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A farsa que nos une

A remuneração inicial de um magistrado brasileiro é a quarta maior entre os países analisados, sendo muito próxima ao salário dos juízes do Reino Unido e inferior apenas ao valor pago nos EUA e no México. No topo dos salários do Judiciário, que não estão vinculados a funções de comando ou a cargos em tribunais superiores, um juiz brasileiro chega a ganhar quatro vezes mais do que ministros das cortes constitucionais da Alemanha, da França, da Argentina e dos Estados Unidos. “Brasil fica em primeiro em ranking de supersalários no funcionalismo, com gasto de R$ 20 bilhões”. Adriana Fernandes e Luany Galdeano. Folha de S. Paulo, 26.nov.2025.

Na semana passada, eu falei sobre livro de Jonathan White sobre o futuro imaginado e o quanto essa concepção estimulou as lutas pela democracia durante os séculos XVIII e XIX (In the Long Run: The Future as a Political Idea. New York: Profile Books, 2014). No entanto, eu deixei de abordar o Brasil. Ao falar das revoluções que moldaram a política moderna, o Brasil fica mesmo de fora uma vez que nada aqui se manifestou como uma contradição em relação ao modelo de governo que existia antes desse contexto, ao menos para quem deixou de ocupar o poder e quem passou a controla-lo. É falsa a declaração de que as revoluções ecoaram em solo nacional e quem discorda quer manter teleologia marxista sobrevivendo por instrumentos em nossas bandas. Temos por certo que os arranjos se fazem entre as elites e por vezes, há a troca de guarda.

É claro que a história passada de nosso país apresenta minúcias e eventos que se distinguem uns dos outros e que por isso se tornam alvo de pesquisas, apesar de que muitas delas são estabelecidas como profecias do futuro que nunca se realizam. A indústria da fé em nosso país é dominada pela política e cada geração tem um Roque Santeiro para chamar de seu.

A crise da democracia foi percebida e pautada naquelas nações em que a política fez a diferença em alguma vez no passado e que as grandes transformações se processaram a partir de confrontos, revoluções e guerras civis. Desse modo, ao demonstrarem preocupação com as fraturas na democracia, europeus ou norte-americanos apenas reforçam o cuidado com um sistema do qual seus antepassados vieram manifestar algum tipo de apoio. Isso, o cinismo contemporâneo não deu completamente conta de fazer desaparecer.

No Brasil, as transformações dessa monta, foram acertadas nas ações entre amigos e posteriormente os demais ficaram sabendo a partir de documentos registrados em cartório. Coube ao povo apenas pagar essa conta sem que sequer imaginasse o motivo. Esse sendo um dos motivos que nos levam a desconhecer o real significado dos feriados cívicos o que, para nós, somente revela preocupação em saber se emendam ou não com o final de semana.

A política brasileira toma a sua forma a partir da sobrevivência dela própria e dimensiona a sua eficácia na manutenção de um estado de coisas que é favorável para quem esteja articulado nessa cultura secular de dominação. A superestrutura dá sinais de alteração e os passos são acertados com as danças que vêm de fora. Somos suscetíveis às modas de todo tipo e matiz e deixamos que os mais jovens cedam a elas. Cultura livresca, literária ou artística no Brasil, manifestam-se a partir dos dilemas familiares e em grande parte através daqueles que não se tornam advogados ou juízes. O conservadorismo no Brasil está longe de ser devidamente mapeado e, o que se conhece por jeitinho, dá nó em qualquer expectativa mais solene de real transformação. Conta-se nos dedos os negociantes de bens culturais que conseguem sobreviver e na maior parte das vezes, seus rendimentos já lhes alcançam antes mesmo de terem nascido. O enfant terrible segue sendo o rebento espevitado de uma família de bilionário ou de políticos que descendem dos coronéis.

Esses aspectos aqui retomados explicam o insucesso de um livro que se volta para o que um político deve levar em consideração em relação ao futuro. Os nossos participantes dos três poderes delinquem a república e suas causas, quando existem, são apenas pessoais.

Nesse ajuntamento do qual se chegou a contragosto como condição imposta pelo degredo, nunca se abandonou o trauma de origem. De tal forma fomos deserdados pela civilização que até os sinais de vida inteligente nos faltaram assim como os produtos de consumo mais abstratos e por isso, requintados, dentre eles, o conceito de democracia. Como não tomamos contato com quase nada de mais elaborado, a vida no Brasil segue precária para quem está na condição de protagonista involuntário da tragédia nacional de cada dia.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.