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Parece que estamos pensando

Um sistema político pode se apoiar em algum tipo de manifestação de fé? Se essa pergunta parece sem sentido, pensemos um pouco na direção da recuperação do passado. Talvez, na maior parte do tempo tenha sido exatamente dessa maneira: os Estados costumavam ter algum tipo de suporte filosófico e metafísico. Seria então como se essas civilizações buscassem justificar o poder constituído através de aspectos e motivos além daqueles relacionados ao cotidiano mais prosaico. Muitos seriam os exemplos possíveis de serem retomados aqui. Pensemos no Egito Antigo, por exemplo, e na justificativa divina da organização do Estado. Esse também era o motivo da crença no poder absoluto de um rei no século XVIII europeu. E para todos esses casos nos depararíamos com explicações, por vezes teóricas, como no caso do absolutismo francês, que dariam corpo abstrato à organização política stricto senso: uma explicação da ordem da metafísica, então.

Até aqui, nada de novo, muito pelo contrário. Mas será que a democracia também depende de uma metafísica, de uma justificativa abstrata que a sustente? Se assim for, os suportes para a existência desse tipo de governo não seriam encontrados em valores concretos e percebidos na realidade do dia a dia, mas sim a partir de um tipo de fé, de crença nos aspectos mais impalpáveis remetidos à formação humanística ou às virtudes que esse tipo de governo invariavelmente teria.

Essas são as ideias que mobilizaram os professores e pesquisadores norte-americanos Christopher H. Achen e Larry Bartels, autores do livro Democracy for Realists: why elections do not produce responsive government (Democracia para Realistas: porque as eleições não produzem um governo responsivo), publicado pela Princeton University Press: Princeton & Oxford, 2017. Ambos desenvolvem o conceito de Folk Theory, algo como uma teoria popular da democracia que tem sua origem no Iluminismo, no século XVII. Não se trata de um conceito difícil de ser percebido, compreendido ou notado, mesmo passados tantos anos desde a recuperação moderna daquela experiência de curta duração que foi a democracia ateniense. A Folk Theory se manifesta a todo momento em que a defesa da democracia se faz em bases virtuosas ou redentoras, na expectativa de que esse sistema político venha a ser uma panaceia, de que tenha a ver com o respeito à grandeza do ser humano, enfim, que venha a dar suporte a um tipo de religião civil, que é o modo como os autores também se referem a esse fato.

Assim, a Folk Theory nada mais é do que uma justificativa abstrata para a democracia. No entanto, os autores também notam uma grande distância entre essa orientação e o que de fato ocorre no contexto cotidiano de um país que vive sob o sistema democrático. Servindo-se de uma ampla base empírica de dados, Achen e Bartels entendem que não há assim tanta perspectiva de reabilitação da consciência política por parte do cidadão, uma vez que, em geral, ele é mal versado em política e tende a escolher o seu candidato “a partir de suas identidades sociais e não levando em consideração a ideologia.” Na maioria das vezes, os eleitores somente recuperam os últimos meses do desempenho de um político majoritário que concorre à reeleição e pensa em puni-lo ou recompensá-lo, do ponto de vista mais emocional possível.

A própria concepção de racionalização política – o cuidado para se escolher em quem votar, a análise das plataformas políticas ou das intenções do candidato em questão, se ele pertence ao espectro de direita ou esquerda – já faz parte do ativo político propriamente dito. De acordo com os autores, “um partido constrói um ponto de vista conceitual no qual os eleitores podem realizar sentido no mundo político. A realização de sentido na política, para além do pragmatismo, é um instrumento político.” Ainda de acordo com Achen e Bartels, “parece que estamos pensando” – It feels like we’re thinking – é o que ocorre com o eleitor que vai atrás de um significado maior para o voto que acabou de dar. Ao menos, seu voto não foi concebido da mesma maneira grandiosa com que a narrativa sobre ele pretendeu forjar. Enfim, muitos são os motivos da escolha por um candidato ou outro, mas ela dificilmente poderia ser justificada por intenções tão nobres quanto aquelas que dão suporte à Folk Theory. Nessa direção, a democracia pode abrigar a fé muito mais do que suspeitava a filosofia iluminista.

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.