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O Ocidente é apaixonado por si mesmo: é tão abnegado que exibe a sua autocomiseração para Instagram ver

Lucas 18, 14 corrigido – Quem se rebaixa, quer ser exaltado
Friedrich Nietzsche, Humano demasiado humano

De uns tempos para cá, o Ocidente tem produzido sobre si mesmo uma imagem positiva e que é remetida às boas causas. Trata-se de um avatar que conta com a contribuição dos bilhões de pessoas que afirmam o seu modo de ser, o melhor lado para a selfie e tendo como suportes as posições e statements sobre os mais variados assuntos. Tudo o que daria trabalho a Aristóteles, pois se classificam em números e matizes tão específicas que também chamariam a atenção de Jorge Luiz Borges por três segundos.

Incrível topar com esse fenômeno, uma vez que o saldo da teoria pós-moderna levou o Ocidente para a cruz – sem direito à ressureição. E, nas décadas finais do século passado, acompanhamos um itinerário de paixão igualmente sem possibilidade da redenção. Promover o fracasso do west side veio a se constituir num ativo e quem assim se manifestasse seria iniciado na economia da repercussão de si próprio.

Os seguidores da seita do marketing, agressivos por necessidade de ofício, que escondem com pouca maestria os seus interesses de sobrevivência mais cruéis – e se desumanizam por conta disso, procurando uma camuflagem do oportunismo ancestral que carregam dentro de si –, defendem a bondade estrutural, uma ideologia 5.0. Tudo isso também sabido, antecipado e percebido no século XIX por Karl Marx, aquele que foi capaz de realizar a síntese do materialismo que permanece respirando sem aparelhos até ao menos o dia 8 de abril de 2022.

Feita essa introdução, o que nos interessa aqui é analisar o temperamento do Ocidente e a impossibilidade de deixarmos de ser ocidentais em cada julgamento que emitimos, até mesmo naqueles que procuram revelar autocrítica ou o distanciamento de nós mesmos: demonstramos a nossa superioridade moral mais exatamente quando vivemos o mito de que somos os juízes mais sábios e imparciais quando da necessidade de julgar as nossas próprias atitudes.

No momento em que escrevo, pretendemos colonizar o mundo com a nossa bondade e elaboramos um sem-número de regras de comportamento, de posturas e posicionamentos que fazem de nós o que há de melhor no planeta. Julgamos quem não é ocidental através da nossa própria cartilha. Ambicionamos a padronização moral e jogamos com todas as ferramentas que possuímos e que passam pela pieguice tornada corriqueira nas narrativas de muitos tipos, no audiovisual, na literatura e na política de premiações, incluindo Oscar e Nobel.

Escancaramos o nosso jeito de ser e esfregamos na cara dos não-ocidentais o fato deles não serem como nós. São os mesmos bárbaros da Idade Média, os não-ocidentais devem ser submetidos e admitir a sua insignificância. Todos nós, desde crianças, apreendemos a sermos ocidentais, aqueles que se julgam tão superiores que até conseguem cortar na própria carne: somos tão altivos e orgulhosos de nós mesmos, especialmente quando exibimos o nosso potencial de exposição de nossas mazelas. Escolhemos justamente aquelas que habilitam a exposição instagramável de nossa imolação.

Tudo fica mais claro ainda porque a nossa régua foi fabricada no centro do capitalismo mundial. Os Estados Unidos são a matriz da colonização cultural que se faz sobre o mundo inculto que ama fazer parte dessa economia. As produções culturais no contemporâneo têm o rosto do bom comportamento, que é o que se pretende consumir. A indústria cultural, sempre ciosa em oferecer o melhor, está atenta a nos servir a preços nada módicos.

Gostamos de nós mesmos e somos orgulhosos de nossa sabedoria e do modo como parecemos superiores em comparação aos demais. Se o Ocidente se tornou bobo, isso ocorreu por perseguir a sua própria imagem e semelhança: somos uma bolha de pessoas satisfeitas, inclusive quando militamos pelas causas do bem. Elas próprias são ativos econômicos valiosos e que pretendemos impingir aos não-ocidentais.

Você tem alguma dúvida acerca disso tudo que foi dito? Pense por algum tempo nos julgamentos que são feitos acerca da Guerra da Ucrânia. Na batalha cultural ali travada, defendemos um lado mais exatamente porque ele manifestou o desejo de ser como nós, ocidentais. Há um lado do mundo que nos provoca a agirmos como os tratores que sempre fomos.

O colonialismo de hoje se faz pelo marketing do bem. Os ricos seguem sendo cada vez mais ricos. Hoje eles atuam no negócio de exportação da commodity woke. Não sobrou para ninguém: a esquerda hoje é afetiva e compra e vende as suas ideias nas redes sociais. Dizem até que ela é a maior fornecedora de conteúdo fofo para as Big Techs.

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.