas que compreenderão o pronome neutro em nosso dia a dia.
O uso por aí de todos, todas e todes, além de evidentemente gastar palavras (mais exatamente porque elas nada custam), ou de proporcionar a “adrenalina” do desafio à língua portuguesa, diz muito mais sobre os interesses de aceitação de quem assim se manifesta do que sobre uma preocupação com a exclusão, com o preconceito e com a falta de cuidado para com os outros. Ainda mais porque somente nos comunicamos dessa forma com os nossos pares, nas ruidosas, agressivas e enfáticas redes sociais.
Há alguma novidade em tudo isso?
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