Behavior

O Iluminista preconceituoso

As maneiras e formas pelas quais as pessoas se interessam pela política, ou então demonstram suas crenças ou não sobre ela, podem também lançar luz sobre seus perfis, padrão de escola de que vieram, acesso que tiveram a um conhecimento mais específico, etc. Expressões, conceitos ou ideias são marcadores de perfil e é possível acessá-lo uma vez que tudo isto sinaliza um poder aquisitivo, uma classe social, enfim, um espaço de compartilhamento social que difere de um caso para outro. Num momento em que vivemos, em que pessoas mais ricas produzem falas que são amigáveis em relação ao mais pobres e que defendem as causas sociais, é interessante perceber o quão distante essas pessoas se encontram umas das outras. Por que então procurariam defender aqueles que julgam “não ter voz”? Pode haver algum tipo de permanência do conceito de preconceito de classe, do qual muitos de nós nos consideramos curados?

O título desta coluna remete a um marcador muito significativo e que separa muitas pessoas de outras, quando se trata do pensamento sobre a política. É preciso fazer uma digressão para que nos deparemos com um ponto de origem deste distanciamento, que de um modo mais consistente pode ser percebido no domínio de um conhecimento mais cifrado. E este conhecimento, não necessariamente, deve ser tomado como necessário para que se pense a política de modo diferente. Pode ser também um indicador da fronteira entre duas visões de mundo, ou até mesmo a sinalização de uma barreira que separa dois tipos de pessoas.

Mas a digressão não acabou e o Iluminismo tem a ver com ela. Duvido que os leitores tenham dúvida sobre o que veio a ser esse movimento. França, Inglaterra, Estados Unidos, dentre outras nações. Movimento que na verdade não é um movimento. É muito disperso e se diferencia evidentemente de um lugar para outro. Autores com uma abordagem mais original e distante de uma visão historiográfica que somente consagra o movimento são Gertrude Himmelfarb (Os caminhos para a modernidade: os iluminismos britânico, francês e americano. São Paulo: É Realizações, 2011) e Robert Darnton (Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo, Companhia das Letras, 2005). Em ambos os casos, tomamos contato com interpretações que nos revelam outras nuances, por exemplo, a entrega pelo iluminismo inglês daquilo que o francês prometeu, no caso de Himmelfarb, e da mais completa falta de linearidade dos eventos históricos, da qual Robert Darnton acaba nos convencendo. Essas fontes e interpretações terminam por nos sinalizar que, além de nos voltarmos para os fatos em si, temos que nos deter nas análises feitas a seu respeito, especialmente quando eles repercutiram em demasia. Para os profissionais em história, o nome desse inquérito é crítica historiográfica. Ela também pode ser traduzida a partir da imagem do historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927), de que, em relação ao passado, e especificamente na direção de alguns eventos em especial, temos um acúmulo de borras, umas sobre as outras.

Para nós aqui, o que quero enfatizar é a dimensão normalmente relacionada ao Iluminismo, que é a da crença na política de um ponto de vista racional e lógico. Filósofos ali, grosso modo, entenderam que a política poderia ter um norte, seria compreendida e que os vaticínios de Maquiavel conseguiram ser exorcizados. Claro que nem tudo é tão simples assim e as leituras mais detidas dos escritos desses pensadores vai apresentar controvérsias. Mas o que se pode perceber é que a retomada ao nível do Ensino Médio se deu a partir de um viés otimista. Assim, podemos arrolar uma série de reações aos acontecimentos políticos, que podem ser aproximados desta leitura feliz do Iluminismo. Acreditar que a Democracia esteja em crise quando da eleição de candidatos populistas é uma dessas reações. A Democracia não está em crise se um político é eleito para um cargo majoritário em eleições que não contaram com ilicitudes comprovadas. Tampouco enquanto as ditas instituições basilares – judiciário, imprensa, órgãos legislativos – estiverem em pleno funcionamento. Pelo contrário, o fato de um candidato ser eleito numa eleição polarizada traz indicações de vigor do processo de escolha eleitoral.

De modo recíproco, acreditar que haja uns eleitores esclarecidos e outros não também indica um corte que opõe aqueles que têm mais conhecimento do outro daqueles que não o têm. Lembremos que, em geral, o conhecimento que se pretende medir ali depende do que se investiu nele. E o que observamos é que o domínio dos conceitos, como o de Iluminismo, depende mesmo do contato diuturno e cotidiano com escolas que na maioria das vezes são privadas. E o paradoxo é exatamente este: aqueles que têm uma formação mais cara e que se postam do ponto de vista deontológico como preocupados com as diferenças econômicas ou de oportunidades são precisamente aqueles que vão demarcar uma separação muito clara e nítida dos outros que não compartilharam do mesmo nível de educação formal.

A dúvida levantada aqui é exatamente esta: pode haver preconceitos de classe social, de cultura adquirida, econômicos, religiosos ou por nível de educação entre aqueles que se colocam como livres de qualquer tipo de preocupação dessa natureza em relação aos demais? Dito de outra forma, o preconceito pode existir naqueles que mais criticam a sua existência?

Tais perguntas podem compor uma reflexão para a definição de uma pesquisa destinada mais exatamente a realizar esse mapeamento de comportamento.

Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.