Conhecer o gênero de uma pessoa, sua idade, saber se tem uma religião ou não e, se tiver, se a segue regularmente. Ser informado sobre o nível de ensino formal, fundamental, médio ou superior. Qual a sua etnia. Todos esses aspectos em separado não permitem que tracemos nenhuma estimativa quanto ao futuro, mas se eles se encontram cruzados, temos boas chances de previsão – ao menos em relação a alguns temas, como, por exemplo, especular qual seria a orientação política da pessoa, se de esquerda ou direita. Isso somente é possível por estarmos num momento em que alguns posicionamentos se aproximaram das ideologias, o que evidencia a polarização hoje percebida com mais nitidez.
Esta é uma conclusão de um artigo publicado no The New York Times, em agosto de 2019, Quiz: let us predict whether you’re a Democrat or a Republican, escrito por Sahil Chinoy. Na verdade, tratou-se de uma interpretação de pesquisas – survey – realizadas pelo Cooperative Congressional Election Study e pela American National Election Studies entre os anos de 1972 e 2018. A amostra foi de mais de 140 mil respostas.
Replico aqui tanto os resultados como a análise dos dados, uma vez que ainda não temos algo parecido em nosso país – ao menos nada similar às duas instituições que promoveram a pesquisa e nem o perfil da proposta quanto ao cruzamento de perguntas que talvez fossem consideradas exóticas por aqui. Mas não se trata somente de aprimorarmos o nosso conhecimento sobre a democracia norte-americana. O motivo principal de se abordar essa matéria está no fato de que há muita semelhança entre o que ocorre nos Estados Unidos e no Brasil, especialmente quando levamos em consideração o aumento do nível de polarização.
Raça, gênero, religião e nível de estudos formais são itens que, quando cruzados, também apontam para a polarização política em nossas terras, evidentemente com algumas singularidades. A luta pelos direitos civis – Civil Rights – nos Estados Unidos já tem mais de 50 anos, as tensões entre brancos e negros estão presentes no cotidiano daquele país, os índices de acesso à educação formal são maiores do que os nossos e as questões de gênero também contam com um passado mais robusto, o que engloba as chamadas segunda e terceira ondas do feminismo, além do Me Too. O aspecto religioso talvez seja o que mais se aproxima de nós, inclusive pelo perfil político da maioria de seus seguidores. A diminuição de religiosos nos Estados Unidos talvez possa ser comparada ao que ocorre nos grandes centros econômicos e financeiros em nosso país. Finalmente, um dos pontos mais claros de aproximação entre Brasil e Estados Unidos se encontra na oposição entre duas propostas ideológicas. O partido Democrata pode ser associado às denominações de esquerda brasileiras, PT, PSOL, PC do B, etc. Já o partido Republicano se aproximaria dos partidos do espectro de direita, o PL, DEM e, mais recentemente, o PSL.
Vamos então abordar alguns dados obtidos. Entende-se que o grau atual de polarização política nos Estados Unidos somente pode ser comparado com o que ocorreu no período da Guerra de Secessão (1861-1865). Naquela época, como hoje, raça, religião, demonização da política, rejeição do resultado das eleições, além da linguagem beligerante dos líderes, estavam também presentes.
Os resultados indicam que os eleitores não manifestam intenção de voto em candidatos que pareçam poder negociar com o lado oposto. Os eleitores demonstram apreciar menos os seus próprios partidos, mas são mais motivados a rechaçarem os partidos de oposição. Em relação à religião, o foco não é mais “qual religião você tem”, mas “quão religioso você é”. Se a pessoa responde que é branca, religiosa, tem uma boa renda e alto nível de ensino, quase que seguramente ela será republicana. No entanto, como o índice de religiosos cai nos Estados Unidos, alguns cientistas sociais entendem que o partido Republicano não vai se sustentar no longo prazo. Por isso, os Republicanos começam a disputar os votos entre os não brancos e menos conservadores.
A relação entre o partido Democrata e os trabalhadores brancos também se deteriorou, e entende-se que esse partido terá dificuldade de mobilizar os eleitores apelando para a identidade dos trabalhadores. Nos Estados Unidos, se fala de um sentimento de “dívida do diploma”, o que aumentaria o ressentimento entre os brancos sem altos níveis de educação formal – especialmente na era Obama, quando se percebeu um incentivo maior à comunidade negra. A partir daí, os brancos que se encaixavam nesse caso começaram a deixar o partido Democrata. 70% das mulheres millenials se identificam com os Democratas, bem como 57% das mulheres solteiras. Por entenderem que o sexismo se tornou mais hostil, observou-se também um comportamento de ressentimento em relação à ideologia de gênero. Há a preocupação com o controle das atitudes masculinas pela mulher e este assunto divide cada vez mais as partes.
Segundo Chinoy, “a combinação do gênero com outras características como idade e estado civil ajuda a prever se o eleitor em questão se descreve a si próprio como feminista e isso diretamente se relaciona com sua afinidade partidária”. Finalmente, em relação ao que se percebe hoje nos Estados Unidos, o autor aponta que “as pessoas não estão somente escolhendo entrar nos partidos, os partidos estão escolhendo pessoas também, fazendo fissuras culturais e sociais tão fortes e largas que fica difícil construir pontes. E como as identidades partidárias tendem a ser profundamente mantidas, os eventos políticos raramente misturam as preferências partidárias, o que significa que o ressentimento que vem da polarização baseado na identidade não vai desaparecer espontaneamente”.
Pensamos aqui se esse quadro se repetiria em nosso país ou não, o que nos incentiva a procurar realizar uma pesquisa nos mesmos moldes. Poderíamos chegar a marcadores que indicassem o ressentimento e se ele estaria associado aos aspectos que foram levantados pela pesquisa nos Estados Unidos.
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