
Uma invenção é um rearranjo inovador de ideias, substâncias e técnicas já existentes. Raramente uma ideia ou substância completamente nova é a chave para o sucesso, supondo que tal ideia ou substância tenha desempenhado algum papel. Planck “inventou” a teoria quântica, frequentemente descrita como o desenvolvimento mais revolucionário da física moderna, unicamente através de uma leitura diferente e da fusão de ideias que, por um momento, buscavam originalidade apenas na solução de um problema clássico que havia escapado aos esforços de outros. Robert Nisbet. Prejudices: a philosophical dictionary. Massachusetts: Harvard University Press, 1982, p. 235.
Houve um tempo em que se pagava um preço alto por se ir contra o mainstream dos costumes. William Godwin e sua mulher, Mary Wollstonecraft, que o digam. Nesse contexto, exibir uma conduta moral que afrontasse os valores burgueses exigia pagar a conta do esquecimento, até mesmo para quem tivesse atingido a fama. Na prática, isso correspondia a não conseguir honrar as suas contas e nem acessar os benefícios que a sociabilidade ofereceria. Essas personagens ganhariam os epítetos de malditos e toda uma literatura de segunda hora seria erigida para saudá-las especialmente em um período em que os ventos enchiam as velas da modernidade.
Felicitar-se pela primavera promovida e alcançada através da libertação de todas as travas morais se traduz num dos maiores eventos de vergonha alheia produzidos ao longo das primeiras décadas do século XX. Veja que na sopa da modernidade, além da rima sincopada da poesia e ou da aparente quebra de harmonia da música atonal, houve outros ingredientes como o antissemitismo nazista ou os expurgos stalinistas.
Retomei no início o que seria um momento original de identificação de contradições morais apontadas por quem se sentia excluído dos costumes padronizados e vividos enquanto tal. Quem se colocava contra, mas aguardava por uma resposta positiva que lhe franqueasse o acesso, não almeja ser aceito e acolhido? De qualquer maneira, aqui se encontra a gênese das narrativas simplificadoras de inúmeros filmes no estilo sessão da tarde, o gênero em que foi resumido grande parte da produção de audiovisual no presente. E se essa posição, que bebe na fonte da martirização – assimilado como outsider no novo léxico que se impunha – dependesse do confronto para contar com validade? Será que as escolhas contemporâneas que hoje se assemelham àquelas do final do século XIX, somente signifiquem nada mais coloquial do que uma das opções que fazemos no dia a dia e que nem sequer levamos em consideração?
Pode bem ser que os feitos que muito pouco carreguem em sentido conotativo tenham sido super estimados pela necessidade futura de produção de uma metafísica política num tipo de populismo de costumes. Fazer crer que evoluímos nos hábitos morais produziu tanto efeito quanto se associar a liberação feminina ao direito de filmar cigarros em público. Aqui entramos na seara tão bem conhecida por Edward Bernays, o mago do marketing da modernidade, cuja influência foi mais decisiva que a de Marcel Duchamp. Os riscos de baixar a devida guarda perante à historiografia e de habilitar a publicidade na elaboração das narrativas do passado são muitos. Um dos mais perceptíveis segue sendo esse que escolhe no passado aqueles eventos que venham a justificar as tendências do presente. E é assim que temos uma recuperação oportuna que justifica as modas que vêm e passam.
Fingir que exista metafísica nas causas tem sido um privilégio do processo de tratoragem da modernidade e supor que se é capaz de ser mais livre é uma postura que já não conta com qualquer sinal de constrangimento. Fôssemos minimamente mais céticos e poderíamos arguir quanto à necessidade do confronto para que algumas causas ganhassem o significado mais solene que pretenderam mistificar. Adentro aqui uma das possibilidades de se confrontar a incoerência original do wokismo. Vale a percepção que se os ditos primeiros modernos vissem os seus inconformismos como referência para o estabelecimento de um novo cânone moral, muito de sua contundência morreria na praia.
Abandonar os holofotes e reduzir as escolhas à insignificância que de fato são poderia ser um posicionamento válido, ao menos não tão vexatório como pretender manter o mesmo disfarce que esgotou a sua presença estética há mais de 100 anos. Creio que seja por isso que se dá mais atenção ao estilo propriamente dito do que às ideias que se manifestam, o que tende a tudo transformar em ralo e insosso; que é o modo de o contemporâneo validar o ser.
Há pouca margem de manobra para a inovação na política que a tudo absorve. Nada de novo sobre ela foi estabelecido desde Maquiavel e permanece-se em Rousseau quem ainda encontra o conforto nos finais felizes. E quem se arrisca a sair por aí repercutindo as suas causas como se questão metafísica fosse é mais fácil de ser percebido como oportunista e ávido para justificar o próximo ilícito como se motivo social tivesse.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

