
Não houve revolução de um dia para o outro no pessoal da Gestapo, e, sim, uma transição muito gradual, na qual os funcionários “ordinários” do período de Weimar foram desafiados a se adaptar a novos tipos de policiamento com viés racial, comandados por ambiciosos portadores de diploma universitário que estavam a 1 milhão de quilômetros de distância dos brutamontes valentões das tropas de assalto do período da ascensão de Hitler ao poder. Mcdonough, Frank. Gestapo: Mito e realidade na polícia secreta de Hitler. São Paulo: Leya Brasil, 2016
Somos apresentados aos eventos do passado por intermédio de inúmeras apropriações que caminham juntas. O passado se assenta e parece pacificado e de tal maneira nos deparamos com poucas controvérsias ou inconsistências. Mais do que a pesquisa em si, o que nos hipnotiza nessas abordagens parece ser o senso comum que é transmitido a partir de uma diversidade das mídias. Situações assim somente são revistas quando nos encontramos com propostas historiográficas que venham a propor um outro itinerário de perguntas sobre os mesmos fatos ou que então inaugurem percepções dissonantes sobre as fontes históricas. Essa é a sensação despertada pelo livro Gestapo: Mito e realidade na polícia secreta de Hitler de Frank McDonough.
E é por estarmos acostumados com algumas explicações que manifestamos a dificuldade de supor outros percursos exploratórios, o que descobrimos com gosto ao longo do contato com esse trabalho. O aprofundamento na história da Gestapo (Geheime Staatspolizei), ou Polícia Secreta do Estado, criada na Alemanha nazista, oferece a nós boas perspectivas de reorientação quanto aos prejulgamentos da história. McDonough desmistifica os feitos desse órgão de controle, partindo primeiramente do pequeno número de integrantes, o que muito dificilmente justificaria a sua fama de tudo ver e conhecer nos quatro cantos do mundo dominados pelo nazismo. A cultura da espionagem já era percebida na Alemanha ao menos desde o século XIX bem como o aparelhamento do Estado na direção do acesso ao que de privado era falado sobre política.
É interessante notar que nos acostumamos a falar das dificuldades havidas no pós- guerra em relação à remoção da cultura do nazismo, mas não levamos em consideração os hábitos de longa duração que foram assimilados pelo nazismo nas décadas de 20 e 30 do século passado. Ficamos sabendo que a maioria dos quadros pertencentes à Gestapo eram de funcionários formados no ambiente das delegacias, ou seja, estavam forjados na ação a partir do recebimento de uma queixa, da averiguação e da busca por evidências e na realização de interrogatórios.
A ideologização da polícia deu-se a partir do controle assumido pelos grandes nomes do nazismo tais como Hermann Göring e Heinrich Himmler. Esse foi momento em que a Gestapo ganhou corpo, especialmente quando passou a acolher um número maior de jovens em sua maioria formados em direito e que investiam na promoção do nazismo como modo da promoção do novo homem alemão. Essa elite se indispunha com o corpo de funcionários até então existentes, formado por herdeiros da classe média germânica menos abastada.
Fazendo coro e recuperando outra obra já tratada aqui (Robert Gellately, Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha Nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011), somos introduzimos à percepção de que a vida continuou na Alemanha sob o domínio nazista na medida em que a perseguição imposta aos judeus e aos opositores do regime em nada afetou o andamento do povo alemão que não se enquadrava nessas categorias. De acordo com Frank McDonough, a Gestapo não era temida por aqueles que não viessem a se opor ao nazismo e a maioria dos casos que chegavam à organização e que viessem desses grupos eram arquivados.
Mas se não contavam com um número expressivo de funcionários, a Gestapo sempre pode se apoiar na rede de delações espontâneas, esse sendo mais um comportamento que não foi criado pelo nazismo, mas devidamente usado por ele. O que de mais oportuno soube o nazismo aproveitar foi a disposição dos mais jovens em colocar em prática o idealismo, uma vez que sequer experiência de fracasso possuíam, bem como a alternativa a ser oferecida a quem quer que se sentisse frustrado perante as ofertas de reconhecimento social.
Chegamos ao final da leitura dessa obra cientes da bestialidade provocada pela ascensão do nazismo ao poder, mas agregamos mais justificativas para a tese de que tamanha ferocidade não foi discrepante em relação ao que antes ocorria. O totalitarismo nazista contou com a empatia de seguidores que encontraram meios de permanência de suas rotinas em meio ao desastre que era vivido por muitos que desapareceram no horizonte.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

